O que é visibilidade lésbica, segundo 3 mulheres
Mariana Vick
29 de agosto de 2020(atualizado 28/12/2023 às 23h29)O ‘Nexo’ conversou sobre a comemoração de agosto com a escritora Natalia Borges Polesso, a cantora Bia Ferreira e com a ativista Marcelle Fonseca, que faz parte da Marcha das Lésbicas e Bissexuais de Belo Horizonte
Casal de mulheres se beija durante Parada LGBTI em frente ao Congresso Nacional, em Brasília
Mulheres lésbicas brasileiras comemoram em 29 de agosto o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica , data que foi criada por ativistas para pôr em evidência causas específicas das mulheres lésbicas no país e se contrapor ao que consideram um apagamento das vivências e da luta política travada por elas dentro do movimento LGBTI nacional.
O dia faz referência à primeira edição do chamado Senale, o Seminário Nacional de Lésbicas, organizado no país desde 1996. A reunião tratou de temas relacionados à violação de direitos das brasileiras em razão de sua orientação sexual e tornou-se um espaço inédito para discutir temas antes ignorados em rodas de discussão com grupos mistos.
As ativistas comemoram a data pouco depois do Dia do Orgulho Lésbico, que acontece no país em 19 de agosto em memória da manifestação conhecida como “ Stonewall brasileiro”. Nesse dia, em 1983, mulheres do Grupo Ação Lésbica Feminista ocuparam um bar LGBTI em São Paulo, o Ferro’s Bar, para protestar contra preconceitos que partiam de homens no local.
Ambas as datas marcam momentos em que grupos de mulheres lésbicas organizaram-se politicamente, reivindicando mais espaço em um movimento que, apesar de comportar diversas identidades LGBTI (incluindo gays, lésbicas, bissexuais, trans e intersexuais, entre outras), ainda é protagonizado por homens gays, segundo ativistas.
Ainda hoje, apesar de avanços recentes nos direitos LGBTI, mulheres lésbicas aproveitam os marcos do mês de agosto para buscar visibilidade e protestar contra a chamada lesbofobia, que envolve desde a discriminação das relações afetivas entre mulheres até negligências na área de saúde e casos frequentes de violência .
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mulheres lésbicas foram assassinadas no Brasil em razão de discriminação contra sua orientação sexual entre 2000 e 2017, segundo o relatório Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil, publicado em 2018
Por outro lado, as datas servem para lembrar a memória de militantes, artistas e intelectuais da história do movimento lésbico brasileiro, como Rosely Roth e Míriam Martinho, que participaram do levante no Ferro’s Bar. Os dias também celebram a própria existência de mulheres que amam mulheres — um ato considerado revolucionário em uma sociedade centrada na figura masculina, segundo as ativistas.
O Nexo fez a uma ativista, uma escritora e uma artista engajadas em divulgar a causa das mulheres lésbicas a seguinte pergunta: O que é a visibilidade lésbica em 2020, e qual a importância de reivindicá-la ainda hoje? Veja as respostas abaixo.
“A visibilidade tem relação com a necessidade de que as pautas lésbicas sejam tratadas de forma pública, ampla e sem meios-termos. Primeiro, precisamos que a saúde seja pensada para mulheres lésbicas em razão de sua sexualidade — que muitas vezes é desmerecida, considerada uma sexualidade menor. Muitas mulheres lésbicas já passaram por violência ginecológica [quando há constrangimento ou abuso em consultas com ginecologistas], por exemplo.
Por isso, precisamos pensar na educação dos nossos profissionais. Não apenas médicos, mas psicólogos, advogados e até mesmo o nosso Judiciário — para que entendam as famílias formadas por mulheres. São famílias de mulheres que às vezes vão ter adotado uma criança, ou tido uma criança por inseminação artificial.
Ou que, ainda, vão ser formadas por uma mulher bissexual e uma mulher lésbica, ou por uma mulher que um dia se entendeu hétero ou bissexual, teve um filho biológico, mas agora se entende lésbica. São várias possibilidades dentro do que é ser mulher — e uma mulher que, em dado momento da vida, decidiu, percebeu ou escolheu centrar seus afetos exclusivamente em mulheres.
A visibilidade é isto: é ter essa discussão de forma ampla, respeitosa, sem que eufemismos sejam usados para se tratarem a nós — ou que, ainda, escolham não falar sobre nós. Neste mês, muitos políticos e celebridades que postam constantemente sobre minorias nas redes sociais ignoraram o mês da visibilidade lésbica. Foram poucas as políticas que comentaram o assunto, e as que comentaram eram lésbicas ou bissexuais. Assim, percebemos que a invisibilidade é cotidiana na nossa história, na nossa vida.
O mês de agosto não foi escolhido aleatoriamente no calendário. Ele tem duas marcas dentro do movimento de lésbicas [o levante no Ferro’s Bar e o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas] que mostram como temos força política, de organização e de união para lutarmos por nossas pautas. É um mês marcado pelo levante da voz da mulher lésbica contra a opressão, o silenciamento e a censura, contra ter suas demandas atravessadas por serem consideradas menores.
A visibilidade e o orgulho são importantes por isto: porque evocam memórias de luta — uma luta que ainda existe. A gente avançou pouco em nossas pautas e conquistas, porque ainda é muito difícil ouvir as mulheres. A voz feminina é muito abafada. Se essa mulher, então, é lésbica, ela vai ser mais silenciada e atravessada ainda. Por negar as relações centradas na figura masculina, ela é vista com desconfiança, como uma rebelde.
