especial-decada

4.
O baixo valor
da verdade

Em 19 de Dez de 2019

Onde estávamos em 2010

Boatos e mentiras não são uma novidade na vida em sociedade, mas ganharam novo impulso e escala com a vida digital. Blogs e emails foram usados inicialmente para disseminar conteúdo falso. Os “hoaxes”, expressão comum no início da década, podiam ser a respeito da morte de uma celebridade ou da declaração de um político. As redes sociais, porém, começavam a ocupar cada vez mais espaço. Em 2010, a popularização do Twitter proporcionou um meio muito mais eficiente para a transmissão de informações, e também de mentiras. Nas campanhas eleitorais brasileiras, perfis fabricados já agiam em favor de candidatos à presidência. Boatos circulavam contra os dois principais candidatos, Dilma Rousseff e José Serra, via email, Orkut e Twitter. Nos EUA, perfis ajudaram a espalhar a informação de que o então presidente Barack Obama era muçulmano. Análises da época ressaltavam como a identificação com o transmissor colaborava para o compartilhamento irrefletido de notícias, notadamente em conteúdo político. Em 2012, um terço dos jovens adultos americanos dizia se informar por meio de redes sociais, contra 34% por notícias da televisão e apenas 13% em jornais impressos ou digitais. Segundo pesquisa de 2011 do instituto Ipsos Mori, 86% dos brasileiros conectados se valiam da internet para buscar informações sobre saúde, remédios e condições médicas. Os conceitos da pós-verdade, em que as crenças pessoais têm mais influência do que fatos comprováveis, e fake news, conteúdos produzidos deliberadamente para enganar as pessoas, ainda não estavam disseminados.

Onde estamos em 2019

Os termos fake news, desinformação e pós-verdade ganharam projeção. Agentes tradicionais de informação, como as universidades, os institutos de pesquisa e os veículos de mídia profissionais tiveram sua reputação questionada em um ambiente de versões extra-oficiais e teorias da conspiração. Pessoas foram linchadas, doenças ressurgiram a partir de boatos sobre vacinas e ações de empresas caíram na bolsa de valores em meio a notícias falsas. A vitória do Brexit, saída do Reino Unido da União Europeia, em plebiscito de 2016 foi marcada pela desinformação. No mesmo ano, Donald Trump teve apoio de redes organizadas para espalhar fake news. No Brasil, em 2018, a eleição de Jair Bolsonaro ocorreu em meio a um intenso processo de desinformação. Enquanto no exterior o Facebook figurava como principal plataforma para espalhar boatos, no Brasil ganhou força o WhatsApp. As correntes eram alimentadas não apenas por esquemas que tentavam enganar deliberadamente os eleitores, mas também acabaram reforçadas pelo discurso do próprio Bolsonaro, como no caso do chamado kit gay. Com a desvalorização da verdade, iniciativas de checagem de fatos, independentes e vinculadas a veículos tradicionais, se proliferam. Para muitos críticos, a propagação de notícias falsas vai ao encontro dos interesses das empresas por trás das redes sociais. O conteúdo sensacionalista e emocional, características predominantes entre notícias falsas, gera mais compartilhamento e engajamento. Com isso, aumentam o tráfego de dados de usuários e os lucros. Em 2019, o CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, afirmou que retirar da plataforma propaganda política com informações falsas equivaleria a censura.


Para onde vamos até 2029

Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP

“A desinformação – ou a assimilação, por uma sociedade que se imagine livre, de preconceitos, crendices e ódios irracionais como se fossem a expressão da verdade factual – é um problema de dimensões civilizacionais. Quando o fundamento das decisões coletivas perde conexão com os fatos e com a razão e se deixa pautar pelo fanatismo (que, no limite, nega a política em prol da violência e nega a democracia em prol da tirania e do isolamento, da segregação), o que se apresenta é a morte dos ideais do liberalismo e das conquistas humanitárias da liberdade e da justiça social. Como eu disse, o problema tem dimensões civilizacionais.

Uma das saídas para o impasse é a regulação. O mercado se revelou incapaz de conter as vagas de fanatismo que, entre outras coisas, remuneram o capital. É necessário que marcos regulatórios corrijam a disfunção e quebrem monopólios como Facebook e Google, que ganham dinheiro e poder com a exploração da desinformação (potencializada pelo incremento do big data, da inteligência artificial e do manuseio oculto de dados pessoais em grande escala). O mercado das ideias precisa funcionar com base na livre concorrência e na transparência de procedimentos; precisa respeitar e promover o valor da diversidade e da pluralidade. Nos moldes atuais, esse mercado vem levando o público a tomar decisões que não tomaria se soubesse do que se passa. Esse mercado, a usina da desinformação, leva a democracia a produzir industrialmente a antidemocracia.

A regulação não pode faltar ao encontro. As arenas centrais serão os Estados Unidos e a União Européia. Veremos.”

Patrícia Rossini, professora do departamento de Comunicação e Mídia da Universidade de Liverpool, Reino Unido

“A intensa circulação de notícias falsas ou exageradas tem contribuído para o crescimento do ceticismo em relação ao jornalismo e para um cenário de opinião pública confuso. Embora exista consenso em relação ao problema da desinformação, há pouco suporte empírico sobre os seus efeitos e falta nuance no debate sobre causas e sintomas.

A referência frequente ao uso de contas automatizadas (bots) no Twitter para disseminar desinformação, por exemplo, parece ignorar o fato de que elas possuem pouca capacidade de influência no debate público. No WhatsApp, grupos de transmissão de notícias falsas refletem a experiência de uma parcela limitada de usuários — segundo dados da empresa, nove a cada dez mensagens são enviadas em chats privados.

O foco em mecanismos, como bots ou grupos de WhatsApp, desvia a atenção do fato de que a desinformação não é um problema causado pelas mídias digitais, mas um sintoma da erosão da confiança nas instituições que estruturam a sociedade. As redes sociais intensificam o problema: o volume de informações disponíveis, aliado à desconfiança nos intermediários (como o jornalismo), contribui para a ilusão de que as pessoas possuem acesso direto à verdade e não precisam da mídia para se informar.

Na próxima década, veremos iniciativas de combate à desinformação focadas na distribuição, com a regulamentação das plataformas digitais para aumentar a responsabilidade e a transparência sobre a distribuição, a moderação e a monetização de conteúdos. Também veremos iniciativas focadas na recepção, como o letramento digital. Embora bem-vindas, essas soluções revelam uma preocupação maior com os sintomas do que com as causas do problema. É preciso que o debate sobre a desinformação seja menos guiado por mecanismos e usos oportunistas das tecnologias disponíveis e mais focado em revitalizar as instituições democráticas.”