O papel de Luciano Hang na difusão de remédios ineficazes
Estêvão Bertoni
29 de setembro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h25)Em depoimento tumultuado na CPI da Covid, empresário bolsonarista confirma que arrecadou e doou recursos a hospitais para promoção do tratamento precoce
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O empresário Luciano Hang, durante depoimento à CPI da Covid no Senado
Em sessão tumultuada na quarta-feira (29), a CPI da Covid no Senado ouviu o empresário bolsonarista Luciano Hang, dono das lojas Havan. Ele é suspeito de financiar redes de disseminação de notícias falsas, fazer campanhas contra as medidas de isolamento social decretadas por governadores e prefeitos e propagar medicamentos ineficazes contra a covid-19.
Em mais de seis horas de depoimento, o empresário admitiu ter arrecadado e doado dinheiro a hospitais para a compra remédios do chamado kit covid. Também afirmou ter contas no exterior , mas negou que as tenha usado para financiar redes de disseminação de fake news. Hang foi questionado ainda sobre a suspeita de que a Prevent Senior, onde sua mãe foi internada e morreu de covid-19 no início de 2021, escondeu a doença no atestado de óbito, no que informou ter sido um “erro” da operadora de saúde.
Neste texto, o Nexo mostra como o dono da Havan contribuiu para a disseminação do chamado tratamento precoce defendido pelo presidente Bolsonaro e lista os principais pontos de seu depoimento.
Luciano Hang confirmou em seu depoimento ter incentivado e financiado a distribuição de medicamentos ineficazes contra a covid-19 em várias cidades brasileiras. O empresário, que se infectou com o novo coronavírus no começo de 2021, disse ainda fazer uso de remédios como medida preventiva, o que não é recomendado.
Já existe consenso científico sobre a ineficácia de substâncias como a hidroxicloroquina (antimalárico), a ivermectina (antiparasitário) e a azitromicina (antibiótico) contra a doença. A vacina é considerada a única maneira de reduzir riscos e prevenir casos graves, internações e mortes.
A defesa de Hang dos medicamentos ineficazes reflete a atitude negacionista de Jair Bolsonaro. O presidente defendeu durante toda a pandemia o uso desses remédios como uma forma de minimizar a gravidade da covid-19 e encorajar a população a sair de casa para trabalhar. Mais de um ano e meio depois do início da crise sanitária, ele ainda propaga o tratamento precoce, como deixou claro em seu discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), em 21 de setembro de 2021.
Em resposta aos questionamentos da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), Hang admitiu ter se reunido com outros empresários para visitar cidades que adotaram o chamado tratamento precoce. “A pedido de algumas cidades pelo Brasil — Porto Seguro, Porto Feliz, São Paulo —, nós fomos visitar cidades que usaram os protocolos [com medicamentos ineficazes]”, disse.
A senadora, então, perguntou se ele tinha feito arrecadação para comprar e distribuir o kit covid. Hang tentou fugir do assunto, mas acabou respondendo diante da insistência da parlamentar: “Fiz, está na rede social. Fiz e doamos o dinheiro”, afirmou.
“Nós arrecadamos dinheiro, damos para o hospital para comprar remédios. (…) O hospital comprou os remédios e fez dele o melhor possível”
Eliziane Gama criticou o empresário por contribuir com uma “política pública na área da saúde” sem que ela tivesse “amparo científico”. “No momento em que o senhor se reúne na sua cidade com vários empresários, faz a arrecadação para a compra de um medicamento que não tem eficácia comprovada e faz a distribuição, o senhor está indo ao contrário daquilo que é determinado na legislação brasileira”, afirmou.
Hang é investigado no inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal e em outra investigação no Tribunal Superior Eleitoral por disseminação de notícias falsas. Por determinação da Justiça, seu perfil no Twitter está bloqueado desde julho de 2020.
Segundo o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), a comissão recebeu informações de que uma offshore (empresa em paraíso fiscal) aberta pelo empresário nas Ilhas Virgens fazia pagamentos para impulsionar notícias falsas.
O dono da Havan reconheceu ter “duas ou três” contas e uma offshore no exterior, mas negou que tenha bancado a difusão de notícias falsas. “Para que deixemos bem claro: todos os negócios são lícitos, são declarados”, afirmou.
Em outro momento, o empresário confirmou que sua empresa gasta por ano R$ 250 milhões em propaganda, e que ao difundir seus negócios pelo Google, o site coloca essas propagandas onde quiser. A informação, porém, foi questionada pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). O parlamentar quis saber se, ao fazer propaganda utilizando o serviço Google Ads, Hang selecionava os sites que recebiam o recurso, o que o permitiria evitar o financiamento de propagadores de fake news.
“Nós podemos, sim, selecionar alguns [sites] dos que nós não colocamos [propaganda]. E é claro que eu não vou botar naqueles veículos que nos agridem normalmente, principalmente sites de extrema esquerda (…). Em iniciativa privada, quem escolhe o cliente somos nós”
Os senadores também exibiram mensagens trocadas pelo WhatsApp em que o blogueiro Allan dos Santos diz ao deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) ter conversado com Hang e que teria conseguido patrocínio do empresário para seu site. Ele reconheceu ter mantido as conversas, mas alegou ter enviado o pedido ao departamento de marketing da Havan, que não liberou a propaganda no site bolsonarista.
