Como Ernesto Araújo tentou blindar Bolsonaro na CPI da Covid
João Paulo Charleaux
18 de maio de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h09)Ex-chanceler negou que tenha prejudicado relação com a China e afirmou que seguia orientações do Ministério da Saúde
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Ex-chanceler brasileiro Ernesto Araújo em depoimento à CPI da Covid no Senado
Ernesto Araújo prestou depoimento de aproximadamente oito horas à CPI da Covid no Senado na terça-feira (18). A sessão foi marcada pela tentativa do ex-ministro das Relações Exteriores de eximir a si mesmo e ao presidente Jair Bolsonaro de erros na pandemia. Ele responsabilizou o Ministério da Saúde pela maior parte das decisões tomadas.
Araújo esteve à frente do Itamaraty por dois anos e três meses e era responsável pela relação do Brasil com os países fornecedores de vacinas e de insumos. Seus ataques à China , país provedor da Coronavac e de insumos de vacinas, foram apontados por diversos senadores como um dos fatores que contribuíram para retardar o avanço da imunização, fazendo o país chegar aos atuais 437 mil mortos pela pandemia, até a data do depoimento.
Araújo deixou o posto de chanceler em março de 2021, desgastado pelas consequências de uma gestão ideologizada e pouco pragmática das relações do Brasil com outros países. O ex-chanceler é um diplomata de carreira modesta, que ascendeu ao comando da pasta com o respaldo do polemista Olavo de Carvalho. Desde sua saída, está lotado em um cargo na secretaria de gestão administrativa do Itamaraty.A seguir, o Nexo lista os principais pontos de seu depoimento na CPI.
Araújo disse que o Itamaraty não operou de maneira avulsa ou autônoma, mas em coordenação com o Ministério da Saúde , mas sem nomear nenhum dos três ministros da pasta que foram contemporâneos de sua gestão como chanceler (Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello).
Questionado pelo relator Renan Calheiros (MDB-AL) e pelo suplente Alessandro Vieira (Cidadania-SE) se as orientações vinham do presidente da República, Araújo voltou a dizer que as ações derivavam sobretudo de orientações do Ministério da Saúde.
Ao longo da sessão, em pelo menos duas ocasiões, Araújo foi convidado a opinar sobre declarações feitas por Bolsonaro contra as vacinas e contra a China. Em vários momentos, o ex-chanceler se recusou a comentar as falas de seu antigo chefe. Pressionado, disse apenas: “Acho que nenhum desses atos do presidente prejudicaram nossas relações.”
As próprias investidas de Araújo contra a China— feitas em artigos de opinião, posts em redes sociais e notas oficiais do Itamaraty — foram objeto de questionamentos e críticas. Renan e Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI, acusaram Araújo de prejudicar o acesso brasileiro à Coronavac, a principal vacina aplicada no Brasil, obtida por meio de articulações entre o governo do estado de São Paulo e o governo chinês.
Ministro de Negócios Estrangeiros da China, Wang Yi, em visita ao Itamaraty, em julho de 2019
Araújo, que já se referiu ao coronavírus como “comunavirus”, negou que tenha causado problemas com a China, mesmo tendo saído em defesa do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) quando o filho do presidente atacou o governo chinês no Twitter, acusando Pequim de espionagem pela rede 5G .
Renan leu no plenário uma declaração de outubro de 2020, feita pelo presidente da República: “Da China nós não compraremos . É decisão minha. Eu não acredito que ela [a vacina] transmita segurança suficiente para a população, por sua origem [chinesa].” Confrontado pelo relator, sobre que participação ele teve, como então chanceler, na adoção dessa linha, Araújo respondeu: “Não tomei nem advoguei por nenhuma iniciativa nesse sentido.”.
“Eu não entendo nenhuma declaração que eu tenha feito, em nenhum momento, como antichinesa”, disse o ex-chanceler. “Nada do que eu tenha feito levou a qualquer percalço na recepção dos insumos”, afirmou. “Jamais foi identificada nenhuma correlação entre atrasos e minha ação”, disse ainda.
Embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, participa de evento empresarial em Brasília
Após essas frases, o presidente da CPI acusou Araújo de “faltar com a verdade” à Comissão, porque o próprio ex-chanceler escreveu posts e artigos de opinião atacando a China no passado. “Chegar aqui agora e dizer aqui, para todos os senadores, que o senhor nunca se indispôs com a China, vossa excelência está faltando com a verdade. Até bateu boca com o embaixador chinês. Vossa excelência nega o que escreveu. Aí não dá”, disse Aziz, mencionando artigo publicado por Araújo em 8 de abril de 2020.
Araújo se defendeu, dizendo que o uso do termo comunavírus “não é referência ao coronavírus, mas a um vírus ideológico que cria as condições para implementação de uma sociedade comunista global”, tal como havia sido mencionado pelo filósofo esloveno de esquerda Slavoj Žižek.
Aziz explorou os atritos que Araújo tem com o embaixador da China em Brasília, Yang Wanming . Em seu depoimento, o ex-chanceler brasileiro admitiu ter se queixado do embaixador chinês diretamente ao Ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi. Araújo não tem boa relação com Wanming, que, enquanto o ex-chanceler brasileiro depunha, publicou a foto de um cactos no Twitter, com a seguinte frase: “Algumas espécies de cactos demoram anos para florir. Exercite a paciência, pois as coisas boas fazem qualquer espera valer a pena.”