Por isso luto tanto pela Caminhada Lésbica de Belo Horizonte, por exemplo. É uma das grandes paixões da minha vida. É um momento de ato político, de visibilidade política para todas nós. Tanto é que, mesmo com a pandemia, estamos fazendo uma versão virtual do evento, com publicações diárias sobre o tema. Para quê? Para a gente marcar o mês dentro da possibilidade que temos. Não vamos deixar de celebrar e de lembrar a memória de agosto.
Ser lésbica é mais do que uma sexualidade para mim. É meu sujeito político e social dentro de uma sociedade extremamente misógina, compulsoriamente heterossexual e extremamente violenta com nossas histórias, vivências e corpos. É ser resistência, ser luta constante contra nossa visibilidade. Ser lésbica é revolucionário: é todos os dias fazer uma revolução apenas por existir. ”
“Por que visibilidade?Neste momento, temos que pensar a visibilidade de uma perspectiva diferente. Toda a nossa visibilidade, nossos movimentos e lutas são feitos na rua. Mas, agora, estamos impossibilitadas de sair, em função da pandemia e diante de nossa responsabilidade social nesta crise.
Acho que, agora, visibilidade — além de se fazer presente — é poder viver a vida com dignidade. Viver nossa vida, ocupar os espaços com dignidade. Seja esse espaço a rua ou o espaço da nossa casa, ou da casa em que a gente está neste momento, com as pessoas que temos que dividir esse espaço por enquanto.
Para mim, visibilidade também é saber enxergar a outra. Saber reconhecer a outra e entender que, dentro do movimento lésbico, existe uma pluralidade de mulheres. São mulheres brancas, mulheres negras, mulheres lésbicas trans , travalésbicas. Essas intersecções nos afetam de maneiras muito distintas. Tudo isso tem que ser considerado e respeitado para que, juntas, a gente consiga viver, de fato, com essa dignidade, enquanto coletivo. A luta se faz mesmo na coletividade. ”
“Quando penso na visibilidade e no porquê da necessidade da visibilidade lésbica, penso que é preciso fazer um recorte racial. A visibilidade lésbica existe. Você vê na música brasileira Cássia Eller, Simone, Zélia Duncan, Adriana Calcanhoto, Angela Ro Ro… Nunca foi tabu ser lésbica na música. A diferença é que são lésbicas brancas.
A gente deveria pensar também na visibilidade lésbica preta e indígena. Se eu pedir para você falar agora o nome de uma sapatão indígena, você provavelmente vai ter dificuldade de falar. Se eu pedir para você o nome de uma cantora preta, uma mulher de renome preta e sapatão, você vai citar três nomes viciados. Talvez Leci Brandão, Martnália, Sandrá de Sá. Ou Ellen Oléria, se você lembrar. Mas a gente não tem referência de mulheres pretas e lésbicas em espaços de poder. Precisamos falar disso.
A visibilidade lésbica é necessária para que a gente possa fazer esse recorte racial e lembrar que, embora as mulheres lésbicas brancas tenham visibilidade menor nessa sopa de letras que é a sigla LGBTQIA+ [sigla para lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer, intersexuais, assexuais e mais], nós, mulheres pretas e lésbicas, somos mais invisibilizadas. A gente tem muito menos espaço.
Existem várias mulheres pretas e sapatões. Vou deixar aqui: [as cantoras] Dani Nega, Mahmundi, Ellen Oléria, Cacau de Sá… Precisamos falar dessas mulheres. A visibilidade lésbica não acontece para elas. Não basta você cantar muito, não basta ser uma ótima profissional em qualquer área, se você é sapatão e preta você provavelmente não tem visibilidade.
É por isto que a gente criou o Baile da Igreja Lesbiteriana: para que pessoas LGBTQIA+ pretas consigam se ver representadas num baile feito para elas, com o protagonismo delas, com DJs parecidos com elas, com outras pessoas parecidas com elas, que não vão promover nem fomentar a invisibilização dos corpos pretos.
O que falta para a gente, enquanto movimento LGBTQIA+, é racializar o debate. Dizemos que todos somos iguais, que todos somos LGBTQIA+, mas não é assim. Quando fazemos o recorte racial, entendemos que as travestis que mais morrem são pretas, que as lésbicas que mais morrem são pretas. Dificilmente um policial bateria até a morte em uma sapatão branca como aconteceu com Luana Barbosa [assassinada em 2016] em Ribeirão Preto [cidade paulista]. Ela só morreu porque era preta.
Fazendo esse recorte, mostramos que a visibilidade lésbica acontece quando entendemos que esses corpos existem — e que esses corpos são corpos de mulheres. O corpo da sapatão preta não é visto como um corpo de mulher. Essa mulher preta, então, que já é anulada no lugar de mulher, de mulher lésbica, é vista pelo Estado como um homem preto. E sabemos que a cada 23 minutos um homem preto é assassinado no Brasil [segundo uma pesquisa de 2017].
Precisamos parar para pensar nisso. Quando falarmos de novo em visibilidade lésbica, que seja pela visibilidade de lésbicas indígenas, de lésbicas pretas. Porque, quando estiver bom para essas mulheres, vai estar bom para todo mundo. ”
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