Expresso

Como o estigma de ter pais encarcerados afeta crianças

Ana Flávia Pilar e Larissa Teixeira

29 de janeiro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h19)

Preconceito vivido por filhos de presidiários se expressa principalmente no ambiente escolar. Pesquisadoras do tema falam ao ‘Nexo’ sobre essa realidade e sobre as maneiras de lidar com problema

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FOTO: MARIO TAMA/GETTY IMAGES

Grávidas encarceradas no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, no Maranhão

Grávidas encarceradas no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, no Maranhão

Este conteúdo foi produzido pelos autores como trabalho final do Lab Nexo de Jornalismo Digital, que teve como tema “Primeira Infância e Desigualdades” e foi realizado no segundo semestre de 2021. O programa é uma iniciativa do Nexo Jornal em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal e apoio da Porticus América Latina e do Insper.

Filhos de presidiários ou de pessoas egressas do sistema prisional tendem a experimentar formas de exclusão social por associação direta à condição dos pais.

O tema é alvo de uma série de estudos, que apontam o surgimento desse estigma ainda na primeira infância, dos 0 aos 6 anos de idade, justamente a fase em que a criança experimenta e descobre como participar da vida em sociedade.

Neste texto, o Nexo explica as bases desse tipo de preconceito, traz análises sobre seu impacto no desenvolvimento social das crianças e mostra quais os possíveis caminhos para superá-lo.

A precariedade dos dados brasileiros

O tamanho da população carcerária do Brasil varia de acordo com a fonte de dados. Um dos levantamentos mais recentes, publicado em maio de 2021 numa parceria entre o site G1, o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta 682.182 pessoas presas no país.

Ao olhar para os familiares dessa população, que são impactados diretamente pelo cárcere, a precariedade dos dados fica ainda mais evidente. Não há um número exato sobre quantas crianças vivem essa realidade no país.

Segundo o mais recente relatório do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), publicado em 2018, 47% dos homens e 74% das mulheres encarceradas no Brasil declararam ter pelo menos um filho. Os números do relatório obtidos em entrevistas com os presos cobrem, porém, apenas 9% da população penitenciária brasileira.

O deserto de dados sobre o assunto fica ainda mais evidente no Sisdepen, plataforma de estatísticas do sistema penitenciário brasileiro. Lá não constam informações sobre o número de detentos com filhos nos estados de Minas Gerais, Sergipe, Acre e no Distrito Federal.

A diferença da qualidade das informações fica evidente quando se compara o Rio Grande do Sul, que coleta dados de quase 100% da sua população carcerária, e o Rio de Janeiro, onde só 0,16% dos presos participam da pesquisa que alimenta a plataforma.

A psicóloga Cláudia Stella, doutora em educação pela USP (Universidade de São Paulo), usa a expressão “população esquecida” para descrever a ausência de um quadro mais nítido sobre o número de crianças com pais encarcerados e sobre o perfil aproximado de gênero, raça, idade e local de residência.

As bases do ‘estigma de contato’

Segundo o artigo “Como incluir? O debate sobre o preconceito e o estigma na atualidade” , das pedagogas e mestres em educação pela USP Flávia Schilling e Sandra Galdino Miyashiro, o estigma de cortesia, ou estigma de contato, surge no século 19.

Os intelectuais da época, influenciados pelo eugenismo inglês, diziam ser necessário controlar os indivíduos que poderiam enfraquecer as qualidades genéticas das futuras gerações.

Esse tipo de estigma é caracterizado pela discriminação que alguém sofre por relação direta a outra pessoa “marcada” socialmente. No caso dos filhos de presidiários, é como se as crianças ocupassem o mesmo lugar de seus pais e a criminalidade fosse uma herança biológica.

Para as pesquisadoras, a sociedade acredita que os filhos de presidiários representam uma ameaça aos valores coletivos de respeito à propriedade privada e às regras de convívio social.

Em seu trabalho, elas dizem que “a identidade desses jovens é construída com base nas interrogações dos olhares desconfiados daqueles que esperam e, de forma implícita, cobram que eles ocupem o mesmo lugar do pai ou da mãe”.

Stella pensa da mesma forma. Durante o seu doutorado em educação pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo, a psicóloga conversou com jovens, já com mais de 18 anos, que tiveram suas mães presas quando estavam na escola.

Um de seus entrevistados conta que foi o único aluno revistado no dia em que sumiu um estojo dentro de sala de aula.

“A professora deixou só ele na sala de aula. Porque ele era o filho de uma mulher presa”

Cláudia Stella

psicóloga e doutora em educação pela USP

“Teve uma outra fala, que eu ouvi de uma psicóloga, e essa foi triste porque ela é da minha área. No momento em que eu entrava em um berçário que ficava dentro de uma prisão, ela questionava meu interesse pelos ‘metralhinhas’”, em referência aos “Irmãos Metralha”, série de quadrinhos e desenho infantil sobre um grupo de ladrões atrapalhados. “Mas ela estava falando de bebês”, diz Stella.

O efeito no desenvolvimento psicológico

No artigo “ O impacto do encarceramento materno no desenvolvimento psicossocial dos filhos ”, Stella afirma que as crianças começam a estabelecer relações de confiança com outras pessoas até os dois anos de idade.

O vínculo familiar que elas constroem nessa fase, geralmente com os seus pais, funciona como uma espécie de ensaio: é a preparação para que a criança aprenda as normas da sociedade em que está inserida.

