Coluna

Januária Cristina Alves

Uma criança acusada de um crime e o que temos a ver com isso

27 de março de 2025

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‘Adolescência’ tornou-se um fenômeno porque, no fundo, nos é mais familiar do que gostaríamos, e fala sobre todos nós, sobre a sociedade em que vivemos e, sobretudo, sobre aquela que ajudamos a construir.

Se você é uma pessoa minimamente informada já deve ter ouvido falar da minissérie “Adolescência”, disponível na Netflix. Um dos trend topics do momento, a série narra, com maestria e técnicas impactantes, a jornada de um garoto de 13 anos que está sendo acusado de assassinar uma colega de escola. Pais, educadores, cidadãos de todas as idades e estratos sociais têm comentado a história. As reações dos espectadores variam entre chocados, assustados e, sobretudo, tocados pelo drama de um garoto inglês que poderia ser nosso filho, aluno, vizinho ou mesmo um transeunte qualquer. “Adolescência” tornou-se um fenômeno porque, no fundo, nos é mais familiar do que gostaríamos, e fala sobre todos nós, sobre a sociedade em que vivemos e, sobretudo, sobre aquela que ajudamos a construir.

Já no cartaz que anuncia a série lemos o tema central da narrativa: “A child is accused. Everyone left to answer”, algo como, em tradução livre: “Uma criança é acusada. Todos tiveram que dar uma resposta”, ou seja, se o título tivesse que ser traduzido em uma hashtag — para ficar na linguagem das redes sociais, que são um dos personagens principais da obra — ela poderia ser #todossomosjamie. Porque é sobre isso que a série trata: sobre como o garoto Jamie espelha a nossa sociedade e reproduz os comportamentos e exemplos que recebe de cada um de nós. As perguntas que os pais se fazem no episódio final pedem uma resposta nossa, como tão bem define o slogan do cartaz.  Do começo ao fim essa minissérie convida à reflexão sobre a formação dos jovens na sociedade contemporânea. Mais do que uma simples trama a respeito de “quem matou” e “por que matou”, a narrativa conduz o espectador a considerar todas as possibilidades e responsabilidades envolvidas, evitando simplificações ou julgamentos pré-concebidos.

Esta questão fulcral do nosso tempo nos faz pensar onde está o nosso foco quando nos perguntamos em como educar e preparar nossas crianças e jovens para trafegar no mundo digital de maneira ética, segura e inteligente

Com um cardápio de temas urgentes e oportunos para ocuparem as principais pautas da imprensa – e da escola e das famílias, é claro – a série foi tema até no Parlamento britânico, pois o premier Keith Starmer discursou defendendo que ela deve ser exibida nas escolas de todo país. Ao colocar na tela os dilemas do que é ser adolescente nos dias de hoje, os conflitos geracionais – “a geração ansiosa”, “a geração do quarto” – os efeitos deletérios da masculinidade tóxica – a cultura “incel”, os grupos dos “red pills”- a influência das redes sociais na formação e visão de mundo dos adolescentes; a importância do afeto e aceitação social na formação da identidade infantojuvenil; o abandono digital e institucional; a importância do diálogo e da construção de vínculos sólidos entre adultos e adolescentes; dentre outras questões do nosso tempo, “Adolescência” retrata, sobretudo, como a violência real e digital está totalmente interligada nos universos on e offline.  

