O papel vital da alimentação escolar para crianças brasileiras
Isabela Cruz
04 de dezembro de 2022(atualizado 06/02/2024 às 10h59)Especialistas denunciam desmonte do programa federal que garante as refeições nas escolas de todo o país, e apontam formas de retomá-lo no futuro governo
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Num país em q ue grande parte das crianças passa fome em casa, a merenda escolar seria a chance de garantir pelo menos uma refeição adequada a essa parcela da população. Mas não é isso que está acontecendo no Brasil, onde os índices de pobreza têm batido recorde , mas o valor dos recursos federais para a merenda escolar de cada aluno está congelado há anos, enquanto a inflação encarece os alimentos.
Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) publicados na sexta-feira (2), 46,2% das crianças do país com menos de 14 anos viviam abaixo da linha de pobreza em 2021 – o maior percentual da série histórica, iniciada em 2012. Em setembro, porém, o presidente Jair Bolsonaro vetou a recomposição inflacionária dos recursos de um programa fundamental à alimentação de crianças e adolescentes: o Programa Nacional de Alimentação Escolar, ou Pnae.
Neste texto, o Nexo explica o papel e o histórico do Pnae, a situação atual do programa, as urgências para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que assume a Presidência em janeiro, e as indicações já dadas pela equipe de transição a respeito desse tema.
Programa federal para a oferta de alimentação escolar a todos os estudantes da educação básica pública de todo o Brasil, o Pnae, atualmente gerido pelo FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), é um dos principais e mais longevos programas do país voltados à alimentação. Em 2005, no primeiro governo Lula, a FAO, agência das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, passou a considerar o Pnae um modelo para o combate à fome e à desnutrição em países em desenvolvimento.
As origens do Pnae remontam aos anos 1950, quando os governos Café Filho e Juscelino Kubitschek implantaram, a partir de acordos de cooperação internacional, “campanhas de merenda escolar”. As iniciativas buscavam centralizar no governo federal a aquisição e distribuição de alimentos para as escolas do país.
Desde então, o programa federal para a alimentação de estudantes sofreu variações significativas , inclusive no número de municípios vinculados à iniciativa, como mostrou reportagem do site O Joio e o Trigo. Durante a ditadura militar, passou a ser adotada a nomenclatura “Pnae”. A cooperação internacional caiu, e grandes (e poucas) empresas nacionais assumiram o fornecimento dos alimentos escolares ao governo federal.
Foi na década de 1980 que a compra de alimentos para as escolas brasileiras começou a se municipalizar. No início da década seguinte, porém, o Pnae ficou marcado por crises no financiamento do programa e denúncias de corrupção que chegaram a justificar a abertura de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito).
No governo Fernando Henrique Cardoso, o Pnae voltou a ganhar impulso, com uma grande expansão da adesão de municípios ao programa e a determinação, por lei, de que cada estado e município do país deveria ter um Conselho de Alimentação Escolar para receber os recursos federais.
Já em 2009, no segundo governo Lula, o Pnae passou por grande reformulação. O governo conseguiu aprovar no Congresso, uma lei que, elaborada com a participação de diversos setores da sociedade, incluindo organizações de pequenos agricultores e pesquisadores, estendeu o Pnae ao Ensino Médio e à Educação de Jovens e Adultos, reajustou o valor médio da refeição usado para calcular os repasses e determinou que pelo menos 30% dos recursos do Pnae sejam usados para compras da agricultura familiar.
40 milhões
de crianças e adolescentes aproximadamente se alimentam por dia nas escolas públicas do país
PARA A SAÚDE
O cardápio das escolas é escolhido por nutricionistas concursados, com base em exigências de consumo de carboidratos, proteínas e lipídios definidas nacionalmente. A diversidade culinária local e a oferta de agricultores da região também são consideradas. Com o consumo adequado de alimentos, até os nutrientes consumidos são mais bem absorvidos, prevenindo crianças e jovens de problemas como atraso no crescimento e baixa imunidade .
PARA O APRENDIZADO
Alunos com fome têm imediatamente suas capacidades de concentração e de fixação do conteúdo reduzidas. A qualidade do refeitório reflete, portanto, na eficiência das salas de aula. Além disso, a oferta de refeições nas escolas funciona como um fator inibidor da evasão escolar.
PARA O LONGO PRAZO
A insegurança alimentar, em especial na presença de desnutrição, tem efeitos de longo prazo para os estudantes. Atrasos no crescimento, dificuldades de aprendizado e maior risco de desenvolver obesidade e outras doenças crônicas são algumas das consequências. A alimentação adequada nas escolas também promove educação alimentar , criando hábitos saudáveis para o futuro.
PARA AS FAMÍLIAS
A oferta de refeições na escola funciona na prática como transferência indireta de renda para as famílias, ao poupar recursos do orçamento familiar que seriam destinados à alimentação (com o ganho de escala e consequente diminuição de preços proporcionado pelas compras públicas). Além disso, a integração da agricultura familiar no programa, quando cumprida, garante renda constante às famílias produtoras de cada região.
O valor que o Pnae destina a estados e municípios é calculado com base no número de alunos de cada série por localidade. No entanto, esse valor per capita não é atualizado desde 2017, a despeito da inflação que fez dispararem os preços dos alimentos.
Recebendo do Pnae recursos cada vez mais insuficientes, estados (responsáveis pelo ensino fundamental e médio) e municípios (responsáveis pelo ensino infantil e fundamental) têm de desembolsar mais do próprio orçamento destinado a educação para garantirem as merendas, uma responsabilidade compartilhada por todos os entes da federação (União, estados e municípios).
