Joana Salém Vasconcelos
Temas
Compartilhe
A historiadora e pesquisadora Joana Salém Vasconcelos recomenda cinco obras para se aprofundar na história recente do Chile – que em outubro de 2019 passa por processo de convulsão social
Desde os anos 1990, se dissemina a ideia de que existe um “modelo chileno” de capitalismo bem-sucedido. Por sua estabilidade política e indicadores de crescimento econômico, o país foi associado a um neoliberalismo que deu certo. No entanto, existem fartas razões para considerarmos que o modelo chileno não é propriamente um bom exemplo.
Em outubro de 2019, olhos de todo mundo se voltaram para o país. O aumento de 30 pesos (17 centavos de real) na tarifa do metrô foi o gatilho de um processo de revolta popular sem precedentes. Estações do metrô foram incendiadas e milhões de manifestantes ocuparam as ruas. Ao declarar estado de emergência, o presidente Sebastián Piñera desencadeou uma onda de repressão militar que evocou os tempos da ditadura( 1973-1990), o espectro da tortura e do desaparecimento.
De onde veio tamanha crise? Não se trata de um raio em céu azul. Observadores atentos sabem que os alarmes soaram bem antes da explosão. O endividamento familiar no Chile é quase o dobro do brasileiro, cerca de 73% da renda. O custo de vida é alto e os salários são baixos. Não existe pleno direito de greve, nem garantias de estabilidade laboral. O país está entre os 15 mais desiguais do mundo. Não há gratuidade na educação, nem sistema público de saúde. A aposentadoria está entre as mais precárias do continente. Nesse quadro, os indicadores de renda per capita e crescimento econômico parecem abstrações, porque não correspondem ao mal-estar social que assola o país há décadas.
Selecionei cinco livros que ajudam a entender essa história.
Peter Winn (São Paulo: Ed. Unesp, 2009)
A convite de Emília Viotti da Costa, o historiador Peter Winn escreveu uma brilhante síntese dos dilemas do governo de Salvador Allende e sua coalizão de partidos, a Unidade Popular, para a coleção brasileira “Revoluções do Século XX”. São narradas as principais controvérsias da revolução, entre os setores da esquerda moderada, que acreditava na legalidade do processo de mudanças, e da esquerda radical, que alertava para necessidade de uma política disruptiva. São analisadas as tensões entre poder popular e poder estatal. Muitos desses dilemas explicam ainda hoje os limites do aprofundamento democrático na América Latina. Sobre a revolução chilena e o governo de Allende, recomendo ainda outros três títulos em português: “O Protagonismo Popular: experiências de classe e movimentos sociais na construção do socialismo no Chile”, de Marcia Cury (2017); “Con la Unidad Popular ahora somos gobierno!” A experiência dos Cordones Industriales no Chile de Allende, de Elisa de Campos Borges (2015); e “Allende e as Armas da Política”, de Joan Garcés (1993).
María Angélica Illanes Oliva (Santiago: Lom, 2012)
A historiadora María Angélica Illanes atravessa o século 20 costurando as vidas de muitas mulheres chilenas, do campo e da cidade, que tem em comum a necessidade de superar situações precárias, com rebeldia e engajamento. Participam da narrativa as canções de Violeta Parra, evocando poeticamente a diversidade feminina e popular. O livro parte da história de uma tipógrafa de Valparaíso, que em 1905 resolveu fundar um jornal. Explica o Movimento Pró-Emancipação das Mulheres do Chile nos anos 1930. Conta a vida de mulheres nas minas de salitre, de camponesas, de professoras, de advogadas que lutaram por direitos sociais. Biografa as militantes que se associam a partidos políticos diversos. Trata da via chilena ao socialismo na perspectiva da emancipação feminina; e demonstra a repressão contra as mulheres durante a ditadura. Enfim, alcança a década de 1990, assinalando os limites das políticas para mulher na democracia.
