Expresso

A tentativa de compra paralela de vacinas da AstraZeneca

Isadora Rupp

04 de agosto de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h16)

Depoimentos à CPI trazem mais detalhes sobre as suspeitas em negociações entre integrantes do Ministério da Saúde e intermediários que faziam oferta irreal de imunizante que já é produzido pela Fiocruz 

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FOTO: JEFFERSON RUDY/AGÊNCIA SENADO

O coronel Marcelo Blanco em depoimento na CPI da Covid, no dia 4 de agosto.

O coronel Marcelo Blanco em depoimento na CPI da Covid, no dia 4 de agosto.

Os dois depoimentos da CPI da Covid após o retorno do recesso parlamentar miraram suspeitas de corrupção durante a tentativa de compra paralela de 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca.

Foram ouvidos o reverendo Amilton Gomes de Paula, na terça-feira (3), e do tenente-coronel Marcelo Blanco, ex-assessor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, na quarta (4).

O caso envolve uma série de personagens – de religiosos a lobistas, passando por empresas e entidades intermediárias, militares e figuras tradicionais do centrão, grupo de parlamentares conhecidos por prática de fisiologismo.

As negociações chamam atenção pelo acesso que intermediários tiveram dentro do Ministério da Saúde, mesmo sem a garantia das doses da AstraZeneca, que já tem um contrato fechado com o governo brasileiro desde 2020 para venda de imunizantes.

A farmacêutica afirmou que não trabalha com intermediários, apenas negocia diretamente com governos, e que não tinha a quantidade prometida pelos atravessadores. Atualmente a vacina já é produzida nacionalmente pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), órgão ligado ao Ministério da Saúde.

Neste texto, o Nexo resgata a história das negociações paralelas a partir do que os senadores da comissão parlamentar de inquérito descobriram até esta quarta-feira (4). Também reúne o que os suspeitos já disseram à CPI e quais pontos ainda precisam ser esclarecidos.

A frase que colocou a Astrazeneca no foco

O depoimento dos irmãos Miranda – o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF) e o servidor concursado do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda – foi um dos mais decisivos da CPI da Covid, e trouxe à tona as primeiras suspeitas de corrupção na negociação de vacinas. Até então, a investigação dos senadores estava focada em destrinchar políticas públicas adotadas pelo governo federal na pandemia que já matou mais de 550 mil brasileiros.

No dia 25 de junho, a fala foi centrada na compra de 20 milhões de doses do imunizante indiano Covaxin . Eles relataram à CPI inconsistências nos documentos, irregularidades no contrato e pressão incomum para o avanço do acordo. Os irmãos disseram ter levado as suspeitas ao presidente Jair Bolsonaro.

O servidor Luis Ricardo declarou n o mesmo depoimento que outros colegas do Ministério ouviram informações de que “estavam pedindo propina” em outras negociações. Ele não deixou claro naquele momento, mas se referia a comentários que já corriam nos bastidores da pasta sobre o caso das 400 milhões de doses da AstraZeneca, que foi revelado em reportagem da Folha de S. Paulo , e confirmado posteriormente no depoimento de Luiz Paulo Dominghetti Pereira, representante da empresa Davati Medical Supply, em 1º de julho na CPI da Covid.

A negociação com o PM que fazia ‘bico’

Em seu depoimento à comissão parlamentar de inquérito, o policial militar da ativa Luiz Paulo Dominghetti Pereira declarou fazer “bicos” para complementar a renda de PM como representante da Davati Medical Supply. Segundo ele, esse era um trabalho que ele assumia nas horas vagas e sem nenhum tipo de vínculo empregatício formal.

A empresa Davati Medical Supply tem um papel crucial na crise da negociação da AstraZeneca. A holding dos Estados Unidos atua em diversos segmentos, entre eles no fornecimento de remédios contra a gripe e vacinas. No Brasil, é representada pelo consultor Cristiano Alberto Hossri Carvalho, a quem o PM se reportava.

Foi Dominghetti quem levou ao Ministério da Saúde a oferta de 400 milhões de doses. A Davati, no entanto, sequer é representante do laboratório AstraZeneca, que declarou que não trabalha com intermediadores.

A farmacêutica também alertou o Ministério da Saúde e a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) sobre uma movimentação suspeita em e-mail no dia 29 de janeiro de 2021. A mensagem de uma diretora da empresa , entregue à CPI, dizia que a AstraZeneca havia sido informada que uma companhia no Espírito Santo fez uma oferta ao governo brasileiro, o que contrariava a política da empresa em não ter intermediadores. Isso ocorreu antes do jantar entre Dominghetti, o tenente-coronel Marcelo Blanco, então assessor do Departamento de Logística da pasta, e o diretor de Logística Roberto Ferreira Dias, em 25 de fevereiro.

Mesmo assim, o representante conseguiu chegar ao Ministério da Saúde por Blanco, que apresentou o vendedor a Dias, diretor de Logística por indicação do deputado do centrão Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara e implicado também no caso Covaxin. Dias foi exonerado do cargo no dia 30 de junho, logo após a revelação da Folha. Ele foi ainda o primeiro depoente da CPI a ser preso , no dia 7 de julho. O presidente Omar Aziz deu voz de prisão a ele após Dias alegar que um encontro entre ele, Blanco e Dominghetti em um restaurante de Brasília havia sido “acidental”, apesar de provas obtidas pela CPI indicarem o contrário.

Segundo Dominghetti, ele jantou com Dias e Blanco na noite de 25 de fevereiro, no restaurante Vasto, que fica em um shopping na região central de Brasília. O representante da Davati levou na ocasião a primeira proposta de US$ 3,50 por dose da vacina da Astrazeneca, mas teria recebido um pedido para que “melhorasse o valor”. “Falei que era difícil conseguir um desconto e eles disseram que era um valor pra cima, pra mais”, declarou o PM à CPI.