Nesse cenário, sobram menos recursos para outras necessidades da área ou cai a qualidade da alimentação nas escolas. Reportagem de setembro do jornal O Estado de S. Paulo mostrou, por exemplo, famílias denunciando a pouca quantidade de comida nas refeições dos alunos de uma escola municipal de Belo Horizonte. As fotos mostram a refeição com um quarto de ovo , um pouco de molho de carne e arroz e verduras em porções que não passam de uma colher pequena.
R$ 0,36 por dia
é o valor repassado pelo governo federal atualmente para cada aluno do Ensino Fundamental e do Ensino Médio
Os gastos locais, por outro lado, são bem maiores do que isso. Reportagem do site GZH mostra, por exemplo, que prefeituras do Rio Grande do Sul gastam pelo menos R$ 3 com cada estudante por dia, segundo a Famurs (Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul). A contribuição municipal, no entanto, fica prejudicada em prefeituras com orçamentos menores.
Para 2023, o Congresso tentou recompor o valor per capita do Pnae por meio de uma emenda à Lei de Diretrizes Orçamentárias que corrigia em 34% os R$ 4 bilhões anuais destinados ao programa. Mas Bolsonaro vetou o dispositivo. O veto ainda poderá ser derrubado pelo Congresso , como defendem órgãos como o Conselho Nacional de Saúde e o Tribunal de Contas da União.
Além da escassez orçamentária, especialistas em alimentação e gestão pública apontam que o governo Bolsonaro, dando continuidade a orientações do governo Michel Temer, desarticulou uma série de políticas relacionadas às merendas. Uma delas foi a de incentivo ao consumo de alimentos frescos e saudáveis, comprados da agricultura familiar, afirmou ao Nexo Sandra M. Chaves dos Santos, professora da Escola de Nutrição da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e coordenadora da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar.
“A agricultura familiar perdeu lugar nas políticas agrária e agrícola, em favor do agronegócio”, disse Santos, dando o exemplo do Guia Alimentar aprovado em 2014 pelo Ministério da Saúde, para orientar os programas públicos de alimentação e nutrição. Segundo ela, embora o guia fosse considerado um dos melhores do mundo, desde 2016, no governo Temer, “foram muitas as tentativas de tirar o guia de cena, porque nele o uso de agrotóxicos está criminalizado”.
Santos também afirma que, apesar dos muitos esforços em contrário, “alguns elos do controle e a participação social no Pnae, via Conselho de Alimentação Escolar, foram perdidos”.
O Instituto Fome Zero, composto por gestores, profissionais, pesquisadores e militantes envolvidos na formulação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, destaca medidas para a alimentação escolar a serem tomadas já nos primeiros 100 dias de governo:
Santos, da UFBA e da Rede Penssan, defendeu também outras medidas para a futura gestão:
Em relação à retomada da aquisição de produtos da agricultura familiar, Santos chama atenção para a necessidade de o governo federal oferecer assistência técnica ao setor, além de coordenar melhor a logística de distribuição de alimentos.
“Os municípios e estados adotaram formas diversas para prover o acesso dos escolares à alimentação escolar, e em alguns casos, que parecem muitos, houve um retorno à oferta de alimentos processados e até ultraprocessados, com justificativas relativas à logística de distribuição”, disse ela. “Foram muitos anos de trabalho para garantir alimentação saudável nas escolas e será um novo desafio retomar isso”, afirmou.
Para “fortalecer a fiscalização e o cumprimento do Pnae”, o Conselho Federal de Nutricionistas e a Associação Brasileira de Nutrição, junto com outras entidades, propuseram à equipe de transição de Lula uma “ articulação intersetorial ”, destacando que o programa se relaciona com as áreas de saúde e de agricultura.
Ex-ministro da Educação do governo Dilma Rousseff e coordenador da área de educação na equipe de transição de Lula, José Henrique Paim defende que a recomposição dos recursos para alimentação escolar, assim como para o funcionamento das universidades federais, é prioridade para o futuro governo.
“A recomposição está associada àquilo que tem sido defendido como prioritário pelo governo, e uma das principais questões é a fome . Por isso, alimentação escolar é um ponto importantíssimo”, disse ele em reunião da transição.
O Pnae também aparece num relat ório elaborado pela comissão externa da Câmara que acompanha os trabalhos do MEC (Ministério da Educação). Mencionando também outros programas da área, o documento afirma que, sob Bolsonaro, o ministério perdeu poder na gestão do Orçamento federal, ficando cada vez mais dependente do recebimento de recursos via emendas parlamentares, “especialmente as do orçamento secreto” (que são distribuídas sem critérios técnicos, a partir de acertos informais e sem garantia de continuidade).
Para 2023, a equipe de Lula pretende recompor o orçamento do MEC em R$ 12 bilhões, a partir do espaço no Orçamento federal a ser criado com a proposta de emenda à Constituição que o grupo apresentou ao Congresso, a PEC da Transição. Desse valor, R$ 1,5 bilhão deverá ir para o Pnae .
Mas a retomada definitiva de maior controle orçamentário pelos ministérios de Lula ainda não está certa. O presidente eleito prometeu, por exemplo, acabar com o orçamento secreto. Controlado pelo centrão, o Congresso negocia, porém, a manutenção do mecanismo , justamente em troca da aprovação da PEC da Transição. No Supremo Tribunal Federal, o julgamento de ações sobre o orçamento secreto foi agendado para quarta-feira (7).
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