Pablo Marimán, Sergio Caniuqueo, José Millalén e Rodrigo Levil (Santiago: Lom, 2006)
Parodiando o clássico “Escuta, yanqui! A revolução cubana” (C. Wright Mills, 1961), quatro intelectuais mapuche escreveram “Escuta, winka”. Winka, para os indígenas, é o termo em mapudungum que designa os povos brancos invasores. Os autores definem seu trabalho como “um grito de colonizados para outros colonizados e, ao mesmo tempo, para o colonizador”. Trata-se da história cultural, social e territorial dos diversos povos dentro da etnia mapuche, que outrora ocuparam 10 milhões de hectares do Wallmapu (ou a terra ao redor). Esse território foi usurpado em diferentes ondas de invasão. O primeiro ensaio aborda a sociedade mapuche pré-hispânica; o segundo analisa as sociedades e a organização da vida mapuche antes da conquista militar chileno-argentina, consolidada em 1883; um terceiro, explica a fragmentação de Wallmapu e as políticas indigenistas de colonização e redução do século 20 (1880-1978); e por último, há um ensaio sociológico sobre a sociedade mapuche contemporânea. O livro se encerra com um epílogo político que propõe resistência e mobilização étnico-nacional autônoma, ligando séculos de história indígena ao presente e ao futuro das suas comunidades.
Ariel Dorfman (São Paulo: Companhia das Letras, 2003)
Ariel Dorfman é um argentino nascido em 1942, que aos 12 anos mudou-se com a família para o Chile. Lá viveu sua juventude e naturalizou-se chileno em 1967. Durante a abreviada presidência de Salvador Allende, trabalhou como conselheiro cultural do governo. Esse livro é uma mistura de testemunho e ensaio que conta, em tom pessoal, a história da prisão de Pinochet em Londres entre 1998 e 1999, quando o juiz espanhol Baltasar Garzón, seguindo as pistas articuladas pelo jurista catalão Joan Garcés, pediu a extradição do ditador da Inglaterra para Espanha embasado por uma acusação de genocídio e lesa-humanidade. Dorfman rememora o caráter fantasmagórico e violento da figura do ditador chileno na história política do país e na sua própria trajetória de vida, articulando relatos sobre a ditadura, sobre o julgamento inglês da extradição de Pinochet para a Espanha e, especialmente, sobre a dificuldade de um país se livrar das sombras da sua mais brutal experiência.
Tomas Moulian (Santiago: Lom, 1997)
“Considero o Chile atual uma produção do Chile ditatorial”, afirma o sociólogo Tomas Moulian no primeiro capítulo do seu livro, que rapidamente se tornou canônico. Nos anos 1990, contexto em que o modelo chileno era exaltado por indicadores econômicos, Moulian desafiou o senso comum demonstrando o mal-estar social oculto por trás dos números. Para ele, a ditadura chilena conseguiu produzir um apagamento do Chile anterior, imposto pelo terror de Estado e pela ideologia do “Pinochet necessário”. O autor explica a democracia chilena como uma “jaula de ferro”, protetora da Constituição da ditadura, estruturada por poderes fáticos do regime militar e promotora de valores privatizantes e individualistas. A anatomia do mito mostrava que a impunidade, a continuidade autoritária e a cisão entre sociedade e política tornaram o Chile o berço latino-americano do “cidadão credit-card”. O livro é uma análise bem-sucedida da subjetividade neoliberal, antecipando teses de autores europeus, como Dardot & Laval.
Joana Salém Vasconcelos é historiadora, mestre em desenvolvimento econômico pela Unicamp e em doutoranda em história econômica na USP. Desenvolve pesquisa sobre América Latina, especialmente Cuba e Chile.
*Caso você compre algum livro usando links dentro de conteúdos do Nexo, é provável que recebamos uma comissão. Isso ajuda a financiar nosso jornalismo. Por favor, considere também assinar o Nexo.
Destaques