Expresso

O jogo pesado da campanha na TV no segundo turno

Malu Delgado

16 de outubro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h45)

Com agressividade e apelo a pânicos morais, temas migram das redes para peças oficiais em lógica do ‘tudo ou nada’. Segundo estategistas, uso não é novidade, mas intensidade em 2022 reflete degradação do debate político nacional

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FOTO: REPRODUÇÃO – YOUTUBE

Várias telas de televisão num fundo escuro, algumas com imagens de câmeras de segurança com homens de moto na rua, uma mostra Lula e Haddad num comício

Trecho de propaganda eleitoral do candidato Jair Bolsonaro

A campanha eleitoral no segundo turno tem sido marcada pela exibição e veiculação de peças de propaganda com alto teor de agressividade e pânico moral. O embate em clima de“tudo ou nada”, já conhecido da internet, está nas telas de TV e em rádios das casas dos brasileiros.

O discurso pesado em campanhas, com tom apelativo e emocional, não é uma novidade. Porém, a proporção em que esses materiais apelativos são disseminados para explorar valores dos eleitores , em especial os religiosos, e a falta de limites tem suscitado questionamentos sobre as consequências do atual nível da política brasileira para o debate público numa democracia.

Neste texto, o Nexo traz reflexões deespecialistas em marketing político eleitoral que foram responsáveis por campanhas no primeiro turno sobre o embate travado por Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na nova etapa da votação: o que há de novo em comparação com o passado e que consequências isso traz para o país e o meio político?

‘Guerra’ começou já no primeiro turno

Peças sobre canibalismo , xenofobia , racismo chegaram às campanhas nas duas primeiras semanas após o segundo turno depois de esquentarem as redes sociais.

“Não me parece surpreendente o segundo turno ter começado neste nível de aquecimento em razão da polarização estabelecida na eleição. Há uma escalada de violência política que vem tomando a comunicação eleitoral e a política eleitoral há algum tempo. E quando vai chegando perto da urna, fica mais violento”, afirmou ao Nexo Felipe Soutello, estrategista político que atuou na campanha de Simone Tebet (MDB) no primeiro turno.

Soutello apontou que a campanha ofensiva do segundo turno não se iniciou agora. Já na primeira fase da disputa havia movimentos semelhantes. Soutello recorda do primeiro comercial agressivo da campanha de Bolsonaro, direcionado apenas para os públicos das TVs católicas (Canção Nova, TV Aparecida, Rede Vida, entre outras), em que apareciam inserções de falas de Madre Tereza de Calcutá mescladas com falas descontextualizadas de Lula sobre o aborto, quando praticado pelas elites.

“Bolsonaro foi o primeiro a usar a imagem de uma santa da igreja católica para fortalecer o discurso de ódio e uma tese de que o Lula defende o aborto, junto ao público católico. Isso aconteceu no primeiro turno”, relembra. O PT tentou retirar o comercial do ar, mas não obteve sucesso. A Justiça Eleitoral, a despeito de várias iniciativas positivas no pleito, teve um timing “bastante ruim”, diz ele, para analisar decisões judiciais em relação à propaganda eleitoral.

Para combater Bolsonaro, a campanha de Lula usou a mesma Madre Tereza num comercial de contra-ataque, intercalando frases da santa “com as frases bizarras de Bolsonaro”. “Ou seja, os dois candidatos digladiaram num território usando a questão religiosa, especificamente no campo católico. É preciso dizer que Bolsonaro inaugurou essa prática, e Lula, depois, seguiu.”

Para Soutello, é óbvio que as duas campanhas, tanto a de Bolsonaro quanto a de Lula, são agressivas. No entanto, ele enxerga na campanha de Lula uma estratégia com o objetivo de impedir que retóricas controversas e de pânico moral perdurem ao longo do tempo. A campanha de Lula, diz Soutello, “ao estabelecer o contraditório no mesmo nível, impede que um assunto mais pesado prossiga no tempo”. “Tem um efeito de neutralizar [o oponente], mas o que a gente percebe é um cansaço muito grande do eleitor diante isso”, frisa o estrategista. “A crítica é muito importante nas eleições, o contraditório é importante, apesar de gerar algum desgaste eleitoral, porque ele estabelece uma lógica de comparação e de fragilidades. Isso é importante em termos de estratégia.” Essa reação, porém, precisa ser mensurada pelas campanhas e ser feita com credibilidade, observa.

