Expresso

Qual o saldo do papel de Moraes na condução da eleição

Isabela Cruz

05 de novembro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h48)

À frente do Tribunal Superior Eleitoral, ele teve de dar respostas à desinformação, à politização de militares e policiais e às investidas contra o sistema eleitoral. O ‘Nexo’ traz análises sobre as escolhas do ministro

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FOTO: ANTONIO AUGUSTO/SECOM/TSE – 30.OUT.2022

Moraes ao microfone

O ministro Alexandre de Moraes em entrevista a jornalistas como presidente do TSE

Responsável pela realização das eleições no país, o Tribunal Superior Eleitoral atuou em 2022 sob condições excepcionais. Além da enxurrada de desinformação durante a campanha, como já tinha acontecido nas eleições de 2018, a corte teve de lidar também com seguidos ataques a diferentes pilares do sistema eleitoral e com a politização de militares e policiais.

Coube ao ministro Alexandre de Moraes, já relator no Supremo de inquéritos que têm a proteção da democracia como tema, presidir o TSE na reta final do calendário eleitoral, incluindo os julgamentos das ações apresentadas pelas campanhas de Jair Bolsonaro e de Luiz Inácio Lula da Silva, etapas de fiscalização pública do sistema eletrônico de cômputo dos votos e toda a operação do primeiro e do segundo turno de votação.

Neste texto, o Nexo retoma como Moraes agiu quanto aos principais desafios do TSE em 2022, e traz análises sobre o contexto, o perfil e os possíveis impactos de longo prazo das decisões do ministro.

A resposta à desinformação e seus efeitos

É consenso entre os especialistas em direito ouvidos pelo Nexo que o TSE teve uma atuação muito mais interventiva do que em eleições passadas. Isso aconteceu tanto em relação ao volume de conteúdos derrubados da internet quanto em relação à própria avaliação do que poderia ou não circular .

Para além dos debates jurídicos sobre as particularidades de cada decisão, o ponto central de discordância entre os especialistas está em avaliar se essa atuação mais interventiva se justifica pelo contexto ou se deve ser sempre rechaçada, sob pena de juízes avançarem demais sobre a liberdade de expressão.

Para o advogado criminalista Theo Dias, ex-professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) e conselheiro de organizações especializadas em direitos humanos, “o profundo desarranjo institucional” justifica a atuação extravagante do tribunal. Ele destaca que, nos quatro anos de mandato de Bolsonaro, o TSE e o Supremo, assim como o próprio sistema eleitoral, estiveram sob ataques constantes, “com a complacência do Legislativo, com a omissão de uma PGR [Procuradoria-Geral da República, comandada por Augusto Aras] que foi nula e com a espetacularização das Forças Armadas [que se envolveu no processo eleitoral]”.

“A sensação que tenho é que momentos como os vividos nestes últimos quatro anos servem para testar biografias, para testar as pessoas. Não foi um momento para neutralidade, não foi um momento para omissão”, disse Dias ao Nexo . “Algumas decisões poderiam ter sido melhores, mas como saldo eu valorizo a coragem de Alexandre de Moraes, num momento em que muitos se acovardaram”, afirmou Dias.

Na visão dele, sem Bolsonaro na Presidência deve ocorrer uma “volta à normalidade institucional”, e “um novo equilíbrio na relação entre os Poderes” poderá ser alcançado, a partir do “aprendizado” que as gestões não apenas de Moraes, mas também de Barroso e Fachin buscaram construir para as eleições de 2022. “Foi feito um trabalho importante do TSE para entender como funciona a questão das fake news, dos discursos de ódio, para tentar estabelecer uma relação com as plataformas digitais”, afirmou.

De outro lado, o advogado eleitoral Rodolfo Viana Pereira, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), defende que o TSE não deveria ter agido de forma tão interventiva. Segundo ele, os precedentes abertos colocam o Brasil num cenário conhecido entre os estudiosos da liberdade de expressão como “slippery slope”, ou “ladeira escorregadia”.

“Tanto no Brasil quanto no exterior, temos exemplos de que a intervenção judicial, quando passa a assumir a função de querer controlar o que é dito, em regra gera um abuso; isso é o que temos visto hoje”, afirmou Pereira ao Nexo pouco antes do segundo turno eleitoral.

