Como o assassinato de Abe se insere no clima político mundial
João Paulo Charleaux
08 de julho de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h43)Morte de ex-primeiro-ministro japonês durante evento eleitoral engrossa ambiente de polarização, tensão e ódio entre adversários, de acordo com especialistas ouvidos pelo ‘Nexo’
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Policiais capturam homem que disparou contra o ex-premiê japonês Shinzo Abe em Nara
O assassinato do ex-primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe – morto a tiros nesta sexta-feira (8) quando participava de um comício em Nara – é um caso isolado num país em que a violência armada é rara, mas seus reflexos simbólicos e interpretações se expandem num contexto de violência política em várias parte do mundo, incluindo o Brasil, segundo especialistas ouvidos pelo Nexo .
O Japão tem eleições marcadas para domingo (10) e o espectro da violência não fazia parte do horizonte, como faz em países como os EUA, que têm eleições de meio de mandato em 8 de novembro, e no Brasil, que tem eleição presidencial em 2 de outubro. Na quinta-feira (7), uma bomba caseira com fezes foi lançada no comício do pré-candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva, na Cinelândia, no Rio de Janeiro.
O Nexo ouviu especialistas em ciência política para dimensionar as repercussões do assassinato de Abe no cenário mundial neste momento.
O Japão tem apenas casos isolados de violência política e de violência armada em geral. O país é considerado estável e seguro para os padrões internacionais, mesmo que haja fatos pontuais de grande repercussão de tempos em tempos. Neste sentido, o assassinato de Abe não se conecta diretamente com outros contextos.
O número de incidentes com armas de fogo é baixíssimo no Japão. Desde 2008 o país não chega a registrar sequer a proporção de um homicídio intencional por grupo de 100 mil habitantes. Enquanto, nos EUA, foram 7 homicídios por 100 mil em 2020. No mesmo ano, no Brasil, foram 22. Em 2017, por exemplo, os japoneses tiveram apenas um homicídio por arma de fogo, enquanto os EUA tiveram 14.532 no mesmo período e o Brasil teve 47.510 . Essa proporção se mantém ao longo dos anos.
O primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, ao lado do quadro que apresentou o termo ‘Reiwa’ ao público
A violência política no país também é incomum. Mesmo assim, afetou a família Abe duas vezes: o avô de Shinzo Abe, Nobusuke Kishi, primeiro-ministro de 1957 a 1960, foi esfaqueado quando saía de casa, em julho de 1960, mas sobreviveu. Passados 62 anos, Shinzo foi morto na sexta-feira (8) num ataque semelhante.
No mesmo ano de 1960 em que o avô de Shinzo foi esfaqueado, outro crime marcou a política local: Inejirō Asanuma, proeminente político socialista japonês, foi morto por um ativista da extrema direita nacionalista diante das câmeras, quando participava de um programa de TV.
O atentado contra Abe não está conectado com outros movimentos ou grupos políticos pelo mundo, e nem sequer dentro do próprio Japão. Ainda assim, “é um fato que irradia algum poder sobre pessoas de propensão radical, que abre a possibilidade de que essas pessoas, mesmo isoladas, sintam-se encorajadas a tomar atitudes semelhantes em outras partes do mundo”, disse ao Nexo , na sexta-feira (8), Alexandre Uehara, professor de Relações Internacionais da ESPM, em São Paulo, que estuda política japonesa.
Embarcação da guarda-costeira do Japão patrulha área próxima de arquipélago disputado com a Rússia
Uehara lembra que existem “grupos nacionalistas que consideram que o Japão saiu da Segunda Guerra Mundial [1945] muito humilhado pelo domínio americano”. Os atentados políticos são protagonizados por essas figuras nacionalistas ressentidas, que ecoam um sentimento comum de frustração e de injustiça histórica, mesmo que seus atores não estejam unidos e organizados em grupos formais.
O assassino de Abe foi identificado como um militar reformado que realizou o atentado com uma arma de fabricação caseira. Uehara diz que é tradição no jornalismo japonês não dar detalhes sobre os envolvidos nesses crimes para não amplificar a mensagem deles e para não estimular outras pessoas que pensem de forma parecida.
Ainda assim, Uehara diz que esse elemento de ressentimento com o nacionalismo ferido pela Segunda Guerra é próprio da política japonesa. Ele não acredita que esse fato vá desatar uma onda de ataques semelhantes no país, porque não é da cultura local e nem há meios para que isso aconteça, dado o controle estrito sobre armas de fogo no país.
Mesmo o atentado contra Abe sendo circunscrito a elementos muito episódicos e particulares, o momento em que ele acontece torna possível analisá-lo sob a perspectiva de um clima de violência política crescente no mundo, de acordo com especialistas ouvidos pelo Nexo .