Os membros da CPI também pressionaram Araújo a respeito das gestões feitas pelo Itamaraty para receber insumos para a produção de cloroquina no Brasil— medicamento promovido por Bolsonaro como efetivo no combate à Covid, a despeito da falta de evidências científicas que sustentem essa decisão.
O relator da CPI quis saber quem mandou Araújo trabalhar para importar insumos para a fabricação de cloroquina. Por diversas vezes, o ex-chanceler repetiu que agia sempre sob orientação do Ministério da Saúde, aumentando a expectativa pelo depoimento de Pazuello, marcado para esta quarta-feira (19).
Jair Bolsonaro e Narendra Modi se cumprimentam em Nova Déli
Ele também disse que Bolsonaro atuou pessoalmente na questão. “O presidente da República, em determinado momento, pediu que o Itamaraty viabilizasse um telefonema dele [presidente do Brasil] com o primeiro-ministro [da Índia]”, disse o ex-chanceler, que foi confuso sobre a orientação de Bolsonaro nesta questão, embora o presidente seja um notório defensor da cloroquina.
Aziz e outros senadores atribuíram a Araújo a posição de defensor ideológico da cloroquina. O presidente da CPI disse que o ex-chanceler declarava a diplomatas de outros países que “quem é contra a cloroquina age politicamente”. Araújo não refutou a afirmação de Aziz. O diplomata confirmou que fez gestões para manter o fluxo de suprimentos para a produção desse medicamento no Brasil, a partir de negociações diretas com o chanceler indiano, Subrahmanyam Jaishankar.
Araújo assumiu a responsabilidade por ter alinhado o Brasil à Casa Branca nas estratégias do então presidente americano, Donald Trump, de questionar, criticar e desgastar a OMS (Organização Mundial da Saúde). Ele disse que decidiu sozinho, sem discutir o assunto com Bolsonaro.
Araújo leu uma longa lista de acusações contra a OMS. De acordo com ele, a organização demorou para declarar pandemia; disse que o vírus não era transmissível entre humanos e depois voltou atrás; e recomendava não fechar fronteiras, depois mudou de ideia.
Presidente Donald Trump durante discurso na frente da Casa Branca, minutos antes da invasão do Capitólio, em 6 de janeiro
Para muitos dos membros da CPI, os atritos de Araújo com a OMS prejudicaram o Brasil na obtenção de vacinas entregues pelo consórcio Covax Facilty. De acordo com eles, a adesão do Brasil ao consórcio foi tardia (quando outros 170 países já tinham aderido) e circunscrita a uma quarto das doses que o Brasil poderia receber.
“Jamais fui contra a iniciativa Covax”, respondeu Araújo, afirmando que a decisão do Brasil, de optar por receber apenas a cota mínima de cobertura vacinal do consórcio, equivalente a apenas 10% da população, e não à cota máxima, de 50%, não foi tomada por ele. Como em temas anteriores, Araújo repetiu: “Essa decisão não foi minha, foi do Ministério da Saúde”.
Calheiros insistiu, querendo saber de que forma a decisão foi tomada e por quem. “Não saberia informar nesse momento”, “não sei quem deu a ordem” e “não me lembro de como isso nos foi comunicado nessa ocasião”, foram as frases de Araújo
O diplomata foi questionado ainda sobre qual sua participação na decisão do governo brasileiro de não responder positivamente à oferta de 70 milhões de doses de vacinas da Pfizer, feita em agosto de 2020.
O laboratório americano enviou uma carta sobre a oferta de vacinas em setembro de 2020 à Embaixada do Brasil em Washington. Araújo disse que recebeu essa carta, mas não a repassou a ninguém. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) inquiriu Araújo sobre o silêncio do então chanceler em relação à oferta contida na carta. O depoente respondeu que não repassou a informação adiante porque ela já era de conhecimento do presidente Bolsonaro e de outros ministros implicados à época.
Araújo também disse que Bolsonaro só falou em comprar a vacina da Pfizer em fevereiro de 2021. Antes, nas reuniões ministeriais das quais participou, não se falava em comprar essa vacina específica. “Com exceção em março ou fim de fevereiro onde se decidiu que o presidente faria contato com presidente da PFizer para obtenção da vacina da Pfizer. Foi reunião onde o presidente disse ‘sim, quero falar com o presidente da Pfizer”, afirmou.
Araújo também foi questionado por não ter aderido à proposta liderada pela Índia e pela África do Sul de quebra de patentes das vacinas, o que permitiria que outros países do mundo produzissem as vacinas que hoje são propriedades de poucas empresas e governos do mundo.
O diplomata respondeu dizendo que “a posição da Índia era uma posição extrema”, e ele preferiu investir numa “terceira via”, que solicitava que as farmacêuticas dessem a fórmula de suas vacinas de boa vontade, o que não aconteceu.
Para os senadores, a posição de Araújo em relação à quebra de patentes colocou o Brasil em posição de antagonismo com a Índia, fornecedora de vacinas que são usadas no Brasil. Além disso, o Itamaraty passou a ficar isolado nessa posição depois que o governo do presidente americano Joe Biden aderiu à frente de países que defendem a quebra de patentes na OMC (Organização Mundial do Comércio).
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