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Tem um conto meu que eu não compreendo muito bem.

Que conto?

“O ovo e a galinha”

Entre os seus diversos trabalhos, sempre existe, e isso é natural, aquele que é o predileto. Qual é aquele que você vê com maior carinho até hoje?

“O ovo e a galinha”. É um mistério pra mim.

FOTO: Reprodução / TV Cultura / Thiago Quadros

EXPRESSO

Os enigmas de Clarice Lispector a partir de ‘O ovo e a galinha’

Aline Pellegrini 10 de dez de 2020

Escritora dizia não entender conto que ela mesma escreveu. O ‘Nexo’ revisita o texto na data de 100 anos de seu nascimento

O trecho que você leu inicialmente, ao rolar a tela até aqui, foi retirado de uma rara entrevista concedida por Clarice Lispector. A pedido da escritora, a conversa com o jornalista Júlio Lerner só foi ao ar na TV Cultura depois da sua morte, em 1977, dez meses após a gravação. Nesta quinta-feira (10), a autora, que morreu um dia antes de seu aniversário, faria cem anos.

Um dos principais nomes da literatura brasileira, Clarice Lispector nasceu Haia Lispector numa aldeia ucraniana chamada Tchetchelnik, em 1920, enquanto a família se preparava para emigrar, fugindo da constante perseguição antissemita. Em 1922, os Lispector chegaram ao Brasil, onde adotaram novos nomes. Clarice estudou direito, trabalhou como secretária em um escritório de advocacia e, em 1940, tornou-se redatora e repórter da Agência Nacional.

O primeiro romance da escritora, “Perto do coração selvagem”, lançado em 1943, dividiu a crítica — parte ficou incomodada com o trabalho, outra parte ficou entusiasmada seu estilo inovador. Entre os entusiastas estava Sérgio Milliet. Em janeiro de 1944, ele escreveu em sua coluna no jornal O Estado de S. Paulo: “A obra de Clarice Lispector surge no nosso mundo literário como a mais séria tentativa de romance introspectivo. Pela primeira vez um autor nacional vai além, nesse campo quase virgem de nossa literatura, da simples aproximação; pela primeira vez um autor penetra até o fundo a complexidade psicológica da alma moderna, alcança em cheio o problema intelectual, vira no avesso, sem piedade nem concessões”.

A necessidade que a escritora tinha de escrever gerou uma obra abrangente, que vai dos: aclamados romances “A paixão segundo G.H.” (1964) e “A hora da estrela” (1977) às coletâneas de contos “Laços de família” (1960), “A legião estrangeira” (1964) e “Felicidade clandestina” (1971). Escreveu cinco livros infantojuvenis e um grande número de crônicas, algumas reunidas nos livros “Para não esquecer”, que contém também pensatas, piadas e aforismos, e “A descoberta do mundo”, composto de 468 crônicas publicadas originalmente na coluna semanal que ela mantinha entre os anos de 1967 e 1973 no Jornal do Brasil.

Convidada em 1975 para participar do 1º Congresso de Bruxaria em Bogotá, Clarice aceitou o convite. Na capital colombiana, não falou sobre bruxaria. Em vez disso, leu o conto que ela mesma considerava ser seu texto mais enigmático: “O ovo e a galinha”, que integra o livro “A legião estrangeira” (1964). O Nexo perguntou a especialistas na obra de Clarice qual a visão delas sobre o mistério em torno desse conto.

‘A impossibilidade de desvendar o outro’

  • Yudith Rosenbaum é crítica literária, professora da USP (Universidade de São Paulo) e psicóloga. Autora dos livros “Metamorfoses do mal: Uma leitura de Clarice Lispector” (Edusp/Fapesp) e “Clarice Lispector” (Publifolha)

“Acho que uma das questões principais do conto para mim é que ele trata justamente da impossibilidade de desvendar o outro, que no caso é esse ovo, que pode representar muitos outros objetos, seres, coisas que o sujeito quer conhecer, quer desvendar, através da metáfora do olhar: ver o ovo. Ver o ovo significa capturar o ovo sem que o entender perturbe esse contato. Eu acho que tudo gira em torno da impossibilidade desse ovo se entregar ao conhecimento desse sujeito que quer desvendá-lo. Se entender demais o ovo [, ele] se esvai do olhar de quem o vê.