Também professora de direito da UFMG, Juliana Cesario Alvim Gomes afirma que, passado o momento de tensão eleitoral, os ministros do TSE e do Supremo deverão fazer um “balanço” do que foi estabelecido durante as eleições de 2022, para definir o padrão de atuação nas próximas eleições. Em 2024, o Brasil escolherá seus prefeitos e vereadores.

“Vamos ter que entender como o Supremo e o TSE colocam essa ‘jurisprudência de crise’ no quadro maior das instituições: será uma exceção justificada pelo momento em que nos encontrávamos, pelos dados concretos dos casos, ou isso vai inaugurar uma nova linha de atuação dessas instituições?”, disse ela ao Nexo .

Moraes fica no cargo de presidente do TSE até junho de 2024 , quando acabará seu segundo mandato consecutivo na corte eleitoral (mais uma recondução seria proibida). Ou seja, não será ele a comandar a Justiça Eleitoral nas próximas eleições municipais.

As decisões rápidas contra narrativas de fraude

O discurso contra a urna eletrônica de Bolsonaro e aliados, que se intensificou a partir de 2021 e volta agora, depois do fim das eleições, cessou após o primeiro turno de votação, quando diversos bolsonaristas foram eleitos para o Congresso e para governos estaduais, ou ao menos se habilitaram ao segundo turno. Mas as investidas contra o sistema eleitoral como um todo continuaram, dessa vez com propostas para inibir a atuação dos institutos de pesquisa e consequentemente a informação dos eleitores .

No Congresso, bolsonaristas pediram CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar os institutos e chegaram a defender a criminalização dos profissionais envolvidos em pesquisas que não “acertassem” o resultado das urnas. Na esfera do próprio governo, o ministro da Justiça, Anderson Torres, determinou que a Polícia Federal investigasse a atuação dos institutos. O presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), Alexandre Macedo, fez o mesmo dentro do conselho.

Já no final da corrida eleitoral, a campanha de Bolsonaro afirmou que rádios de todo o Brasil, especialmente do Nordeste, fariam parte de um complô para favorecer Lula, deixando de passar as inserções da candidatura bolsonarista. A campanha, no entanto, apresentou dados de apenas oito das milhares emissoras de rádios que atuam no país. Ainda assim, eram dados da programação veiculada na internet (streaming), e não da programação por ondas de rádio, que se sujeitam a outro tipo de regulação.

Nos dois casos, Moraes agiu rapidamente. No mesmo dia em que as investigações do Cade e da Polícia Federal foram determinadas, o presidente do TSE interveio por iniciativa própria e proibiu que os inquéritos fossem instaurados. Ele afirmou que cabe à Justiça Eleitoral a fiscalização das pesquisas eleitorais, e disse que não há “indicativos mínimos” de procedimentos ilegais por parte dos institutos atualmente. Também destacou que a abertura de investigações para “satisfazer a vontade eleitoral” de um dos candidatos poderia caracterizar desvio de finalidade e abuso de poder.

Em relação às inserções nas rádios, Moraes deu 24 horas à campanha de Bolsonaro para a apresentação de provas, assim que a ação chegou ao seu gabinete. Ao receber o material, o ministro não demorou mais de um dia para rejeitar a abertura de processo, deixando claro que os dados apresentados eram “ aleatórios e parciais ” e as alegações, “extremamente genéricas”. Determinou também a realização de investigações contra a campanha no âmbito do TSE e do Supremo, no inquérito das milícias digitais, para apurar se houve intenção de desinformar a população para finalidades antidemocráticas, o que é proibido pela lei.

A velocidade também aconteceu na retirada de conteúdos da internet, especialmente depois que o TSE aprovou resolução que facilitou esse processo, pouco mais de uma semana antes do segundo turno. As novas regras têm sido muito utilizadas também depois das eleições, para derrubar grupos de WhatsApp e Telegram que preguem o desrespeito ao resultado das urnas e a continuidade das articulações pró-golpe que têm ocorrido pelo país. Com isso, os manifestantes golpistas têm ficado muitas vezes sem orientação sobre como agir. Entre outros pontos, a resolução:

  • Encurtou o prazo das plataformas para cumprirem as ordens de retirada de conteúdo
  • Permitiu ao presidente do TSE estender decisões de retirada de materiais para casos em que conteúdo idêntico ao já proibido for reproduzido em outro endereço eletrônico, sem necessidade de novo julgamento
  • Respaldou o presidente do tribunal para suspender perfis e contas que apresentarem de forma contumaz informações falsas ou descontextualizadas sobre o processo eleitoral
  • Estabeleceu a possibilidade de suspensão de aplicativos de conversa, como o WhatsApp e o Telegram, em caso de descumprimento reiterado das ordens judiciais

“O mérito do ministro Alexandre de Moraes é saber exercer o poder e ter velocidade, rapidez, principalmente na reta final, nessa relação com as plataformas”, afirmou Theo Dias. Para o advogado, “é ingênuo achar que haveria alternativas nessas situações que ocorreram nos últimos dias”.

“As decisões tinham de ser tomadas com muita rapidez, caso contrário se perderia possibilidade de agir”, disse Dias, destacando que o TSE estava lidando “com pessoas que são organizadas, que têm objetivos autoritários e que não se intimidariam se não houvesse uma resposta com muita firmeza”. “Bolsonaro estimulou uma cultura de descumprimento às ordens judiciais, um autoritarismo anárquico”, afirmou.

Diretor-executivo do InternetLab e especialista em direito eleitoral no contexto digital, Francisco Brito Cruz afirma que grande parte da resolução aprovada para o segundo turno das eleições expressa uma lógica de atuação do TSE que muitos defendiam anos atrás. Essa lógica mudou a partir de 2017, quando uma nova resolução da corte foi editada para as eleições do ano seguinte, a partir dos parâmetros do Marco Civil da Internet, de 2014. “Antes de 2017, muita gente defendia que não era necessário pedir a remoção link por link, por exemplo”, disse Cruz ao Nexo .

Para ele, “se perdeu o equilíbrio que estava presente desde 2017, no sentido de seguir no processo eleitoral algo muito parecido com o que está disposto no Marco Civil da Internet sem nenhuma inovação”. A definição de novos padrões, no entanto, dependerá da regulação do Congresso sobre o tema, segundo Cruz. Em setembro de 2021, a Câmara aprovou um novo Código Eleitoral , num texto que limita o poder do TSE de editar resoluções. O texto foi para o Senado e deverá ser votado antes das eleições de 2024.

Cruz destacou também que a possibilidade de suspensão de aplicativos de conversa está em discussão no Supremo. O caso já começou a ser julgado em maio de 2020, mas foi logo suspenso por um pedido de vistas (mais tempo de análise) feito por Moraes , que até agora não devolveu o processo.

Outro tema em aberto é a regulação legislativa sobre a desinformação, seus conceitos e possibilidades de resposta do poder público. “O TSE avançou nesse tema com relação a 2018, sobretudo fazendo uma campanha com relação à credibilidade das urnas, mas quem trabalha nessa área chama atenção para a falta que ainda faz uma regulação legislativa mais precisa com relação a isso”, disse a professora da UFMG.

A relação com os setores armados

Moraes chegou ao comando do TSE num momento em que as relações do tribunal com as Forças Armadas estavam conturbadas. Convidadas durante a gestão Barroso no tribunal para participar da Comissão de Transparência das Eleições e autorizadas a atuarem como entidades fiscalizadoras, as Forças Armadas davam sinais de que poderiam se valer da oportunidade para emprestar um verniz técnico aos ataques sem prova de Bolsonaro contra a credibilidade da Justiça Eleitoral.

Para enfrentar a situação, Fachin, antecessor de Moraes no cargo, insistiu em diversos momentos que as Forças Armadas não teriam poder ou tratamento privilegiado em relação às demais entidades envolvidas no processo eleitoral, como o Ministério Público Federal e a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). A comunidade jurídica aponta que, pela Constituição, as Forças Armadas não têm qualquer papel nas eleições para além de funções logísticas e de segurança.

Mas Moraes se mostrou mais disposto a ceder, como estratégia política. Numa reunião exclusiva com o ministro da Defesa, general da reserva Paulo Sérgio Nogueira, algo que havia sigo negado por Fachin, Moraes acatou a sugestão dos militares para que as eleições de 2022 contassem com testes de integridade feitos com eleitores comuns e com o uso de biometria. Testes do tipo, que checam se a urna está registrando os votos de forma correta, acabaram ocorrendo e atestaram a regularidade das máquinas.