A suspeita de propina de US$ 1 dólar

Segundo Dominghetti, Dias pediu o acréscimo de um dólar por vacina. “De imediato, falei que não tinha como fazer”, disse. Após a negativa, o representante da Davati falou que o “clima na mesa mudou”, e o jantar foi encerrado. Antes de ir embora, Dias e Blanco teriam dito a ele para “pensar direitinho” e retornar com uma nova proposta. Segundo o PM, o coronel Élcio Franco, então número dois do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, também recebeu a proposta.

Em seu depoimento nesta quarta-feira (4), Blanco negou a propina. Dias fez o mesmo em sua fala. Blanco apenas admitiu que tentou viabilizar uma agenda oficial no Ministério da Saúde. O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), apontou que ele e Dominghetti trocaram 108 ligações em 30 dias .Blanco respondeu apenas que as ligações eram para “se tratar do privado”, mas não detalhou o conteúdo das conversas. Vieira indagou se ele não percebeu que o PM era um “estelionatário”, e o coronel disse crer na boa fé da oferta.

Outra descoberta da CPI nesta quarta (4) foi sobre a mudança da natureza da empresa do coronel Blanco, da qual ele já era dono antes de entrar no Ministério da Saúde; ele foi exonerado da pasta em janeiro de 2021 [ele disse no depoimento não saber o motivo ao ser questionado pelos senadores]. Em março, o tenente-coronel modificou a configuração da sua empresa, que atuava no ramo de educação financeira, para representante de medicamentos. A mudança ocorreu poucos dias após o jantar com o vendedor da Davati, em 25 de fevereiro.

A propina de US$ 1 dólar também apareceu no depoimento do reverendo Amilton de Paula, na terça-feira (3), presidente da Senah (Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários), uma entidade privada cujo trabalho, de acordo com ele, é humanitário, e, em tese, não serviria como intermediador de vacinas.

O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente da CPI, mostrou em seu Twitter documento com uma proposta da Senah , de US$ 11 dólares a dose da vacina da AstraZeneca. Uma proposta anterior da Davati [diferente da primeira levada por Dominghetti, de US$ 3,50] foi de US$ 10, algo que a empresa afirmou, em nota à imprensa, ter feito ao governo brasileiro . “A proposta [da Senah] subiu um dólar. Soa familiar? É exatamente o valor de propina por dose, conforme denunciado por Dominghetti”, disse o senador.

O acesso do reverendo ao ministério

Pastor evangélico formado pela Assembleia de Deus, o reverendo Amilton de Paula foi quem fez a ponte entre a Davati, seu representante e o governo federal para a negociação das 400 milhões de doses.

No depoimento à CPI na terça-feira (3) , o religioso negou contatos no Executivo e com políticos, apesar de já ter publicado fotos em suas redes sociais com o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro, para quem o reverendo fez campanha em 2018.

Amilton de Paula levou a proposta das 400 milhões de doses da Davati ao Ministério da Saúde em 22 de fevereiro, via Senah, quando mandou um e-mail solicitando o encontro, o qual a pasta atendeu no mesmo dia. O reverendo se encontrou com Laurício Monteiro Cruz, então diretor de Imunização e Doenças Transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde.

O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente da comissão, ironizou dizendo que a agilidade era um “fenômeno”, ainda mais comparado ao tratamento do governo à Pfizer, que ficou sem resposta em 81 e-mails enviados ao Ministério, além de uma carta endereçada à cúpula do governo brasileiro, que incluía o presidente Jair Bolsonaro e vários ministros, entre eles Paulo Guedes, da Economia.

Mesmo com a facilidade de acesso, o reverendo disse que “não conhecia ninguém no Ministério da Saúde” e que o trabalho, o qual ele denominou na CPI como a abertura de uma conversação, era humanitário. Ele afirmou que a Senah receberia o que ele chamou de “doação” por parte da Davati caso o acordo se concretizasse e chorou, dizendo-se arrependido. Amilton de Paula não deixou claro de quanto seria a doação.

O que a CPI ainda precisa descobrir

Até aqui, a CPI expôs a fragilidade no processo de compra de vacinas pelo Ministério da Saúde: enquanto o governo federal atendeu a intermediários rapidamente, laboratórios como a Pfizer demoraram seis meses para iniciar um acordo, após dezenas de e-mails não respondidos. Atraso que Élcio Franco, em seu depoimento no dia 9 de junho, atribuiu a uma falha no sistema de e-mails. Mas ainda não ficou claro o porquê de figuras como o reverendo e Dominghetti terem portas escancaradas no governo federal.

Em entrevista na noite desta quarta-feira (4), Randolfe Rodrigues declarou que o depoimento de Marcelo Blanco dá indícios de “um escândalo de tráfico de influência sem precedentes, e com a participação direta do senhor Élcio Franco”. Franco foi exonerado da Saúde em 26 de março mas, menos de um mês depois, em 23 de abril, assumiu como assessor especial da Casa Civil, cargo que ainda ocupa.

A CPI quer avançar também nos indícios de desvio no acordo entre o governo federal com a Precisa Medicamentos, intermediária na compra da Covaxin, produzida pelo laboratório indiano Bharat Biotech. Após os escândalos revelados pela CPI, as negativas da Anvisa sobre o imunizante e da fala do ministro da saúde Marcelo Queiroga, que no dia 23 de julho disse que a Covaxin estava descartada, o contrato foi cancelado no último dia 29 de julho. O valor de R$ 1,6 bilhão já havia sido empenhado [ou seja, reservado para o fim]. A Controladoria Geral da União informou que o dinheiro deve ser, obrigatoriamente, realocado para a compra de outro imunizante.

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