Quem é esse sujeito que olha? É uma dona de casa: “de manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo”. É um ato bem prosaico, cotidiano. Como tudo na Clarice começa do e no cotidiano, das coisas mais simples. E esse conto não é diferente dos encontros entre sujeitos e objetos dos outros contos também.

Talvez esse conto seja, entre outras coisas, uma espécie de apologia do não entender através da razão estrita. Em princípio, é um objeto fácil de classificar, de colocar numa gavetinha qualquer da nossa razão, do nosso pensamento utilitário. Mas esse ovo escapa. Esse ovo não admite ser colocado em um quadrado, porque Clarice vai mudando as tentativas de compreender o ovo. Ele vai se tornando tudo, participando de muitas esferas.

“Essa procura está em toda obra de Clarice. Ela diz que escrever é procurar. Procurar o quê? Talvez seja procurar o que ela sempre chama de ‘a coisa’”

Yudith Rosenbaum

No fundo, ele é uma espécie de vazio onde se pode jogar projeções e significações. Há uma tentação de defini-lo: “Ah, então o ovo é a origem, o ovo é a perfeição”, “ah, então o ovo simboliza algo dentro do esquema da maçonaria”. Só que nenhum esquema resolve, pode ser lógico, não-lógico, mágico, planetário. Ele não se reduz a nada com que a gente queira encerrar o que se vê como forma de dominação.

Esse conto é muito poderoso nesse sentido. Nós queremos dominar o outro e trazê-lo para os nossos esquemas mentais, imaginários, mas o outro resiste ao gesto de “colonização” de seu território. O ovo só pode ser capturado no seu presente, mas imediatamente ele já é passado, ou ele já é futuro. Ele escapa, porque o presente dele não é inteligível.

Essa procura está em toda obra de Clarice. Ela diz que escrever é procurar. Procurar o quê? Talvez seja procurar o que ela sempre chama de ‘a coisa’. A escrita dela é a procura da coisa. Essa coisa que tantos críticos já tentaram saber o que é. Certamente não se reduz ao objeto ovo, um objeto utilitário, embora ela fale: o ovo só existe quando eu quebro ele na frigideira. Quer dizer, o ovo existe em situação. Ela não consegue apreender o cerne do ovo, aquilo que é quase essencial, universal. Isso não está ao alcance das palavras. No entanto, eu acho que só as palavras conseguem contornar esse mistério.

Esse conto para mim é exemplar nesse sentido. Ele é uma apologia de não entender. Não entender talvez seja o modo mais eficiente de entrar em contato com as coisas, porque não tem nada entre você e o objeto, entre você e o outro. Você não está intelectualmente tentando aprender — você está existindo em contato com o outro. Talvez só assim seja possível para Clarice alguma coisa surgir espontaneamente. Ela fala assim: eu tenho que andar distraída, é distraída que eu vou acessar a coisa. Tudo ao contrário do que o senso comum fala que é conhecimento. Para Clarice, conhecer é se deixar ser sem interferir.

“Eu acho que ela quer procurar as coisas, mas ela tem muita consciência de que isso, no fundo, é impossível, é inesgotável”

Yudith Rosenbaum

A narradora afirma que a galinha não sabe que ela tem o ovo, porque se ela souber que tem o ovo pode estragá-lo. É muito maluco esse texto, vamos confessar, mas é muito sério ao mesmo tempo. Um dia eu o li, mas li sem pensar muito. Foi nesta vez que eu senti que eu estava mais perto dele. Mas depois que eu saí do “transe”, a experiência se desfez: ai meu deus, o que foi mesmo que eu aprendi?

Ver o ovo é impossível, diz Clarice. Acho que estamos diante da impossibilidade, mas ao mesmo tempo ela não desiste. Por outro lado, se você desvendar o mistério é acabar com o mistério, e as coisas precisam ter essa neblina. Ela quer mostrar que as coisas são opacas no fundo. Se você devassar as coisas, você as destrói.

Eu acho que ela quer procurar as coisas, mas ela tem muita consciência de que isso, no fundo, é impossível, é inesgotável. Por isso ela usa frases muito curtas, sem subordinação, ou seja, nada se subordina a nada, assim como o ovo não se subordina ao narrador, a essa dona de casa. O outro é irredutível à minha vontade e ao meu poder. Eu acho isso revolucionário no conto: o ovo não se submete. É uma coisa tão pequena, que eu posso destruir com uma mãozada, mas, no jogo do conto entre o narrador e o ovo, o ovo vence! Na vida ele é um oprimido, coitado, porque alguém vai quebrar esse ovo, mas no conto, na linguagem, ela põe o ovo em um outro lugar, em um lugar inalcançável, incompreensível, indizível.

Talvez porque seja indecifrável, esse conto é uma síntese muito poderosa. O enredo é pífio: uma dona de casa vendo o ovo e depois de algumas páginas ela quebra o ovo. Acontecem muitas poucas coisas nos contos da Clarice, tudo é um pouco a reverberação, a ressonância e a repercussão. São tentativas de aproximação de um objeto esquivo. E o que acontece de mais importante no conto são as reflexões. É essa multiplicidade de significações, que é a liberdade de não entender, a liberdade de não saber.”

‘O sentimento que produz é perplexidade’

  • Vera Lucia Cardoso Medeiros é doutora em letras pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e professora da Universidade Federal do Pampa, autora da tese “O direito ao avesso. Uma leitura de ‘A legião estrangeira’”

“As palavras que associo a esse conto são instigante, desconcertante; o sentimento que ele produz é perplexidade. Ele representa o movimento paradoxal que identifico na obra de Lispector em geral; ou o que Lucia Helena, professora da UFF [Universidade Federal Fluminense] e autora de ‘Nem musa, nem medusa’, identificou como ‘lógica da inclusão’ em Clarice. ‘O ovo e a galinha’ pode ser lido como uma narrativa muito simples sobre um fato muito banal do cotidiano doméstico. Ou pode ser lido como um tratado sobre a percepção, como a representação em palavras do movimento rápido de imagens ao qual nos habituamos desde as vanguardas modernistas.

Nesse sentido, a manifestação da própria escritora sobre o conto — não o entender ou ser seu texto preferido — valida o que chamei de movimento paradoxal.

‘O ovo e a galinha’ perturba as expectativas do leitor literário; sobretudo se pensarmos no momento da publicação deste conto — 1964. O que se esperava de um conto naquele momento? Certamente não é o texto enigmático que Clarice apresenta.

“‘O ovo e a galinha’ perturba as expectativas do leitor literário; sobretudo se pensarmos no momento da publicação deste conto — 1964.”

Vera Lucia Cardoso Medeiros

Outro aspecto que destaco é que este texto mobiliza a percepção cognitiva, a leitura racional, ao contrário de outros — talvez a maioria dos textos de Clarice — que envolvem sensorialmente leitores e leitoras, provocam sentimentos, empatia ou repulsa. ‘O ovo e a galinha’ exige uma postura mais cerebral, eu diria, de quem o lê. Ou, por outro lado, pede para ser lido como um enigma, coisa para iniciados.

Enfim, por muitas vias de leitura, é um texto que não pode ser lido pelos parâmetros tradicionalmente associados ao texto literário. E nisso ele é exemplar do que a prosa de Clarice Lispector representou e ainda representa no sistema literário brasileiro.”

Colaboraram: Thiago Quadros e Sariana Fernández (arte e desenvolvimento)