“O que nós estamos vivendo é uma escalada de violência política no mundo”, disse ao Nexo o antropólogo e historiador Alexandre de Almeida, que faz parte do Observatório da Extrema Direita no Brasil. Essas ações são protagonizadas, segundo ele, tanto por “lobos solitários” – pessoas que agem sozinhas, desconectadas de grupos – quanto por membros de movimentos políticos subterrâneos.
Avaliação semelhante é feita por Guilherme Casarões, professor de relações internacionais na FGV (Fundação Getulio Vargas) de São Paulo. Ele disse ao Nexo que “a tragédia ocorrida com o ex-premiê Shinzo Abe, da qual pouco ainda se sabem detalhes, parece inscrever-se nesse contexto global de crescimento da violência política. É um sinal – mais um, infelizmente – de que temos que zelar por nossos representantes e não mais tolerar discursos violentos, sob o risco de se transformarem em novas ações dessa natureza”.
Casarões explica que “a política, como fenômeno social, oscila entre a construção do consenso por meio do diálogo, da concertação e da negociação, e a promoção e demarcação do conflito, em que grupos com interesses distintos, em vez de trabalharem juntos, lutam – às vezes de maneira brutal – pelo controle político”.
De acordo com ele, “se a dinâmica política de um país – ou do mundo – será mais consensual ou conflituosa, isso dependerá da confiança nas instituições democráticas, que impedem que o conflito político converta-se em violência política; do grau de radicalização política numa sociedade, que é um passo além da mera polarização político-partidária; e, por fim, da tolerância da sociedade a discursos de antagonização, desumanização e eliminação do dissenso na figura do ‘outro’”.
Almeida destaca ainda o efeito negativo da sensação de impunidade em relação aos atores políticos que recorrem à violência. De acordo com ele, a repressão a esses atos tem sido “muito tímida”, o que encoraja novas atitudes violentas, que alimentam um ciclo cada vez mais violento.
Almeida, Casarões e Uehara referem-se principalmente aos casos de violência política nos EUA e no Brasil. Os dois casos têm em comum a grande polarização, o recurso à violência e a iminência de eleições decisivas. Ambos países têm também históricos recentes de violência política.
Nos EUA, foi a invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, quando apoiadores do então presidente, Donald Trump, entraram no Congresso para impedir que o democrata Joe Biden fosse declarado presidente, após ter vencido a eleição de novembro de 2020. O movimento fracassou em seu intento principal, mas abalou de forma inédita a democracia americana, e permanece como uma ameaça latente para as eleições futuras.
Ex-presidente Lula e apoiadores durante cortejo de comemoração ao 2 de julho, Dia de Independência da Bahia
No caso do Brasil, houve o ataque a faca de Adélio Bispo contra o então candidato Jair Bolsonaro, durante um comício de campanha em Juiz de Fora, Minas Gerais, em setembro de 2018. A investigação concluiu que Adélio agiu de forma isolada, mas a suspeita de um complô seguiu sendo alimentada por Bolsonaro e seus apoiadores.
Ao mesmo tempo, a esquerda coleciona casos em que foi vítima de ações violentas. Só nos primeiros meses de 2022, houve a explosão de uma bomba caseira carregada de excrementos no comício de Lula na Cinelândia, no Rio de Janeiro, na quinta-feira (7). Em junho, um drone que lançou um líquido que tinha cheiro de fezes e urina sobre outro evento do PT, desta vez em Uberlândia, Minas Gerais. Em maio, o carro que levava Lula foi alvo de um cerco, em Campinas (SP).
Adelio Bispo de Oliveira, autor do atentado, é escoltado por policiais
O homem suspeito de lançar a bomba caseira na Cinelândia foi preso pela polícia na quinta (7). No sábado (2), tinha sido detido por aquisição ilegal de armas de fogo o dono do drone usado no ataque de Uberlândia, um mês antes.
No caso do Brasil, Almeida considera que o país “está vivendo o momento de maior violência política desde o fim do regime autoritário”. Para ele, a eleição presidencial de 2 de outubro “é a mais polarizada da Nova República [iniciada em 1985]”, o que faz crescer o risco de atos violentos.
A maior preocupação de Almeida é com “uma direita que saiu do armário, está sendo chamada a sair às ruas, e não quer mais voltar para o armário agora nem no momento de pós-eleição”, o que ele diz que ocorre tanto no Brasil, com os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, quanto nos EUA, com os militantes republicanos ligados a Donald Trump.
Casarões considera que “o clima de violência política, que está colocado, manifesta-se primeiro no plano do discurso e, posteriormente, na ação”. Para ele, “a escalada de tensões sociais nos EUA abriu caminho para a radicalização do discurso político, pautado pela violência simbólica e concreta, que se materializou na candidatura de Donald Trump. O mesmo ocorreu no Brasil pós-2013, redundando na ascensão – e triunfo – de Jair Bolsonaro, ele próprio vítima de um atentado político às vésperas das eleições”.
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