Esta questão fulcral do nosso tempo nos faz pensar onde está o nosso foco quando nos perguntamos em como educar e preparar nossas crianças e jovens para trafegar no mundo digital de maneira ética, segura e inteligente. Viver entre o real e o imaginário faz parte da experiência humana – a arte está aí para isso, nos propiciando esse trânsito de maneira simbólica e curativa – porém, o que os dispositivos digitais proporcionam às crianças e jovens – e cada vez mais cedo – é uma vivência para a qual seus cérebros não estão aparelhados para assimilar. Não à toa, o terceiro episódio da minissérie tem sido um dos mais comentados, que é quando Jamie é submetido à uma avaliação da psicóloga forense, que, habilmente, vai conduzindo o garoto a ver a realidade, fazendo com que ele se dê conta de que a colega está, de fato, morta. A banalização da violência nos videogames, nas redes sociais, que trazem a automutilação, a morte, o suicídio, como atos que apenas respondem aos cliques e interações geradas por consoles, têm dificultado a percepção desse público não apenas do que é concreto e factível, mas também das suas consequências.

Em uma atuação magistral, o jovem ator Owen Cooper vai se tornando agressivo e desorientado ao perceber o que fez e o que isso gerou, tanto para ele como para sua família e comunidade escolar. Entre estupefato e desesperado, o menino descobre que morrer aqui, no mundo em que vivemos, não permite “ganhar uma outra vida” rapidamente como nos games, e muito menos a passar incólume por esse fato e continuar “vivendo”. Em uma metáfora sutil além de brilhante, o roteiro escancara a dor do luto da passagem da infância para a adolescência, só que, como o mundo digital não oferece o tempo necessário para a reflexão e muito menos o amparo que a fruição estética de um livro, uma obra de arte ou uma música nos oferecem, o que se vê é uma queda sem rede (exatamente porque a verdadeira rede não está no online), e Jamie desaba ao final da sessão, dando-se conta, finalmente, do que aconteceu.

E se observarmos com um pouco mais de atenção o que nos revelam os quatro episódios da série, vamos perceber que não é apenas Jamie que se recusa a enxergar o mundo real – porque, afinal de contas, o mundo virtual é muito mais interessante, emocionante, porque ali a adrenalina é combustível abundante para nos manter “vivos”– isso também ocorre com seus pais e professores. Os pais acreditam que ele está seguro em seu quarto – até porque para a geração analógica o maior perigo ainda é sair sozinho na rua e não estar abandonado a seus próprios likes nas redes – e o professor pode sumir da sala de aula, fechar a porta quando as coisas ficam difíceis e é preciso manter a atenção de uma turma de 30 adolescentes acelerados, em busca de dopamina. O pai que vira o rosto com vergonha do filho que vai mal no futebol, não vê o quanto seu garoto vai se tornando suscetível a negar suas falhas – tão humanas, porque afinal, não somos “Os Vingadores” –  e por isso, é mais fácil colocar a culpa (e o ódio) nas meninas que não se interessam por ele, tornando-se misógino. Estamos todos tão expostos à idealização e à cobrança incessante para nos encaixarmos dentro de um padrão que não é humano porque está embalado em filtros e artifícios criados por máquinas, que está cada vez mais complicado se olhar no espelho, gostar e aceitar o que vemos.  

Não à toa, especialistas têm alertado para um fenômeno que está se alastrando entre adolescentes e jovens nas redes sociais chamado de “reality shifting”, uma prática em que as pessoas tentam “transferir” sua consciência para uma realidade paralela ou um mundo fictício. Os relatos dessas experiências nem sempre são os mais agradáveis, especialmente daqueles que não conseguiram atingir esse “outro patamar”. Como são comunidades com milhares de membros – tão como os incels, que a série aborda – não dar conta do intento faz com que sintam-se excluídos e incapazes, afetando sua autoestima e saúde mental.

Talvez um dos grandes temas que a série trata seja aquele que está no centro das discussões sobre o uso da Inteligência Artificial pelos humanos, questão tão antiga quanto a do clássico da literatura mundial “Frankstein”, da também inglesa Mary Shelley: a relação entre humanos e máquinas (leia-se dispositivos digitais também). Sem trazer o humano para o digital estaremos fadados à cegueira de não saber quem realmente somos e sem condições de escolher para onde vamos. Essas são  também perguntas fundamentais a serem feitas para a evolução da humanidade. 

Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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