5.
O esvaziamento
da política
Em 20 de Dez de 2019
Onde estávamos em 2010
Barack Obama chegava a seu segundo ano de mandato na condição de primeiro presidente negro da história dos EUA. Dilma Rousseff tornava-se a primeira mulher eleita presidente do Brasil. No cargo, Dilma dava sinais de que a tolerância aos escândalos de corrupção seria reduzida a partir dali, com a chamada “faxina” no primeiro escalão. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, condenava boa parte da cúpula do PT, partido do governo, no julgamento do mensalão em 2012. Era um forte sinal das instituições contra a impunidade. No Chile, direita e esquerda se revezavam, com a socialista Michelle Bachelet passando a faixa para Sebastián Piñera, que depois lhe devolveria o mesmo gesto. O pêndulo ideológico movia-se nos países mais influentes do Cone Sul, dando a impressão de que a redemocratização havia por fim prosperado. A exceção estava na Venezuela, onde o bolivarianista Hugo Chávez ultrapassava uma década no poder, e onde permaneceria até morrer de câncer, em 2013, com o país vivendo o que se tornaria uma profunda crise política, econômica e humanitária. Em 2011, a Primavera Árabe provocava mudanças profundas no Oriente Médio e na região do Magreb. Governos caíram na Tunísia, no Egito, no Iêmen e na Argélia. Na Líbia e na Síria, revoluções desembocaram em guerras civis de resultados ainda incertos. Em todos esses contextos, as redes sociais foram relevantes nas mobilizações políticas. Seu poder seria testado no Brasil nas Jornadas de Junho de 2013, movimento de contornos ideológicos difusos que derrubou a popularidade dos governantes e começou a colocar em xeque o sistema representativo da política brasileira.
Onde estamos em 2019
Em dez anos, a política tradicional se esvaziou – as promessas de alargamento da participação deram lugar à emergência de uma onda nacionalista, conservadora e, em muitos casos, autoritária. Projetos internacionais de convergência, como a União Europeia, foram bombardeados. No golpe mais duro até então, o Reino Unido decidiu por estreita maioria, em 2016, desligar-se desse ambicioso plano de integração, levando a cabo o Brexit. A extrema direita teve vitórias na Hungria, na Polônia, na Áustria e na Itália, enquanto na França, na Alemanha e na Espanha cresceu de forma inédita desde o pós-Guerra. Atos antissemitas também aumentaram. A eleição de Donald Trump, nos EUA, em 2016, fortaleceu candidaturas semelhantes em outras partes do mundo. A desconfiança com os políticos e os partidos tradicionais atingiu níveis inéditos. Votos de protestos apareceram claramente na Nicarágua, na Ucrânia e na Itália, onde humoristas de carreira fundaram movimentos políticos que chegaram ao poder. A Venezuela consolidou-se como o maior foco de disputa político-ideológica e de instabilidade na América Latina. Protestos e violência marcaram ainda o fim da década no Chile, no Equador, no Peru e na Bolívia, onde Evo Morales, em busca de um quarto mandato, renunciou sob ameaça de golpe. No Brasil, a Lava Jato escancarou um megaesquema de corrupção na Petrobras. Dilma sofreu impeachment em 2016. O vice Michel Temer assumiu com um programa de reformas liberais e, em seguida, o capitão reformado do Exército e ex-deputado Jair Bolsonaro, defensor da ditadura militar e de seus torturadores, chegou ao poder apoiado na força das redes sociais, com uma campanha marcada pela desinformação e pela violência política (o próprio Bolsonaro chegou a levar uma facada). No governo, o presidente toca reformas liberais na economia enquanto ataca universidades e organizações da sociedade civil, em áreas como ambiente e cultura.
Para onde vamos até 2029
David Magalhães, Professor de Relações Internacionais da PUC-SP e da Faap e fundador do Observatório da Extrema Direita
“Movimentos, partidos e lideranças reacionárias e antiliberais circulam nas democracias ocidentais desde o final da Segunda Guerra Mundial (1945). A novidade é que na última década a direita radical ergueu-se do subsolo, despontando das margens do sistema político, para ocupar uma posição central em diversas democracias do mundo. Deixou de ser underground para tornar-se mainstream. Quando são governo, como na Hungria, dilaceram em doses homeopáticas as instituições liberais. Quando são oposição, como a AfD na Alemanha, pautam o debate público, atraindo os partidos de centro para suas agendas nativistas e contrárias ao pluralismo.