“É uma escalada infelizmente previsível de como está o debate político nacional, muito desqualificado e nivelado por baixo. O efeito da comunicação política agressiva está destampando a panela de pressão e dando uma espécie de licença para um ‘liberou geral’, para todo mundo colocar para fora os seus demônios e o que há de pior ”, disse Felipe Soutello. É preciso ser justo: isto está mais carregado para o lado de Bolsonaro. Não que não exista agressividade na campanha do PT, mas ela está muito mais na lógica das declarações do presidente. Tudo o que está sendo colocado na campanha do PT vem da boca do Bolsonaro. Não são construções. É simplesmente e literalmente as coisas malucas que Bolsonaro vem falando ao longo da vida. É ele diante de suas próprias contradições.”

Exemplo de migração rápida de um tema polêmico das redes para as propagandas na TV – com base em falas do próprio Bolsonaro – aconteceu entre sábado (15) e domingo (16). Apoiadores de Lula e Bolsonaro se mobilizaram no fim de semana em torno de um vídeo do presidente em que ele relata ter visto meninas venezuelanas, de 14 e 15 anos, quando participava de motociata em São Sebastião, no Distrito Federal. Bolsonaro disse, em entrevista ao podcast do canal Paparazzo Rubro-Negro na sexta-feira (14), que “pintou um clima” e entrou na casa das meninas. Depois insinuou que elas fossem vítimas de exploração sexual por estarem se arrumando num fim de semana.

“Eu parei a moto em uma esquina, tirei o capacete e olhei umas menininhas, 3, 4, bonitas, de 14, 15 anos, arrumadinhas em um sábado numa comunidade. E vi que eram meio parecidas. Pintou um clima, voltei. ‘Posso entrar na sua casa?’. Entrei. Tinham umas 15, 20 meninas, sábado de manhã, se arrumando. Todas venezuelanas. E eu pergunto: meninas bonitinhas de 14, 15 anos se arrumando no sábado para quê? Ganhar a vida. Você quer isso para a sua filha, que tá nos ouvindo agora?”

Jair Bolsonaro

presidente e candidato à reeleição, em entrevista na sexta-feira (14)

O vídeo circulou à exaustão nas redes no sábado – termos como “Bolsonaro pedófilo” e “Bolsonaro pervertido” ficaram entre os assuntos mais comentados do Twitter –, e no domingo foi incluído numa peça oficial do PT. “É esse homem que diz defender a família?”, diz a propaganda. A campanha de Bolsonaro pediu ao Tribunal Superior Eleitoral que tire a peça do ar e teve o pedido aceito pelo presidente da corte , Alexandre de Moraes. Em resposta às acusações, a campanha tem impulsionado anúncios do Google dizendo que o presidente não é pedófilo e Bolsonaro fez uma live na madrugada de domingo (16) para explicar sua fala. Nela, disse que “o PT ultrapassou todos os limites” e destacou que o episódio em São Sebastião foi transmitido numa live sua.

Na visita em São Sebastião, transmitida em 2021, o presidente conversa com mulheres venezuelanas sobre a pandemia de covid-19 e a situação econômica do país de origem delas. Não há menção de suspeita de exploração sexual de crianças e adolescentes. O portal UOL conversou com uma das mulheres presentes na ocasião, que refutou a ideia espalhada pelo presidente e afirmou que a casa realizava naquele dia uma ação social com corte de cabelo e outros procedimentos de estética.

Em seu perfil no Twitter, Bolsonaro tentou rebater a polêmica usando desinformação e acusando a esquerda de promover “todo tipo de degeneração”. Para isso , citou a defesa do direito ao aborto por ativistas feministas e episódios antigos, como o cancelamento da exposição do Queermuseu , em 2017. A campanha do presidente também tem investido em fazer associações entre o PT e o crime organizado em peças eleitorais transmitidas na televisão.

Lógica do segundo turno deixa embate agressivo

Há uma lógica no segundo turno que precisa ser considerada, de acordo com Lula Guimarães, responsável pelo marketing político de Soraya Thronicke (União Brasil) nesta eleição: “Com apenas dois candidatos, vence quem tira votos do outro”, disse ao Nexo . “A lógica faz com que, historicamente, as campanhas de segundo turno sejam mais agressivas. É preciso fazer com que o eleitor de um lado mude de opinião. Numa disputa acirrada e polarizada com esta de 2022, era de se esperar que as campanhas partissem para um tudo ou nada.”

