O papel dos militares nas investidas contra o processo eleitoral
Isabela Cruz
25 de abril de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h43)Barroso diz ver pressão para que Forças Armadas ataquem a credibilidade da votação. Para generais, as afirmações do ministro do Supremo foram feitas sem prova
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Desfile de veículos blindados no mesmo dia em que Câmara votava a PEC do voto impresso
Num momento de nova crise do Executivo com o Judiciário, uma fala do ministro Luís Roberto Barrosodurante um evento acadêmico gerou forte reação dos militares contra o representante do Supremo Tribunal Federal. Barroso disse que as Forças Armadas estariam “ sendo orientadas para atacar o processo [eleitoral] e tentar desacreditá-lo”, após enumerar investidas do bolsonarismo contra as instituições do país.
Ministro da Defesa e general da reserva, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira disse que a fala foi uma “ ofensa grave ” e sem base em provas. Colegas fardados o seguiram. Um deles chegou a afirmar que Barroso tinha cometido crime militar , por “propalar fatos, que sabe inverídicos, capazes de ofender a dignidade ou abalar o crédito das Forças Armadas”.
O esforço para blindar as Forças Armadas contra a percepção de que elas estariam inclinadas a se imiscuir no jogo político acontece após o presidente Jair Bolsonaro ter usado boa parte de seu mandato para atacar sem provas a credibilidade do sistema eletrônico de votação, numa cruzada que em diversos momentos teve o apoio de generais, a partir dos clubes militares e mesmo de dentro das instituições nacionais. Neste texto, o Nexo retoma de que forma isso ocorreu.
Em meados de 2021, Bolsonaro, com a popularidade em baixa, intensificava seus ataques sem prova à credibilidade das urnas eletrônicas e condicionava a realização de eleições de 2022 à implementação no Brasil do chamado voto impresso – uma proposta que já naquele momento tinha poucas chances de ser aprovada e contava com a rejeição de diversos partidos, de esquerda e direita.
Especialistas ressaltam que nunca houve indícios razoáveis de fraude eleitoral, nas urnas ou na apuração, e apontam que a impressão do voto cria uma série de problemas, que vão desde a alta probabilidade de travamento mecânico da impressora ao risco de violação do sigilo do voto, especialmente para os milhões de eleitores que vivem em comunidades dominadas por milícias .
Mas militares ajudaram a levantar a bandeira do voto impresso. Naquele momento, os polêmicas sobre a pauta dividiram a atenção do debate pública com a CPI da Covid, que revelava indícios de que militares estariam envolvidos em casos de corrupção no Ministério da Saúde.
O apoio à pauta bolsonarista do voto impresso veio de militares, da ativa e da reserva, que ocupam cargos-chave na máquina pública. Da ativa, o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior curtiu um post no Twitter no qual um usuário pedia intervenção das Forças Armadas para aprovar o voto impresso. “Comandante, obrigado pelo canal de comunicação. Precisamos do voto impresso auditável. Vocês precisam impor o voto auditável”, dizia a pessoa.
Diferentemente de militares da reserva (fora de serviço mas ainda disponíveis para convocação caso necessário) ou reformados (não mais disponíveis), os militares da ativa (em serviço) são proibidos por lei de se manifestarem publicamente de forma político-partidária. Trata-se de garantia democrática, frequentemente atropelada no Brasil, para prevenir que o jogo político seja desequilibrado por instituições armadas.
Da reserva, o general Luiz Eduardo Ramos, atual ministro da Secretaria-Geral da Presidência e então ministro da Casa Civil, defendeu publicamente o que chamou de voto auditável. Embora fora do serviço militar, Ramos se coloca como representante da classe. Nesta segunda (25), ele reagiu à fala de Barroso, segundo membros do Exército, para defender as Forças Armadas .
“Defender a soberania nacional é dever das Forças Armadas. Eleições democráticas e transparentes fazem de nós um país soberano, por isso, nossas FA [Forças Armadas] estarão sempre vigilantes pelo bem do nosso povo, do nosso Brasil”, disse Ramos no Twitter. Na mesma linha de Bolsonaro, ele também já levantou suspeitas contra a imparcialidade da Justiça Eleitoral.
Também da reserva, o general Walter Braga Netto foi outro que passou a militar pelo voto impresso. Nesse caso, a defesa da pauta chegou ao nível de ameaça, segundo reportagem do jornal O Estado de S.Paulo.
O Clube Militar, o Clube Naval e o Clube de Aeronáutica, que reúnem oficiais já na reserva, também ficaram do lado de Bolsonaro. Numa nota em agosto, defenderam o voto impresso e chegaram a repetir os argumentos que o presidente apresentou durante live para contestar a credibilidade das urnas.
A live foi considerada um fiasco, pois foram apresentados como prova apenas rumores já desmentidos que circulam há anos na internet. Em resposta à iniciativa do presidente, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e o Supremo abriram inquéritos contra ele, já que a legislação nacional, como forma de proteger a democracia, não permite ataques sem prova à credibilidade do sistema eleitoral.
Ignorando uma série de etapas do processo eleitoral em que o sistema pode ser auditado, os clubes afirmaram: “Seria a aceitação passiva dos resultados da urna eletrônica mais aconselhável, a fim de evitar questionamentos válidos, no melhor estilo ‘Cale-se, eu sei o que é melhor para você’? Eis a verdadeira ditadura”.
Publicada em julho de 2021, a reportagem do Estado de S. Paulo relata que Braga Netto fez chegar ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que, sem voto impresso, não haveria eleições . A mensagem teria feito Lira, que vem apoiando o governo e conseguindo manejar fatias bilionárias do Orçamento, a procurar Bolsonaro para afirmar que não toparia um golpe no país.
