Como terminaram as pandemias ao longo da história
Estêvão Bertoni
09 de outubro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h28)Para especialistas, processo em que doenças deixam de ser consideradas emergências globais depende de variáveis sociais, políticas e sanitárias que se conectam entre si
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Profissionais de saúde realizam teste de covid-19 em morador da cidade de Nanjing, na China
Com o objetivo de controlar a transmissão do novo coronavírus e caminhar para o fim da pandemia de covid-19 no mundo, a OMS (Organização Mundial de Saúde) e a ONU (Organização das Nações Unidas) lançaram na quinta-feira (7) um plano para acelerar a vacinação de maneira igualitária em todos os países. Uma das barreiras no enfrentamento à doença tem sido a desigualdade na distribuição das doses, classificada pelas entidades como “imoral” e “estúpida”.
Até o início de outubro, 6,5 bilhões de imunizantes já haviam sido aplicados em todo o mundo, dos quais 75% se concentravam em países ricos ou emergentes, e apenas 5% na África. O objetivo é vacinar 40% da população de cada país até o final de 2021, e 70% até junho de 2022 — atualmente, apenas 34% da população mundial recebeu as duas doses. O mundo tem cerca de 7,8 bilhões de habitantes.
Para atingir a meta, que colocaria o mundo mais perto de voltar a uma certa “normalidade”, as entidades estimam ser necessário um gasto de US$ 8 bilhões e a adoção de medidas como a quebra de patentes e a transferência de tecnologia para a produção de vacinas em países mais pobres. Com a marca de 1,5 bilhão de doses disponíveis por mês atualmente, as entidades consideram ser possível atingir o objetivo.
Neste texto, o Nexo mostra quais fatores podem determinar o fim de pandemias e como algumas delas terminaram no passado, em alguns casos com a coordenação da OMS, como na erradicação da varíola.
Em maio de 2020, o jornal americano The New York Times ouviu uma série de historiadores para saber como uma pandemia chega ao fim . A conclusão foi que o término pode acontecer de duas formas:
O historiador Allan Brandt, da Universidade Harvard, observou ao jornal que as discussões que já estavam sendo feitas no início da pandemia de covid-19, sobre a reabertura da economia, revelavam que “muitas questões relativas ao chamado fim da pandemia são determinadas não por dados médicos e de saúde pública, mas por processos sociopolíticos”.
Outra historiadora, Naomi Rogers, da Universidade de Yale, ressaltou ao jornal que a questão “psicológica social da exaustão e frustração” pode também ter um peso importante sobre o tema. “Talvez estejamos em um momento em que as pessoas simplesmente digam ‘já basta; tenho o direito de poder voltar à minha vida normal’”, afirmou.
Para o cientista político Gilberto Hochman, que é professor e pesquisador da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e autor de um artigo sobre o tema, o fim de uma pandemia é um processo com várias dimensões (médica, epidemiológica, social, política) que se conectam.
“Não vai ser só a ciência com seus dados que vai dizer: acabou. Não serão os políticos que, por leis e decretos, vão dizer que acabou. E a sociedade também não vai poder dizer ‘agora chega’, jogando tudo para o alto. Vai ser uma interação que tem a ver com essa dinâmica social e política”, afirmou em entrevista ao Nexo .
Em artigo publicado no início de 2021 na Revista Brasileira de Sociologia, Hochman escreve que o fim de uma pandemia é fruto do entendimento entre “governos nacionais e subnacionais, organizações internacionais, cientistas, epidemiologistas, imunologistas, médicos e profissionais de saúde, imprensa e redes sociais, sociedades científicas, empresas e organizações da sociedade civil e pessoas afetadas direta ou indiretamente”.
“A decisão e aceitação do desaparecimento de uma epidemia, ou de uma doença, é um acordo tácito ou explícito entre atores sociais, sempre precário e instável no curto prazo, mas que tem resultados concretos na vida cotidiana”
Hochman lembra, no artigo, que uma forma de selar o fim de uma pandemia também está na aceitação da sociedade em conviver com ciclos epidêmicos, “eventualmente mais brandos ou controláveis, ou com a endemicidade da doença”.
Entre os epidemiologistas, já há um consenso de que o novo coronavírus não irá desaparecer, já que as variantes mais contagiosas, como a delta, tornaram impossível que a imunidade coletiva (obtida pela infecção natural ou pela vacinação) seja alcançada. A covid-19 deverá se tornar, segundo os especialistas, uma doença endêmica, ou seja, irá se reduzir a níveis muitos baixos de circulação, e seu comportamento se tornará previsível, como ocorre com a gripe comum, por exemplo.
No caso da gripe espanhola , que durou de 1918 a 1919 e matou algo entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas em todo o mundo, principalmente jovens e adultos de meia-idade, o vírus também não foi embora — o H1N1 moderno descende do vírus que causou aquela pandemia —, e não se chegou ao estágio de imunidade coletiva. No início de 1919, a incidência de casos simplesmente caiu, encerrando a pandemia.