Segundo o especialista, que já fez campanhas de Marina Silva (Rede) e Eduardo Campos (PSB), sempre houve peças apelativas em disputas eleitorais. No entanto, até então, esses conteúdos surgiam de maneira apócrifa, ou em materiais impressos ou nas redes digitais. “O que diferencia a campanha oficial das apócrifas é que a oficial, veiculada na TV, rádio e redes oficiais, está sujeita à lei eleitoral. Cabe aos partidos entrar com representações para bani-las ou obter direito de resposta, que pode ser concedido até mesmo na véspera da eleição, no dia em que a propaganda já está suspensa”, pondera Lula Guimarães.

“Mais do que precedentes para a comunicação, esses casos acendem um alerta para os advogados das campanhas e juízes eleitorais”, sentencia o especialista.

Os absurdos de hoje e do passado

Ainda que o tom de peças oficiais nesta campanha surpreendam, agressividade e baixo nível não são novidades em eleição, recorda Soutello. “O que aconteceu com Marina Silva na eleição de 2014 foi muito sério. E sobre a questão homofóbica, não há como não se lembrar da campanha de 2008, quando Gilberto Kassab foi alvo, para a surpresa de todos, de ataques da campanha de Marta Suplicy, então no PT”, diz ele.

Em 2014, após a morte de Eduardo Campos, Marina Silva assumiu a campanha e quase chegou ao segundo turno. Na reta final da campanha, Marina foi massacrada, numa campanha agressiva feita pela campanha de Dilma Rousseff na televisão. Uma das peças dizia que Marina entregaria o Brasil aos bancos, acabaria com o Bolsa Família, privatizaria estatais. O PT se dividiu, à época, em relação ao tom da campanha, desenhada por João Santana . O PSDB, que tinha Aécio Neves como candidato, também elegeu Marina como alvo, para tentar ir ao segundo turno.

O caso atual de homofobia se estampa, lamentavelmente, diz Soutello, na campanha do Rio Grande do Sul, em que o candidato e ex-ministro Onyx Lorenzoni (PL) fez insinuações sobre o homessexualidade do oponente Eduardo Leite (PSDB), que é assumidamente gay, numa propaganda de rádio. Onyx disse que, se ele for eleito, o estado terá um governador e uma primeira-dama de verdade. “É uma baixaria absurda”, disse Soutello.

“Abriu-se a tampa da panela de pressão. Comunicação política é reflexo da comunicação dos políticos, porque ela é reflexo da política. Não é que esta campanha tenha aberto precedentes. Só acho que a gente chegou ao fundo do poço. O que é mais triste: com uma certa normalização da sociedade em relação a tudo isso. De maneira geral, sentimos a sociedade adormecida diante de toda essa troca de acusações, ofensas, xenofobia, racismo, homofobia, tudo isso que está acontecendo nas campanhas oficiais”, avalia Soutello. Ele reitera que ainda que a campanha petista seja agressiva, a de Bolsonaro é odiosa e repete a estratégia do “trumpismo” e da extrema direita global.

Para onde vamos

O fato de a agressividade das campanhas ter invadido a disputa oficial em rádio e televisão é consequência, segundo Soutello, da integração de meios de comunicação. As telas se misturam (da TV e do celular), pessoas assistem ao YouTube na televisão. Tudo é audiovisual, acrescenta ele, que chega ao eleitor por meios diferentes. A internet, originalmente sempre mais agressiva, sem controle, sem moderação, contamina a televisão. “Porque os espaços se misturam. E como não há censura prévia na propaganda política brasileira, ainda bem, a responsabilidade pelo que se coloca nas telas é integralmente dos partidos e dos candidatos.

Não se faz comunicação política eleitoral sem emissores, ou seja, sem os políticos, analisa Felipe Soutello. Debates duros sempre existiram e devem continuar ocorrendo, pontua, mas a política é um território que exige “certa fidalguia, educação”. “É preciso chamar a responsabilidade dos políticos em relação a isso. Eles é que têm que ser responsabilizados por aquilo que estão colocando no ar. E a sociedade tem que tentar entender até onde ela acha que isso vale e faz sentido para a democracia ter o seu regular funcionamento no país.”

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