No segundo turno de votação, foi a Polícia Rodoviária Federal que exigiu cálculos políticos por parte do presidente do TSE, ao promover centenas de blitze, especialmente no Nordeste, no dia de os eleitores irem às urnas. A interrupção da operação , que poderia comprometer o resultado eleitoral, exigiu que Moraes, acionado pelo PT, expedisse ordem preventiva e depois, ao ser desrespeitado , informasse o direitor-geral da polícia, Silvinei Vasques, de que ele seria preso se as blitze não fossem suspensas. Moraes também se reuniu pessoalmente com Vasques.

À imprensa, no entanto, Moraes afirmou que não via prejuízos às eleições na operação da polícia, disse que eventuais responsabilidades criminais dos envolvidos no episódio serão apuradas, e garantiu que a votação seguiria normalmente, sem qualquer adiamento. Entidades da sociedade civil que acompanhavam o processo eleitoral concordaram que abalos no prosseguimento normal da eleição dariam força a quem pretendia melar a votação.

Proclamada vitória de Lula, a Polícia Rodoviária pouco fez para conter bolsonaristas radicais que passaram a bloquear estradas, com a pretensão ilegal de solapar o resultado democrático das urnas. Policiais chegaram a ser gravados dando apoio aos golpistas. A Confederação Nacional dos Transportes então acionou o Supremo contra a polícia.

Nesse caso também, Moraes ordenou, desta vez como ministro do Supremo, que a Polícia Rodoviária agisse para desfazer os bloqueios, sob pena de prisão de seu diretor-geral, Silvinei Vasques. O ministro autorizou também a atuação das Polícias Militares estaduais nas rodovias federais. Os demais ministros do tribunal confirmaram por unanimidade a decisão do ministro, que segue cobrando os policiais .

Para a cientista política Adriana Aparecida Marques, professora do curso de Defesa e Estratégia Internacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e especialista nas relações civis-militares, Moraes não tinha muito o que fazer em relação à presença das Forças Armadas no processo eleitoral, uma vez que elas já tinham sido envolvidas.

“Pela característica organizacional das Forças Armadas, missão dada é missão cumprida, eles [os militares] iriam até o fim, ainda mais num processo no qual eles consideram que têm algo a dizer”, disse Marques ao Nexo . Para ela, “o que está subjacente nesse envolvimento é uma percepção [dos militares] de que eles são guardiões da democracia” – algo que não compete a eles , segundo a Constituição.

“Moraes poderia ter continuado com uma postura mais combativa [como fez Fachin], mas isso não iria mudar a atitude das Forças Armadas. Eles podiam ir até o fim numa atitude mais hostil ou podiam ir até o fim numa atitude que reconhecesse o espaço que ganharam”, disse a professora sobre as tentativas do ministro de “distensionar o ambiente”.

Ela afirma, no entanto, que “nos últimos dias das eleições, na hora do vamos ver mesmo, Moraes foi bem firme”, mencionando o fato de o ministro ter cobrado os militares, depois da realização do primeiro turno, sobre o que eles tinham a dizer do processo eleitoral brasileiro. Naquele momento, eles não contestaram coisa alguma.

Atendidas em suas cobranças, porém, as Forças Armadas ainda assim evitaram dar declarações favoráveis ao processo eleitoral. Prometeram apenas para fevereiro de 2023, quando Lula já tiver tomado posse na Presidência, a apresentação de um relatório sobre a integridade do processo eleitoral realizado, deixando em aberto o que poderão dizer. Pela Constituição, a instituição responsável por dar a última palavra sobre a regularidade do pleito é a Justiça Eleitoral.

“Para o futuro, o saldo [desse envolvimento militar nas eleições] é muito negativo. Espera-se que as Forças Armadas tenham outra relação com os Poderes da República”, afirmou Marques.

ESTAVA ERRADO: A primeira versão deste texto informava que o Marco Civil da Internet entrou em vigor em 2017. Na verdade, isso ocorreu em 2014. A informação foi corrigida em 6 de novembro de 2022, às 14h58.

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