Entrevista

‘Ajuda humanitária internacional não deveria sofrer politização’

João Paulo Charleaux

30 de dezembro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h35)

Carlos Alberto Villalba, que comandou os Capacetes Brancos da Argentina, fala ao ‘Nexo’ sobre a recusa de Bolsonaro em aceitar auxílio para as vítimas das inundações na Bahia

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FOTO: AMANDA PEROBELLI/REUTERS – 29.12.2021

Homem puxa um barco com pessoas em cima, numa rua inundada pelas chuvas na Bahia

Família passa de barco por ruas inundadas em Ilhéus, na Bahia

O governo do presidente Jair Bolsonaro recusou nesta quarta-feira (29) oferta de ajuda humanitária feita pelo governo da vizinha Argentina para socorrer as vítimas das chuvas que, até a data, já tinham deixado 24 mortos e mais de 400 feridos no estado da Bahia.

A ajuda seria conduzida pelos Cascos Blancos (Capacetes Brancos), um organismo de ajuda humanitária ligado ao Ministério das Relações Exteriores da Argentina, que enviaria dez profissionais e equipamentos de socorro imediato à população baiana.

Ao recusar a oferta, Bolsonaro publicou mensagem em suas redes sociais dizendo que “o fraterno oferecimento argentino, porém muito caro para o Brasil, ocorre quando as Forças Armadas, em coordenação com a Defesa Civil, já estavam prestando aquele tipo de assistência à população afetada”. A forma como a mensagem foi escrita causou confusão na chancelaria argentina – que não soube determinar se Bolsonaro se referia ao custo financeiro da operação ou ao fato de a oferta ser valorizada, ser prezada, ser cara ao Brasil – disse ao Nexo uma fonte ligada ao tema.

O Nexo também perguntou ao Itamaraty qual o motivo da recusa brasileira, mas não obteve resposta.

No mesmo dia da oferta argentina, o embaixador da China em Brasília, Yang Wanming , enviou uma carta ao governo do estado da Bahia dizendo que seu país está “em plena disposição para ajudar”. Até a tarde desta quinta-feira (30), não havia posicionamento brasileiro sobre a oferta chinesa.

FOTO: RODOLFO BUHER/REUTERS – 04.07.2019

Grupo_Puebla

Antes de eleito presidente, argentino Alberto Fernández visitou Lula na prisão

Tanto a Argentina quanto a China são governadas por líderes antagonizados politicamente por Bolsonaro. Mas, para Carlos Alberto Villalba, que por dez anos (2003-2013) atuou como coordenador-geral dos Cascos Blancos argentinos, é um erro politizar a oferta de ajuda internacional, seja de quem for, tanto quanto é um erro politizar a recusa do governo brasileiro.

Em entrevista concedida por telefone ao Nexo , nesta quinta-feira (30), Villalba disse que as ponderações feitas pelos governos em situações de catástrofe, como a da Bahia, são normalmente técnicas e humanitárias, e a boa-fé deve prevalecer. Ele não acredita que a recusa brasileira tenha caráter político-ideológico, nem a oferta argentina.

Villalba critica a imprensa por, segundo ele, “jogar gasolina no fogo”, ao buscar explicações de ordem política-ideológica para um assunto que deve ser guiado por outros princípios, técnicos, que são explicados ao longo da entrevista.

Que tipo de ajuda os Capacetes Brancos poderiam levar às vítimas das chuvas na Bahia?

Carlos Alberto Villalba Os Capacetes Brancos são um organismo de ajuda humanitária ligado ao Ministério das Relações Exteriores da Argentina. Esse é um organismo de comprovada eficácia e eficiência no campo humanitário.

Por instrução do presidente [Alberto Fernández], o chanceler [Santiago Andrés Cafiero] colocou ajuda à disposição do Brasil. Veja: colocou à disposição da chancelaria brasileira, pois as relações exteriores se articulam dessa maneira, com respeito a um princípio de autoridade que começa pelo chefe do Poder Executivo, não nas estruturas federais [neste caso, não através do governo do estado da Bahia, mas através do Planalto e do Itamaraty]. O embaixador argentino [em Brasília], Daniel Scioli, foi quem comunicou essa oferta.

Nos últimos 20 anos, os Capacetes Brancos participaram de operações de respostas a todos os grandes desastres ocorridos no mundo, especialmente na América Latina e no Caribe. Agora, com essa situação na Bahia, foi feito um oferecimento básico de coisas que são colocadas à disposição no primeiro momento do impacto, como água potável, e especialistas em manejo de populações deslocadas. Isso é o que foi oferecido.

Esse tipo de oferta é comum? Por que o governo argentino oferece esse tipo de ajuda?

Carlos Alberto Villalba O governo argentino atua com base nos princípios humanitários. Esse princípios são os seguintes: de humanidade, que significa proteger a vida e a saúde; o princípio de neutralidade, que significa que os atores humanitários não tomam partido nas controvérsias de ordem política local; o princípio de imparcialidade, que quer dizer que a ação humanitária é realizada sem distinções de nenhum tipo; e, por último, o princípio de independência operacional, pois a ação deve ser autônoma em relação a qualquer outro interesse que não seja o da necessidade humanitária em questão.