Trata-se de uma onda global e não há razões para crer que ela irá serenar na próxima década. Isso porque as causas estruturais que sustentam a emergência da direita radical não apenas continuam presentes, como se intensificaram. Destaco três.
Primeiramente, a democracia liberal continua em crise. Há um desalento generalizado e crescente com as elites políticas que se soma à percepção de que os partidos tradicionais governam apenas para atender aos ‘caprichos das minorias’: em suma, muito liberalismo [como corrente filosófica que defende direitos das minorias] e pouca democracia [como instituições que traduzem as demandas majoritárias da população]. O nacional-populismo tem se valido desse sentimento para defender o retorno à democracia majoritária que, na prática, se revela tirania da maioria. Em segundo lugar, as raízes econômicas que asseguram a escalada da direita radical não se alteraram: estagnação da classe média, desigualdades de renda, frustração com a globalização e o ressentimento em regiões pós-industriais. Finalmente, é preciso destacar que as pautas identitárias estão ganhando força, sejam elas reivindicadas em termos raciais, culturais, nacionais ou religiosos. Trata-se de um significativo revés na euforia cosmopolita e universalista do pós-Guerra Fria.
Com poucas chances desse complexo quadro estrutural ser alterado no curto prazo, a onda do populismo reacionário continuará a investir contra as democracias nos próximos anos.”
Maik Fielitz, membro do Instituto de Pesquisa de Políticas para a Paz e a Segurança, da Universidade de Hamburgo, na Alemanha, e do Carr (Centro de Análise da Direita Radical, em português)
“É inegável: 2010 marcou a década da era de ouro para a extrema direita no mundo. Nesse período, nós pudemos testemunhar as diferentes facetas dos políticos desse setor. Seus partidos tornaram-se parte inerente da cena política, enquanto movimentos de rua ganhavam terreno protestando contra o islamismo e contra a imigração, ao mesmo tempo que terroristas de extrema direita semeavam o medo em atentados como os de Oslo [na Noruega, com 77 mortos em 2011] e de Christchurch [na Nova Zelândia, com 51 mortos em 2019].
Esses eventos têm sido discutidos como algo novo e como um fenômeno temporário, mas temos de admitir: eles não desaparecerão na próxima década. Em vez disso, eles vão expandir e desafiar os fundamentos dos valores democráticos ainda mais. Podemos elencar três cenários. No primeiro deles, há uma profissionalização ainda maior das políticas de extrema direita mediadas digitalmente.
Não é coincidência o fato de o crescimento da extrema direita coincidir com a proliferação das redes sociais. Essas redes proveem uma infraestrutura global para a extrema direita e permitem que esse setor apareça explicitamente, com uma face modernizada. Os esforços de manipulação e desinformação serão levados, portanto, a um novo patamar. Em segundo lugar, é provável que, com mais partidos de extrema direita governando, vejamos mais instituições balançando. A fragilidade global das normas liberais, dos tratados de comércio e dos pactos ambientais serão desafiados pelo nacionalismo protecionista. Em tempos de catástrofe climática, a abordagem dos negacionistas de extrema direita terá tremendas consequências globais.
Em terceiro lugar, é preciso lembrar que a normalização das políticas de extrema direita implicará na redução das liberdades de diversas minorias, como já vem sendo notado por acadêmicos e pela imprensa. A extrema direita tentará dar um passo além na transformação autoritária oprimindo qualquer pensamento crítico e subordinando todos os aspectos da vida aos ideais de refundação nacional.
Ainda assim, há razões para esperança. A maioria dos movimentos globais pelo clima, contra a desigualdade e pela paz têm uma visão muito mais brilhante do futuro do que os prospectos distópicos da extrema direita. Na década que se inicia, a verdade e a solidariedade serão vitais para enfrentar as estratégias divisionistas e os esforços de polarização dessa extrema direita.”
Produzido por João Paulo Charleaux
Desenvolvimento por Thiago Quadros
Arte por Guilherme Falcão
Edição por Conrado Corsalette
©2019 Nexo Jornal
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