Braga Netto e Lira negaram que esse episódio tenha ocorrido. “Reitero que eu não enviei ameaça alguma, não me comunico com presidentes dos poderes por intermédio de interlocutores”, disse o general da reserva a deputados em agosto, ao ser chamado a se explicar sobre o assunto.
Hoje, Braga Netto está quase confirmado, segundo o próprio presidente, como seu vice na chapa em que ele irá concorrer à reeleição, em outubro.
O ápice até o momento da tensão política nacional pelo envolvimento militar no processo eleitoral se deu em 10 de agosto de 2021, dia em que o Congresso votou uma PEC (proposta de emenda à Constituição) que pretendia implantar no país a impressão do voto dado na urna eletrônica, o chamado voto impresso.
Enquanto os parlamentares discutiam a proposta, as Forças Armadas colocaram as tropas nas ruas, literalmente. A poucos metros do Congresso, os militares desfilaram com tanques de guerra, num desfile acompanhado por Bolsonaro e entremeado por gritos de apoiadores do presidente, pedindo por uma intervenção militar . Parlamentares da oposição ao governo viram a ação como uma tentativa de intimidação contra o poder Legislativo.
As Forças Armadas, por sua vez, alegaram que o desfile não passava de cerimônia protocolar para convidar o presidente a assistir à Operação Formosa, um tradicional exercício da Marinha. Segundo a Marinha, o evento já estava marcado antes de a votação da PEC do voto impresso ser agendada.
Desfile do tipo costuma ser feito anualmente pela Marinha, mas não no centro de Brasília, como foi em 2021. A ordem para o evento ocorrer na Praça dos Três Poderes teria sido dada pelo próprio governo. A participação do Exército e da Aeronáutica também foi uma novidade .
No plenário dos deputados, o voto impresso acabou rejeitado . Já a carreata de blindados acabou virando meme na internet por causa da precariedade dos veículos militares e da cortina de fumaça que saía de um dos tanques de guerra.
Em novembro de 2021, o TSE realizou o Teste Público de Segurança. Evento permanente do calendário eleitoral, o teste dá oportunidade a especialistas em cibersegurança interessados em colaborar com a Justiça Eleitoral de identificarem eventuais necessidades de atualização do sistema ainda no ano anterior ao eleitoral.
O Exército foi convidado a participar, mas não mandou representante. Segundo a CNN Brasil, a decisão se deveu ao fato de que parcela significativa das Forças Armadas acredita que o próprio teste, da maneira como é realizado, não é capaz de assegurar se a urna eletrônica é realmente segura. As razões para essa desconfiança não ficaram claras.
A credibilidade do sistema eletrônico já foi atestada por entidades como a Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais , vinculados à Polícia Federal, e o Tribunal de Contas da União.
Diante das dúvidas jogadas por Bolsonaro sobre o processo eleitoral, os ministros do Supremo que atuavam no TSE em 2021 decidiram chamar as Forças Armadas para participar do processo eleitoral.
Na recém-criada Comissão de Transparência das Eleições, uma das 12 cadeiras do grupo foi disponibilizada para um indicado do governo. Braga Netto, então ministro da Defesa, escolheu para o posto o general Heber Garcia Portella, comandante de Defesa Cibernética das Forças Armadas. Depois, o general da reserva Fernando Azevedo e Silva ainda foi chamado para ser diretor-geral do TSE – inicialmente aceitou, mas depois desistiu alegando motivos pessoais.
A presença militar no TSE, na visão dos ministros, seria importante para esvaziar o discurso golpista de Bolsonaro, já que, nessa estrutura, esse tipo de narrativa colocaria o bolsonarismo contra as Forças Armadas. Analistas políticos, porém, condenaram a estratégia , que colocaria o país numa situação de refém de um aval militar a respeito da credibilidade do sistema eleitoral, segundo eles.
Ainda no final de 2021, o general Portella encaminhou ao TSE uma lista de questionamentos sobre os processos de preparação e realização das eleições, incluindo consultas sobre a estrutura básica de funcionamento do tribunal na área cibernética e os procedimentos adotados em eleições anteriores.
Bolsonaro aproveitou a oportunidade para criar mentiras. Durante uma live em fevereiro, o presidente disse que as Forças Armadas teriam encontrado “diversas vulnerabilidades” no sistema eleitoral. “Nosso pessoal do Exército, da guerra cibernética, buscou o TSE e começou a levantar possíveis vulnerabilidades. Foram levantadas várias, dezenas de vulnerabilidades. Foi oficiado o TSE para que possam responder às forças armadas. Passou o prazo e ficou um silêncio”, disse o presidente.
A cúpula do TSE reagiu. Decidiu tornar públicas as perguntas dos militares e as respostas fornecidas pelo tribunal, “diante do vazamento da existência de perguntas que foram formuladas, bem como do próprio teor das perguntas”, para mostrar que a história das “vulnerabilidades” contada por Bolsonaro era inventada.
As Forças Armadas, por sua vez, não se manifestaram, mesmo diante do crescimento das polêmicas que Bolsonaro havia levantado. Na época, Barroso, que sempre elogia a atuação das Forças Armadas no período pós-redemocratização, afirmou ao jornal O Globo que o comportamento do presidente “mais revela limitações cognitivas e baixa civilidade do que propriamente um risco real [à democracia]”.
ESTAVA ERRADO: A primeira versão deste texto informava que Paulo Sérgio Nogueira é um general da ativa. Na verdade, ele foi transferido para a reserva em abril de 2021. A informação foi corrigida no dia 10 de agosto de 2022, às 19h15.
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