Em outro momento, ao ser questionado sobre um vídeo em que colocava em dúvida o número de mortes por covid-19 divulgadas no Brasil, dizendo que deputados invadiram hospitais de campanha e os encontraram vazios, o presidente da CPI, Omar Aziz, afirmou que o empresário agia “monstruosamente”.
Enquanto ouviam o depoimento, os senadores foram alvo de xingamentos, ofensas e agressões nas redes sociais. O senador Rogério Carvalho pediu para a comissão investigar um ataque sistemático feito por robôs às contas dos senadores. Segundo ele, chamou a atenção o fato de a ação ter sido orquestrada “exatamente no dia do depoimento do senhor Hang”.
A partir do acesso ao prontuário médico e ao atestado de óbito de Regina Hang, mãe de Luciano Hang, a CPI havia revelado em 22 de setembro que a covid-19 foi omitida como causa da morte, embora ela tenha sido internada num hospital da Prevent Senior com a doença.
Pelo protocolo do Ministério da Saúde, a doença tem que constar como causa se tiver motivado a internação. A operadora de saúde, que adotava o tratamento precoce, é suspeita de omitir mortes de pacientes com covid-19 para manipular as estatísticas e tem sido investigada pela comissão.
O empresário disse que ficou sabendo da omissão pela própria CPI, mas uma reportagem do G1 mostrou que a equipe de Hang já tinha essa informação desde abril de 2021. Ele apresentou, então, um documento que, segundo ele, comprovaria que a morte foi registrada pelo hospital como covid-19.
Segundo ele, a omissão foi um erro cometido por um plantonista do hospital. No dia seguinte, uma “comissão de controle de infecção hospitalar” viu o erro e emitiu outro documento para atestar a causa correta da morte.
“Ela adentrou no hospital no dia 1º de janeiro e saiu no dia 3 de fevereiro. A entrada mostra covid. E a saída, covid. Ou seja, foi sim notificada a morte da minha mãe como covid”, disse. Esse documento, segundo o empresário, serve para o hospital notificar as autoridades sanitárias sobre a causa da morte.
“Não vejo o interesse do hospital de mentir sobre a morte da minha mãe, não vejo! Qual era o motivo, se eu disse que ela estava no hospital e estava com o covid?”
O dono da Havan foi questionado ainda sobre um vídeo em que lamenta o fato de sua mãe não ter sido tratada preventivamente com o kit covid, o que segundo ele, talvez tivesse evitado sua morte. No prontuário, porém, consta que ela usou medicamentos ineficazes desde o começo, o que o empresário reconheceu.
Hang disse que o que ele tinha lamentado a falta de um tratamento preventivo, feito antes da infecção pelo vírus, e não o tratamento inicial (depois do diagnóstico), feito no início dos sintomas.
“Ela teve o precoce, o inicial, mas como nós achamos que ela pegou a doença nos dias 22 e 23 [de dezembro de 2020], quando nós fomos medicar a minha mãe, ela já estava, no dia 28, com o pulmão já todo quase tomado, tanto é que quando ela adentrou ao hospital Prevent Senior, estava com 95% do pulmão tomado”, afirmou.
Ao ser questionado por que optou pelo uso de tratamento ineficazes contra a covid, Hang respondeu que tentaria qualquer terapia para salvar sua mãe. “Se eu soubesse que tinha uma tribo indígena lá na Amazônia que curasse a minha mãe, eu a levava para lá!”, afirmou.
O depoimento era visto com preocupação por parte da cúpula da CPI por poder ser usado como palco pelo empresário, mas ao final os senadores de oposição consideraram que Hang apenas confirmou as suspeitas de que contribuiu com o governo para agravar a pandemia.
“Por que eu achava que ele não devia vir? Porque nós já temos material suficiente para indicar todos os ilícitos cometidos, com todo respeito, pelo sr. Luciano Hang. Temos vídeos, temos áudios, temos ele falando… Mas foi bom que ele viesse, sabe por quê? Porque ele confirmou tudo. Ele é um investigado confesso”
O senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), que raramente acompanha os depoimentos, esteve presente para engrossar o apoio dos governistas ao empresário. A sessão chegou a ser suspensa duas vezes por causa da confusão entre os senadores. Um dos advogados de Hang quase foi expulso após ter sido acusado de desrespeitar o senador Rogério Carvalho (PT-SE).
Inicialmente, o relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL) havia prometido entregar o relatório final no fim de setembro. Mas as revelações de irregularidades na Prevent Senior deram novo fôlego à comissão — o relatório está previsto para a segunda semana de outubro, embora o prazo final para os trabalhos seja 5 de novembro. Como o avanço no caso envolvendo a operadora de saúde, o depoimento de Hang foi visto como desnecessário, por servir apenas para mobilizar os apoiadores do presidente.
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