Expresso

O que faz cair a vacinação de crianças e adolescentes

Mariana Vick e Isadora Rupp

07 de outubro de 2023(atualizado 28/12/2023 às 22h10)

Desinformação pesa na decisão dos pais na hora de aplicar imunizantes, mas funcionamento das unidades de saúde e logística ainda são os principais empecilhos 

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FOTO: FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

Profissional da saúde vacina criança contra a paralisia infantil

Profissional da saúde vacina criança contra a paralisia infantil

Levantamento do Ieps (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde), com base em dados do Ministério da Saúde, mostra que houve queda na aplicação de nove vacinas infantis entre 2019 e 2021. Imunizantes que previnem sarampo, meningite, tétano e poliomielite estão entre os que registraram redução na adesão.

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é o número de vacinas voltadas a crianças e adolescentes que constam no PNI (Programa Nacional de Imunizações)

Exemplo no passado por causa do PNI (Programa Nacional de Imunizações), o Brasil erradicou e controlou uma série de doenças endêmicas por meio da ampla aplicação de imunizantes, que também elevaram a expectativa de vida. O quadro, porém, mudou nos anos recentes, piorando na pandemia de covid-19. A queda nas taxas de proteção traz riscos para a saúde pública.

Neste texto, o Nexo explica os motivos da queda na cobertura vacinal de crianças e adolescentes e mostra quais políticas públicas podem ser adotadas para reverter a queda na adesão aos imunizantes.

Os motivos da hesitação vacinal

Pesquisadores apontam a hesitação vacinal como um dos motivos pelos quais a vacinação de crianças e adolescentes caiu no Brasil nos últimos anos. Pessoas hesitantes a vacinas são aquelas que têm desconfiança em relação à sua eficácia e segurança, o que as faz evitar ou adiar algumas inoculações. A recusa aos imunizantes pode ocorrer devido a fatores socioculturais, políticos, pessoais ou místicos.

O fenômeno não é novo. A Revolta da Vacina, movimento de 1904 em que camadas populares do Rio de Janeiro se recusaram a receber o imunizante contra a varíola, talvez seja o exemplo mais antigo da hesitação vacinal no Brasil. Depois da instituição do PNI em 1973, o movimento voltou a tomar forma no Brasil contemporâneo na primeira metade da década de 2010.

A nova onda antivacina surfa no ultraconservadorismo, que ampliou a distância entre população e ciência no Brasil. Dados do estudo percepção pública da C&T no Brasil mostram que o percentual de indivíduos que consideram que ciência só traz benefícios à humanidade diminuiu de 54% para 31% entre 2015 e 2019.

O “ modismo natureba ” também entra na conta da hesitação vacinal, pela crença de que só o que é encontrado na natureza faz bem para a saúde. Logo, vacinas, por serem moléculas sintetizadas artificialmente, não estariam neste bolo, segundo pessoas que seguem essa crença.

Uma dessas resistências à vacina está relacionada com a tríplice viral, que protege contra sarampo, caxumba e rubéola. Uma das maiores notícias falsas sobre o tema relacionou o imunizante ao transtorno do espectro autista, uma informação falsa que vai e volta com frequência desde meados dos anos 2000, por causa de um estudo equivocado feito por um médico que foi pago por uma banca de advogados interessados em processos contra a indústria farmacêutica.

FOTO: HEREWARD HOLLAND/REUTERS

Mão de uma pessoa negra segura um frasco de vacina contra o sarampo. O vidro é marrom e, em uma etiqueta, se lê, em inglês, a frase "vacina de sarampo".

Frasco de vacina contra o sarampo

As informações infundadas sobre a vacina contra o HPV também costumam ser apontadas como um dos motivos para a não aplicação do imunizante dentro das unidades de saúde, disse ao Nexo a enfermeira Maria Lígia Bacciotte Ramos Nerger, da Divisão de Imunização da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.

“O ápice desse problema ocorreu por causa das notícias falsas sobre a covid-19, mas vivenciamos isso em relação a outras vacinas. É algo complicado, às vezes até profissionais de saúde atuam contra”, disse a enfermeira ao Nexo .

A hesitação parece ter crescido no contexto da pandemia de covid-19. Se, por um lado, a comunidade científica recuperou a confiança de parte da sociedade ao produzir em tempo recorde vacinas contra o coronavírus, por outro, a agilidade do desenvolvimento fez com que outros duvidassem de sua segurança. Segundo Nerger, a imunização infantil também é prejudicada por medos de pais sobre possíveis efeitos colaterais.

Outro fator que leva à não vacinação, de acordo com Nerger, é o fato de que muitos pais hoje não vivenciaram problemas em relação à ausência de vacinas, o que traz uma falsa sensação de segurança.

“Com a vacinação, muitas doenças deixaram de circular e a população acredita que não há risco de voltar. A procura em massa pela vacina acontece quando a população se sente ameaçada. Vimos isso com o H1N1 em 2009, com a covid-19 e com o surto de febre amarela em São Paulo em 2018”, afirmou ao Nexo .

A desinformação sobre os imunizantes

A pandemia de covid-19 foi marcada por muita desinformação sobre as vacinas. Mentiras e distorções sobre os imunizantes se espalharam nas redes sociais e afetaram a percepção sobre o tema no Brasil e no mundo. Estudo publicado em 2020 mostrou que, de 2.276 publicações sobre o coronavírus em dezenas de países, apenas 9% eram verdadeiras, por exemplo.

A quantidade de desinformação sobre a vacina de covid-19 em grupos de redes sociais aumentou 383% no primeiro ano da pandemia, segundo estudo da União Pró-Vacina, grupo ligado à USP (Universidade de São Paulo). O instituto Ibope expôs no mesmo ano os participantes de uma pesquisa a 10 afirmações incorretas sobre vacinas e 67% deles acreditaram em pelo menos uma.

FOTO: MARCELO CAMARGO /AGