A corrida para impedir a falta de medicamentos nas UTIs
Estêvão Bertoni
19 de março de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h04)Hospitais públicos e privados relatam ter estoque para poucos dias. Preço dos remédios subiram com maior procura, e indústrias têm dificuldade de repor itens
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Profissional de saúde trabalha em leito de UTI no Hospital São Paulo, na capital paulista
Com mais da metade dos estados registrando taxa de ocupação igual ou superior a 90% nos leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) para pacientes com covid-19, hospitais públicos e privados de todo o país têm relatado baixo estoque de medicamentos e temem que remédios usados para tratar os doentes em estado grave comecem a faltar em questão de dias.
Segundo o fórum dos governadores, ao menos 18 estados contavam até a sexta-feira (19) com um estoque de apenas 20 dias de itens necessários para a intubação de pacientes que precisam de respiração mecânica. Em alguns hospitais particulares, a situação era ainda mais crítica — a quantidade de sedativos, por exemplo, duraria até 48 horas em algumas unidades, segundo a Anahp (Associação Nacional de Hospitais Privado).
Um levantamento do jornal O Globo publicado na sexta-feira (19), com base em dados da Frente Nacional de Prefeitos, mostrou que ao menos 116 cidades corriam o risco também de sofrer com a falta de oxigênio, a exemplo do que aconteceu no início de 2021 no Amazonas, quando pacientes morreram asfixiados pela falta do insumo.
Na região metropolitana de Porto Alegre, seis pessoas morreram na sexta-feira (19), no Hospital Lauro Reus, em Campo Bom, devido à falta do produto. Segundo a instituição, houve uma interrupção no fornecimento de oxigênio por 40 minutos devido a uma “falha no sistema”.
Uma pesquisa feita pelo CRF (Conselho Regional de Farmácia) de São Paulo em fevereiro, com 234 farmacêuticos de hospitais públicos e privados do estado, mostrou que 77% deles relataram problemas de desabastecimento de medicamentos.
Por causa da situação, o Ministério da Saúde requisitou na quarta-feira (17) à indústria de medicamentos os estoques disponíveis, que devem ser suficientes para suprir a demanda do SUS (Sistema Único de Saúde) por 15 dias.
Segundo o CNS (Conselho Nacional de Saúde), em agosto de 2020 o ministério cancelou uma operação internacional de compra para os remédios do ‘kit intubação’ sem esclarecer os motivos. A informação aparece em um ofício do CNS, colegiado ligado ao ministério que é responsável por monitorar políticas públicas de saúde, de 20 de agosto. No mesmo documento, o conselho alerta para o risco de falta de medicamentos e pede agilidade em novas compras.
Além da falta de insumos, os hospitais também enfrentam a alta nos preços dos remédios (devido ao aumento da demanda) e uma crise na oferta pelos fabricantes, por causa das limitações na produção (a matéria-prima é importada).
Governadores do Nordeste disseram, em documento entregue ao Ministério da Saúde, que houve nos últimos meses um aumento de 75% no preço dos insumos em relação aos valores cobrados em 2020.
79%
dos hospitais de São Paulo reclamaram do aumento do preço dos medicamentos em pesquisa realizada pelo sindicato dos hospitais do estado
Ao jornal O Globo, Francisco Balestrin, que é presidente do SindHosp (Sindicato de Hospitais, Clínicas e Laboratórios de São Paulo), disse já ter ocorrido falta de remédios em 2020, mas que o problema é maior em 2021 devido ao aumento no número de pacientes que precisam ser intubados.
“Estamos em uma tempestade perfeita: preço aumentando, crise na oferta, aumento de pacientes e falta de materiais”
Ao Nexo , o médico intensivista Fabiano Nagel, que é chefe da Unidade de Gestão do Paciente Crítico do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, afirmou que o grande problema é que o uso desses medicamentos é constante durante toda a internação, o que implica num alto consumo por pessoa.
“Quando intubamos um paciente, usamos sedativos, analgésicos e bloqueadores neuromusculares. Só que para manter um paciente em ventilação mecânica, continuamos precisando dos mesmos medicamentos. Nós utilizamos drogas por dias, às vezes semanas, para os pacientes manterem adequadamente sedados em ventilação mecânica”, disse.
Na intubação, um tubo é inserido pela boca do paciente até a traqueia, e um equipamento conhecido como ventilador sopra ar comprimido com oxigênio para as vias aéreas. A alimentação é feita por meio de uma sonda que passa pelo nariz e vai até o estômago.
A taxa de letalidade em pacientes intubados é alta. Segundo um levantamento da Amib (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), com dados de 13.695 leitos distribuídos em 450 hospitais de todo o país, coletados entre março e maio de 2020, apenas um em cada três infectados pelo vírus que receberam o tratamento sobreviveu.
Sedativos
Durante a intubação, o paciente é sedado com medicamentos como midazolam, propofol e dexmedetomidine, que mantêm a pessoa inconsciente (pacientes intubados ficam em coma induzido). Os efeitos de alguns deles duram de 30 a 120 minutos, por isso precisam ser ministrados o tempo todo. Segundo os hospitais, o valor do sedativo midazolam já aumentou em 414% durante a pandemia.
Analgésicos
Como os sedativos não tiram a dor, são usados analgésicos para isso. O mais usado no Brasil, segundo o médico intensivista Fabiano Nagel, é o fentanil, que é análogo à morfina. Em junho de 2020, vários estados brasileiros já haviam registrado falta desse tipo de medicamento.
Bloqueadores neuromusculares
Para facilitar a intubação, os médicos também usam relaxantes musculares como a succinilcolina, o atracúrio e o rocurônio. Eles provocam paralisia na musculatura respiratória. Segundo o sindicato dos hospitais do estado de São Paulo, o preço do rocurônio, por exemplo, já aumentou 960% durante a pandemia.
Oxigênio
A covid-19 causa hipoxemia, uma diminuição do oxigênio no sangue. “O oxigênio baixo prejudica a função de todas as células do corpo e, se for mantido num nível muito baixo, inviabiliza a sobrevivência”, diz Nagel. Para corrigir isso, os hospitais precisam oferecer oxigênio a todos os pacientes, o tempo todo. Seu uso no Brasil já aumentou 56% nas duas primeiras semanas de março em relação à primeira quinzena de dezembro, segundo a White Martins, maior produtora nacional do insumo.
Sem os medicamentos do chamado “kit intubação”, pessoas em estado grave não podem ser salvas, segundo os médicos. “É impossível intubar um paciente e mantê-lo vivo em ventilação mecânica sem essas medicações”, afirma Nagel, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Em fevereiro, um hospital de Parintins, no interior do Amazonas, registrou falta de sedativos. Pacientes foram amarrados com gazes nas macas para evitar a autoextubação, que é quando o próprio paciente remove os tubos.
Na época, a Amib (Associação Brasileira de Medicina Intensiva), divulgou nota dizendo que a intubação sem sedação era “desumana”.
Para Nagel, a contenção mecânica dos pacientes, amarrando-os à maca, é um procedimento utilizado em algumas circunstâncias, quando o paciente tem agitação psicomotora ou quando, durante a ventilação, traz riscos a si mesmo por poder remover os dispositivos usados.
“Mas isso não é uma alternativa para mantê-los em ventilação mecânica, são coisas distintas”, afirmou. Segundo o médico, não sedar um paciente faz com que o procedimento ventile mal e pode levá-lo à morte.
O Ministério da Saúde recebeu na quinta-feira (18) cartas do Conselho Federal de Farmácia, da Frente Nacional de Prefeitos e do fórum dos governadores pedindo para que o governo federal faça compras emergenciais de remédios e atue na facilitação de importação de insumos, na redução dos preços e para que a indústria aumente sua produção.
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) se comprometeu em reunião com entidades médicas e hospitalares a agilizar processos para importação dos medicamentos.
O médico intensivista Fabiano Nagel disse ao Nexo que, numa situação de emergência como a atual, é muito difícil que a indústria consiga expandir sua atividade em poucos dias para produzir mais medicamentos. “Isso é uma coisa que deve servir como lição para o futuro. Nosso parque fabril de medicamentos é deficitário. Numa situação como essa, estamos vendo todas as falhas”, afirmou.
Wilames Freire, presidente do Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais da Saúde) disse ao site da BBC Brasil ter pedido ao Ministério da Saúde a suspensão nacional das cirurgias eletivas (não urgentes), como já ocorreu anteriormente durante a pandemia, o que poderia ajudar a reduzir o consumo dos sedativos.
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