Segundo a psicóloga, o aprisionamento materno ou paterno nesses primeiros anos de vida não só compromete o vínculo entre pais e filhos, como também cria obstáculos para que novas relações sejam construídas, sobretudo se o bebê não experimentar outra forma de afeto parental.

Passar por múltiplas guardas pode interferir ainda mais no desenvolvimento da criança e causar distúrbios de sono, problemas de enurese noturna (urinar durante a noite), de comportamento e agressividade.

Ainda segundo Stella, na fase dos 3 aos 5 anos, a criança consegue compreender melhor as razões pelas quais está afastada dos seus pais, o que a deixa mais vulnerável ao trauma da separação pela prisão.

As nuances do estigma social

Stella vê uma nuance na questão da vivência do estigma social de filhos de pais encarcerados. Ela diferencia o ambiente das crianças nas comunidades e o ambiente escolar. “Nas minhas entrevistas para a pesquisa, os jovens falavam que não se sentem estigmatizados na própria comunidade, porque outros pais e mães [de crianças da comunidade] também estavam presos”, afirma.

A psicóloga diz que a questão começa a aparecer de forma mais evidente quando a criança sai de um ambiente onde ter pais presos não costuma ser um problema, que é dentro da comunidade, para ir para a escola.

Em um levantamento sobre os impactos do encarceramento familiar para crianças e adolescentes, feito em 2018 pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) , a maior parte dos 36 entrevistados reporta a escola como o lugar em que mais se sentiram discriminados por viverem o aprisionamento de seus familiares.

Estudantes classificados como desinteressados, “burros” ou imaturos também costumam ser associados pela escola a famílias desestruturadas, contribuindo para a visão do senso comum segundo a qual as famílias pobres não cuidam bem de seus filhos.

O papel da sociedade diante da crianças

Gabriela Reyes, professora do departamento de educação na Universidade Federal do Paraná, aponta o risco de uma espécie de profecia autorrealizável ligada aos filhos de pais encarcerados: “filho de peixe, peixinho não é; filho de peixe, peixinho se torna”.

“Nós [sociedade] é que podemos fazer com que essas crianças se tornem [eventuais criminosos]. Se você fala para uma criança que ela é de um jeito só porque o pai está preso, você está dizendo para ela o que fazer”

Gabriela Reyes

professora do Departamento de Educação na Universidade Federal do Paraná

De acordo com Reyes, diferentemente do que a maioria das pessoas fazem, não é comum que os filhos culpem os pais pelo encarceramento e posterior separação da família. Eles responsabilizam a prisão em si, porque ela amplifica a situação de pessoas que já estão à margem da sociedade.

“Faz muito tempo que não vou à penitenciária, mas, a cada vez que eu vou, percebo que as meninas estão mais novas. Meninas que foram até a sexta, sétima série, estão presas. Qual é a probabilidade de alguém com apenas a sétima série completa, em pleno 2021, ter um futuro?”, questiona Reyes. “Quem está preso no Brasil é o preto, o pobre”, afirma.

Stella cita um consequente afastamento entre filhos e pais presos. “A prisão não é um lugar para crianças. A prisão não é um lugar hospitaleiro e que preserva vínculos. É por isso que essas crianças se afastam. A prisão vai esgarçando os laços. Isso [acontece] no Brasil. Na Noruega, por exemplo, se um homem é responsável pelo seu filho e vai preso, esse menino vai viver com o pai dentro da prisão e eles moram em um setor separado”, diz.

A psicóloga menciona uma das exceções brasileiras: a iniciativa Amparando Filhos, do Tribunal de Justiça de Goiás, em parceria com diversos outros órgãos estaduais e municipais, premiada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) por boas práticas de atenção às crianças na primeira infância.

O projeto começou em 2015 e foi ampliado até alcançar outros sete estados: Maranhão, Acre, Alagoas, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Piauí e Pará.

O Amparando Filhos tenta reparar os vínculos entre mães encarceradas e seus filhos em um ambiente recreativo e fora da prisão, onde procedimentos de segurança não são necessários. Todo o processo de acolhimento e aproximação familiar é acompanhado por psicólogos e assistentes sociais.

A superação do estigma

Para Stella, a única solução para superar o estigma de contato é tratar o preconceito na raiz. Com uma pena de prisão mais digna, uma inserção na sociedade sem muitos preconceitos para os pais, os estigmas para as crianças já seriam reduzidos.

“Se uma mulher que sai hoje da prisão, por exemplo, tivesse acesso ao mercado de trabalho, esse estigma que ela carrega de ex-presidiária não ficaria com ela. Consequentemente, a criança seria menos estigmatizada. A gente tem que tratar quem tem o estigma principal, que são os presidiários”

Cláudia Stella

psicóloga e doutora em educação pela USP

Para Reyes, é preciso “dar educação em todos os sentidos”. A educadora afirma que a resposta está em conceder suporte e acolhimento para as crianças que vivem a realidade de ter os pais encarcerados.

“Quando alguém vai para a guerra, a comunidade fica atenta à família dessa pessoa. Aqui, para as pessoas que estão presas, é totalmente o contrário. Se o cara vai preso, todo mundo some. Todo mundo fica longe dessa família. Uma coisa é carregar um saco de cimento sozinho, outra coisa é você carregar o mesmo saco de cimento junto com dez pessoas. É a sua rede de apoio que vai fazer a diferença”

Gabriela Reyes

professora do departamento de educação na Universidade Federal do Paraná

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