O vírus responsável pela chamada gripe russa, de 1889, também não foi embora. Parte dos estudiosos acredita que ela também tenha sido causada por um coronavírus, o OC43. Ao longo de cinco anos, ele causou cerca de cinco ondas da doença, até se tornar mais brando — o OC43 ainda circula, mas raramente causa quadros graves.
Em algum ponto, os casos e mortes acabam caindo porque os vírus vão se tornando menos letais e o sistema imune vai aprendendo mais sobre eles, o que evita manifestações mais agudas da doença, como se houvesse uma trégua entre o vírus e o sistema imune.
Embora pandemias cheguem ao fim, novas explosões da doença podem voltar a acontecer. Em 2016, por exemplo, a OMS declarou o fim da epidemia de ebola na África Ocidental, iniciada em 2014, que resultou em 11.310 mortes. Desde então, novos surtos voltaram a ocorrer, o último deles declarado encerrado pela OMS em junho de 2021.
O único exemplo de doença humana que conseguiu ser erradicada em toda a história foi a varíola. O último caso foi registrado em 1977, mas seu desaparecimento só foi anunciado em maio de 1980 pela OMS. A erradicação ocorreu devido a uma conjunção de fatores:
No Brasil, a doença constava em registros históricos desde o século 16. Por incentivo da OMS e da Opas, braço da entidade nas Américas, o país criou em 1962 a Campanha Nacional Contra a Varíola. De 1962 a 1966, foram aplicadas 23,5 milhões de doses de vacina. Em 1966, o Brasil aderiu à Campanha de Erradicação da Varíola, da OMS.
Em 1973, a Opas reconheceu que a varíola tinha sido eliminada no país, já que nenhum novo caso havia sido constatado desde 1971. Como mostra Hochman em seu artigo, o episódio que representou o fim da doença ocorreu em plena ditadura militar, que vinha censurando notícias sobre doenças, como poliomielite, sarampo e meningite.
A erradicação da varíola, que poderia ter sido festejada e usada como trunfo da ditadura, foi anunciada, porém, de maneira lacônica, devido às incertezas que existiam sobre sua erradicação. O governo militar considerou arriscado exaltar o feito, pois se algum novo caso surgisse, isso poderia comprometer a propaganda do regime.
Segundo o cientista político, o fim da epidemia de varíola foi constatado tanto do ponto de vista epidemiológico, pela Opas, como político, pelo governo militar, mas “com incertezas, também científicas e políticas, que indicavam que sua manutenção estava sob suspeição”. “A ausência de casos ao longo dos sete anos seguintes e o desaparecimento da varíola como experiência de adoecimento, morte e marcas na sociedade brasileira ajudou a efetivamente selar o seu final”, escreveu.
Em tese, o papel de declarar uma pandemia como encerrada cabe à OMS, que é a autoridade sanitária global — e de certa forma “moral” em relação ao assunto, segundo Hochman. Foi assim, por exemplo, em 2009, quando a entidade declarou a pandemia de H1N1, iniciada em junho daquele ano no México e nos Estados Unidos, e também seu fim, em agosto de 2010.
Na época, quando a OMS anunciou que o vírus tinha “completado seu ciclo”, e o mundo entrava numa fase pós-pandêmica, o H1N1 havia matado mais de 18.448 pessoas e afetado 214 países.
Ele não parou de circular, apenas adquiriu características de vírus sazonais. Tampouco havia sofrido mutações que o deixaram mais letal, não se tornou resistente aos antivirais, e as vacinas para combatê-lo se mostraram eficazes. Mesmo com o fim declarado da pandemia, países como Índia e Nova Zelândia ainda sofreram com epidemias posteriores da doença.
Para Hochman, embora a OMS tenha os elementos técnicos e de autoridade para indicar que uma doença deixou de ser uma emergência global, o fim das pandemias depende também de dinâmicas locais, de cada país, que não são obrigadas a se subordinar à entidade. O processo de encerramento tem tempos diferentes em cada país.
Nos Estados Unidos, por exemplo, durante a pandemia de covid-19, várias localidades retomaram as atividades a partir do avanço da vacinação. O mesmo ocorreu em outros países que decidiram por abolir o uso de máscara e retomar eventos com aglomerações, apesar de o vírus ainda estar em circulação e continuar matando.
Na quarta-feira (6), com uma média que ainda beira 500 mortes por dia de covid-19 no Brasil, a Prefeitura de Duque de Caxias (RJ) desobrigou, por decreto, o uso de máscaras em qualquer situação. No dia seguinte, a Justiça suspendeu os efeitos da decisão e solicitou ao governo local que apresentasse um relatório “devidamente embasado em evidências científicas” que demonstrasse o controle da situação epidemiológica para justificar o abandono das máscaras.
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