O uso e a necessidade de cotas, de gênero e raça, de destinação e recursos dos fundos partidários se relacionam com fatores culturais e legais. Vivemos em um contexto de exclusão social que se dá de forma socioeconômica e identitária, no qual a capacidade de mulheres e pessoas negras são constantemente questionadas, principalmente em cargos de poder.
Um dos efeitos dessa realidade é o afastamento de perfis subjugados da política e o não reconhecimento de determinados grupos sociais de seu potencial de ocupação dos espaços públicos e políticos. Com isso, uma das formas de enfrentamento desses atributos culturais discriminatórios é a adoção condicionante de políticas afirmativas, impulsionando estratégias de fomento à inserção e participação pública de todos e todas, seja de forma institucional, com a luta por ocupação de cargos na administração direta ou não.
A qualidade democrática é fomentada a partir da concretude do potencial participativo e dos direitos de representar e ser representada politicamente, por pessoas com critérios ideológicos e identitários similares aos seus. O que se soma com a expectativa, com alcance da representatividade democrática, de melhora na qualidade de políticas e serviços públicos, diversidade inovadora de tratativas, integração e assertividade de agendas de interesse coletivo e enfrentamento às desigualdades.
Temos desde 2020, em teoria válida, a obrigatoriedade do uso de 30% de recursos dos fundos partidários, alcançando no formato de cotas mulheres e pessoas negras. Entretanto, o número de 30% é condescendente à agenda de igualdade representativa, uma vez que não se espelha no perfil real da população brasileira. Segundo dados de 2021 do IBGE, 51,1% da população brasileira é composta por mulheres; e 56,1% são pretos e pardos . No critério de gênero, mulheres representam mais de 52% do eleitorado brasileiro.
A relevância de se trabalhar ambas as agendas, e de forma conectada, é evidente: hoje é observada a presença de lideranças femininas na Câmara em apenas 18%, e no Senado, de 7%. As mulheres negras compõem 2% do Congresso Nacional. A qualidade representativa não é melhor em outros poderes e localidades. Apenas quatro dos 31 partidos políticos são presididos por mulheres.
Evidenciada a desigualdade dos grupos recortados e a conquista legal do sistema de políticas afirmativas, estamos na segunda eleição em que é proposta a anistia de partidos políticos que não cumpriram o determinado por lei.
A PEC 09/23, que inicialmente contou com 184 assinaturas, sendo removidas posteriormente 11, com membros de oito partidos políticos, busca a extensão da anistia para os partidos que não cumpriam a distribuição de recursos previstos em lei, dentro dos sistemas de cotas, para as eleições de 2022, assim como foi realizado nas de 2020. Sanções de multas, devolução de valores e suspensões de partidos não serão aplicadas se a proposta de emenda for aprovada no Congresso Nacional.
A proposta defende que é necessário um maior período de adaptação dos partidos para o cumprimento das cotas, os principais argumentos são:
- dificuldades de ajuste de regras;
- dinamicidade de alterações de registros de candidaturas;
- descrença e críticas ao sistema de cotas.
Mais de três anos e duas eleições depois, será que de fato precisamos de maior tempo de adaptação ou de vontade política para tratativa interna das agendas nos partidos? Tendo em vista as disponibilidades de apoio de órgão eleitorais públicos, observatórios temáticos nacionais e internacionais e organismos da sociedade civil organizada, para além da própria estrutura interna de partidos, a compreensão de não cumprimento das cotas determinadas por não priorização da agenda por parte dos dirigentes e lideranças tende a ser a mais acertada.
Os limites de tempo para a adaptação proposta de partidos é outro ponto de atenção, que pode ser lido como estratégia de não cumprimento ou descrédito do mecanismo, sendo que existem iniciativas organizadas por bases partidárias que pedem a queda do mecanismo.
O desafio posto pela dinamicidade de registros de candidaturas é facilmente superado se os partidos políticos romperem com a regra do esforço mínimo para o cumprimento das regras postas. Ou seja, se trabalharem para alcançar os 30% – o mínimo é tido como meta máxima, de forma extremamente equivocada. Se existissem esforços de paridade de gênero em todos os partidos, a dinamicidade não afetaria o cumprimento mínimo de candidaturas negras e femininas.