Sempre que há um desastre, a Argentina, por meio de sua organização humanitária internacional, diz a um vizinho, quer esteja perto ou longe: “posso te oferecer esta ajuda? Serve? Em caso positivo, pego meus aviões e chego aí.” É comum que isso ocorra.

Qual é normalmente a resposta dada pelos governos que recebem essa oferta? O sr. pode citar alguns exemplos?

Carlos Alberto Villalba Vou explicar dando um exemplo interno, para não me meter na soberania de outro país: A Argentina é um país federal, embora com diferenças em relação ao federalismo do Brasil. Vamos supor que ocorra um desastre em Mar Del Plata, como de fato ocorreu anos atrás. Houve um deslizamento. Havia risco de que esse barranco se deteriorasse ainda mais. A Defesa Civil pediu ajuda ao governo argentino. A primeira coisa que eu fiz, como diretor nacional de Gestão Nacional de Riscos da Secretaria de Articulação Federal da Segurança da Argentina [cargo que Villalba ocupou de 2019 a 2021], foi procurar saber se era possível dar uma resposta apenas com recursos locais, do município. Se sim, isso é feito. Se a necessidade é maior, tem que ir ao governo da província [estado]. Se ainda assim não basta, busca-se ajuda do governo nacional.

Há casos, entretanto, que superam a capacidade de resposta de um determinado país, como acontece, por exemplo, com os terremotos de grande envergadura. Quando isso ocorre, a comunidade internacional – seja por meio das Nações Unidas ou pelas relações bilaterais, entre os países – envia ajuda, com autorização do governo do país que recebe essa ajuda. É assim que isso funciona.

Como o sr. interpreta a negativa à oferta de ajuda de parte do governo Bolsonaro?

Carlos Alberto Villalba Primeiro, eu preciso corrigir a pergunta, pois não é uma negativa do governo Bolsonaro, é uma negativa do governo do país. Para quem oferece esse tipo de ajuda humanitária, não existe Bolsonaro, nem tampouco existe Alberto Fernández [presidente argentino]. O que existe é a República Federativa do Brasil e a República Argentina. Não importa quem esteja no governo, porque as consequências dos desastres ultrapassam isso.

Não importa a coloração política. Importa é que existem pessoas que estão sofrendo e há pessoas em condição de colaborar. Nem tudo deve ser interpretado como um jogo de disputas partidárias e políticas.

Uma vez tivemos uma erupção de um vulcão no Chile, cujas cinzas caíram sobre Neuquén, na Patagônia, e, nesta ocasião, funcionários do governo argentino pediram ajuda internacional. Eu, à época, era coordenador-geral dos Capacetes Brancos, e nós nos opusemos a esse pedido, pois estávamos em condições de dar a resposta nacionalmente, e os países são em geral muito zelosos de suas capacidades. Isso é verdade para a Argentina e é verdade para o Brasil.

Então, é difícil avaliar a negativa do governo brasileiro, porque, nestes casos, as situações são fluídas, e mudam minuto a minuto. Há dez minutos o governo brasileiro considerava que estava em condições de enfrentar sozinho a situação, mas, se isso mudar, pode vir a pedir ajuda internacional. Quando há desastres humanitários, é preciso colocar as diferenças políticas entre parênteses.

Quais podem ser as consequências desse gesto do governo brasileiro?

Carlos Alberto Villalba Eu não faço parte do governo argentino, mas, pessoalmente, penso que não deve haver consequência nenhuma. É natural que, quando há um desastre, um determinado governo que possua um dispositivo de ajuda humanitária coloque essa ajuda à disposição. E é natural que o país que recebe essa oferta de ajuda possa responder: “Obrigado, mas eu ainda não necessito.”

A própria Argentina já esteve nessas duas situações: já ofereceu e já recebeu ofertas de ajuda humanitária. Já aceitou e já recusou ofertas. Esse tipo de coisa não deveria desatar grandes interpretações partidárias. Tenho a honra de ser jornalista e posso dizer que a imprensa, às vezes, quando há fogo, em vez de jogar água, joga gasolina no problema.

Eu tenho, naturalmente, opiniões sobre o atual governo da Argentina e o atual governo do Brasil, mas isso não vem ao caso nesse tipo de assunto.

Esses desastres serão cada vez mais extremos e mais frequentes no futuro, por causa da degradação do meio ambiente. Há 20 anos digo que nenhum desastre é natural. Essas chuvas não são naturalmente dessa potência, dessa intensidade. Esses fenômenos são provocados pelas formas atuais de exploração da natureza, e essas questões serão cada vez mais recorrentes.

Há custo financeiro para o país que recebe ajuda dos Capacetes Brancos?

Antonio Carlos Villalba Em geral, as assistências humanitárias não têm custo. Esta etapa, com oferta de dez técnicos, não é muito onerosa, seria financiada pela chancelaria argentina, com diárias pagas pela chancelaria. Em seguida, se querem construir algo maior, um acampamento para mil pessoas, aí busca-se financiamento com organizações internacionais como as Nações Unidas ou a OEA (Organização dos Estados Americanos).

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