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1.
A desigualdade
em debate

Em 16 de Dez de 2019

Onde estávamos em 2010

Um dos países mais desiguais do mundo, o Brasil começou 2010 com sinais de que estaria, enfim, lidando com esse problema histórico. O momento era de ascensão da chamada nova classe média, uma parcela da população que havia deixado a linha da pobreza, entre outros motivos, pela massificação de programas sociais, valorização do salário mínimo e ampliação dos postos de trabalho. Milhões de pessoas se tornavam consumidoras ativas e eram cada vez mais cobiçadas pelo mercado. Um estudo intitulado “De volta ao País do Futuro”, do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas, cravava em 2012 que Brasil havia atingido seu menor nível de desigualdade desde 1960. O Índice de Gini do Brasil, que mede a desigualdade de renda, apresentava melhoras ao longo dos anos. Pelo discurso oficial, o país tinha superado de forma exitosa a crise econômica mundial deflagrada em 2008. A expectativa nacional era de que os brasileiros estariam experimentando um crescimento associado à distribuição de renda. A redução das desigualdades aparecia também na agenda mundial. Nos EUA, maior potência do globo, o movimento Occupy Wall Street chamava atenção para a concentração de renda nas mãos do “1% mais rico”. Mobilizações parecidas ocorriam na Europa, num questionamento, já no início da década, sobre os resultados práticos de um mundo globalizado, em que as fronteiras para a circulação de capitais eram cada vez menores. “Nós somos os 99%” era a frase que simbolizava os atos públicos, boa parte deles encabeçada por grupos mais alinhados à esquerda no espectro político-ideológico.

Onde estamos em 2019

Os protestos de junho de 2013 tomaram o Brasil primeiro pela redução de tarifas de transportes; depois pela melhora nos serviços públicos no geral; por fim, por reivindicações difusas. O Índice de Gini do Brasil reverteria sua curva de melhora já no meio da década, com o país enfrentando uma recessão econômica. A pauta de combate à corrupção tomou o lugar das discussões pela redução da pobreza e da desigualdade, temas que pouco apareceram na campanha presidencial brasileira de 2018. Naquele mesmo ano, enquanto a economia dava passos tímidos em direção à recuperação, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) registrava o aumento da distância entre ricos e pobres. Novos estudos, divulgados na segunda metade da década, viriam, inclusive, a questionar a real distribuição de renda ocorrida nos anos anteriores, um deles assinado pelo World Wealth and Income Database, instituto de pesquisa codirigido pelo economista Thomas Piketty. Essa pesquisa, por exemplo, mostrava que a renda dos mais pobres havia de fato melhorado, mas a renda dos mais ricos também, inclusive de forma mais acentuada (a conclusão foi possível a partir de dados de declaração de imposto de renda, que refletem melhor os ganhos dos mais ricos). Na América Latina, países como o Chile registraram revoltas por melhora nas condições de vida. Na França, os “coletes amarelos” tomaram as ruas pelo mesmo motivo. No mundo, uma classe média pressionada economicamente, alinhada a um pensamento à direita no espectro político-ideológico, deu impulso a novos políticos populistas.


Para onde vamos até 2029

Pedro Ferreira de Souza , sociólogo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)

“Nas últimas quatro décadas, um cabo de guerra entre duas forças opostas ditou os rumos da desigualdade global entre indivíduos. Por um lado, o crescimento acelerado da China, da Índia e outros países asiáticos derrubou a desigualdade de renda média entre países, borrando as distinções características entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. Por outro lado, a desigualdade dentro dos países também aumentou significativamente em várias regiões do mundo, em especial na América do Norte e na Ásia, impulsionada pelo avanço da concentração de renda entre os mais ricos.

O saldo líquido foi uma redução modesta da desigualdade global, que continua extrema. O que mudou mais fortemente foi a feição dessa desigualdade: disparidades entre países estão perdendo importância relativa, enquanto as desigualdades internas aos países ganham cada vez mais relevância. Nas palavras do economista sérvio Branko Milanovic, pioneiro dos estudos sobre desigualdade global, desde o início do século 19 saímos do padrão de desigualdade descrito por Karl Marx para o quadro de Frantz Fanon em meados do século 20. E agora estamos engatinhando no caminho de volta.

Até 2029, provavelmente veremos a continuação dessas tendências, ainda que em ritmo provavelmente mais lento, seja pela desaceleração do crescimento asiático, seja pela relativa estabilização da desigualdade nos países desenvolvidos, como visto nos últimos anos. Podemos, inclusive, projetar algo semelhante para o Brasil: dificilmente veremos grandes reviravoltas no desempenho macroeconômico ou nas nossas questões distributivas.

Caso isso se confirme, viveremos em um país ainda extremamente desigual e em um planeta mais desigual ainda, porém com contornos geopolíticos um tanto diferentes.”

Katia Maia, diretora-executiva da Oxfam Brasil, que atua na busca de soluções para o problema da pobreza, desigualdade e injustiça

“Os sinais não são animadores. A concentração de riqueza está em níveis altíssimos, trazendo perigosas consequências políticas, sociais e econômicas, ampliando as desigualdades e condenando milhões à pobreza. Em 2017, mais de 80% de toda riqueza gerada no mundo ficou nas mãos do 1% mais rico. No Brasil, dados indicam que estamos estagnados no ranking do IDH e já somos o 7º país mais desigual do mundo.

Um cenário de extrema desigualdade nos faz trilhar caminhos perigosos. O populismo de extrema direita está em ascensão e caminha para se consolidar como principal força política na próxima década. Essa vertente tem conquistado corações e mentes com a estratégia do “choque e pavor”, destruindo o Estado de bem-estar social com a promessa de prosperidade meritocrática. Aos que resistem restam a violência, a segregação e mesmo o exílio.

Junte a esse caldo a emergente crise climática e chegaremos em 2029 com um mundo mais beligerante, isolacionista, injusto e intolerante. São nesses momentos de grave crise que germinam oportunidades para novos e melhores caminhos.

Para evitar um mundo próspero e seguro apenas para alguns privilegiados, será preciso reorganizar as forças democráticas e renovar os acordos entre os diversos segmentos da sociedade, tendo a redução das desigualdades, o combate à pobreza e à discriminação e violência contra mulheres, população negra, migrantes, povos indígenas e comunidade LGBTI como prioridades absolutas.”