O último ponto trazido protagoniza, de forma complementar, os pleitos de queda do mecanismo de políticas afirmativas, acusado de discriminatório e tratado como um ataque à autonomia partidária. É um contrassenso defender que as políticas afirmativas são de base discriminatória sendo que elas beneficiam diretamente perfis subjugados na hierarquia da estrutura social, que representam, como identidade, a maioria da população brasileira nos dois recortes observados. Essa é uma estratégia de manutenção da ordem social em seu formato misógino e racista, perpetuando o capital político nos mesmos agentes “tradicionais”, resguardados pela masculinidade, branquitude e heteronormatividade.
Ao garantir com sanções que os partidos políticos impulsionem a representatividade identitária de suas candidaturas, não se fere a autonomia de escolha de alocação de recursos e nem a determinação de perfis ideológicos de suas lideranças. A natureza condicionante traz em si um potencial de catalisar o alcance da qualidade representativa, compreendendo que, seguindo o curso cultural sem fomento legal, a paridade representativa demorará muito mais a ser alcançada. Arcabouços legais representam estratégias de construção cultural.
O que precisamos fazer para que as cotas já estabelecidas sejam cumpridas, mesmo sabendo que o sistema posto não é o suficiente para garantia da igualdade representativa?
Nos restam duas perguntas: para quem interessa não cumprir o mínimo acordado e o que precisamos para que as cotas já estabelecidas sejam cumpridas, mesmo sabendo que o sistema posto não é o suficiente para garantia da igualdade representativa?
O primeiro ponto é acabar com anistias para partidos políticos que não cumprirem o determinado para as políticas afirmativas. O segundo é a superação da agenda de defesa do mínimo conquistado. Quando o sistema de cotas adotado não é cumprido por deliberação e escolha política dos partidos, existe um fortalecimento do descrédito do mecanismo adotado e margem maior para defesa de sua derrubada.
Com os sistemas de cotas resguardados e operantes como previsto em lei, o terceiro ponto é a compreensão de sua insuficiência. É necessário defender uma agenda progressiva com o aumento da porcentagem resguardada de cotas até o alcance da equivalência à população brasileira, a criação de mecanismos de reserva de cadeira e a ampliação de critérios identitários das políticas afirmativas.
Existem perfis negligenciados e excluídos: a estratégia de uso de cotas se dá a partir do reconhecimento de desigualdade representativa de pessoas desses grupos, sendo este um reflexo da cultura de hierarquização social com base no racismo e no machismo estrutural. Seguindo este princípio, políticas afirmativas de enfrentamento ao capacitismo, à LGBTQIA+fobia e ao etarismo, por exemplo, devem ser adicionadas no sistema, assim como de pessoas que moram em áreas urbanas em vulnerabilidade, em zonas rurais, de comunidades de entorno, e representantes de povos originários.
Para que possamos alcançar os três pontos postos, é essencial termos mais mulheres na política – de todos os perfis identitários e ideológicos, real engajamento partidário na adoção da agenda, engajamento da população e de outros atores de interesse para a construção de ambiente político propício para defesa e ampliação das conquistas obtidas, com pressão social qualificada.
A PEC da Anistia dos Partidos Políticos deve ser pautada no Congresso Nacional na terça-feira (25), e precisamos apoiar as mobilizações da sociedade civil que estão enfrentando esse retrocesso. Existem diversas organizações que se dedicam nos termos elencados, sendo a pauta de fortalecimento da sociedade civil organizada transversal e essencial. Conheça algumas delas: A Tenda das Candidatas , Elas no Poder , Girl Up Brasil , Goianas na Urna , Instituto Alziras , Instituto AzMina , Instituto Marielle Franco , Instituto Vamos Juntas , Quero você eleita , Transparência Eleitoral Brasil e Vote Nelas .
Thaís Zschieschang é internacionalista, cientista política, mestre e doutoranda em Psicologia Social. Cofundadora do Delibera Brasil, criadora do Manual Participativo e do Jogo do Desenvolvimento Sustentável, autora do “Mulheres e política no Brasil”. Pesquisadora em Inovação Política pela PUC-SP, mentora ABStartups, BrazilLAB, Sebrae e Social.LAB. Integrante do Conexão Inovação Pública e Codes – Coalition for Digital Environmental Sustainability.