O retrato do trabalho doméstico em tempos de covid-19

Debate

O retrato do trabalho doméstico em tempos de covid-19
Foto: Arquivo pessoal

Hildete Pereira de Melo e Débora Thomé


05 de junho de 2020

São as mulheres — pagas ou não — que cuidam de crianças ou idosos, fazem comida, limpam e lavam a roupa. As trabalhadoras domésticas vão além: fazem o serviço na casa dos patrões e nas suas também

A trágica morte do menino Miguel, cinco anos, esta semana no Recife, quando acompanhava sua mãe no trabalho como doméstica, é o desdobramento dramático da dinâmica perversa desse trabalho que, ao mesmo tempo que sacrifica mulheres, sobretudo negras, é uma das poucas opções para lhes garantir o sustento de suas famílias.

Não foi um acaso. Semanas antes dessa tragédia que expôs novamente nossa brutal desigualdade, um médico plantonista tuitou , no cenário de lotação dos hospitais: “No mesmo plantão, atendo moradora de favela com 1/3 do corpo queimado com álcool por não poder comprar gás e entubo uma empregada doméstica, com covid-19, vinda diretamente da casa dos patrões.” No Brasil, estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostra que cerca de 6 milhões de mulheres (60% delas, negras), ou 14% daquelas que estão na força de trabalho, são empregadas domésticas. A América Latina é a região do mundo com maior percentual de mulheres exercendo essa função: são 18 milhões, o que representa 88% das empregadas domésticas de todas as Américas. No planeta, são 67 milhões, ou seja, 26,8% das domésticas do mundo trabalham na América Latina, e boa parte dessa estatística deve-se ao Brasil, que responde por 33% das empregadas domésticas da região e por 9% dessa ocupação no mundo, como mostra a OIT (Organização Internacional do Trabalho).

A sociedade — tanto no Brasil, quanto no mundo — sempre relegou esse trabalho a um papel de algo sem relevância, vivido no interior das famílias e despercebido da vida e importância econômica. As mulheres abonadas serviam para reproduzir a espécie humana e, para isso, eram mães glorificadas como “rainhas do lar”. Assim, donas de casa e suas empregadas domésticas seguiram destinos desiguais. Tanto que o pacto social de 1943, que consolidou a legislação social brasileira, a CLT, ignorou as domésticas nacionais.

A explosão da pandemia de covid-19, de repente, remexeu essa dinâmica e trouxe mais dramas e questões a uma relação já complexa — e não apenas no Brasil.

No caso do Peru, por exemplo, apenas face à pandemia se conseguiu aprovar uma lei estabelecendo alguns parâmetros mínimos para a proteção dessas profissionais. Entre eles, estava a idade mínima de 18 anos, a garantia de uma remuneração justa, a proibição de que houvesse restrição nos espaços da casa (o banheiro de empregada, por exemplo) e a proibição de que fossem submetidas a qualquer tipo de violência. Imaginar que, em 2020, isso precise estar explícito na legislação causa assombro.

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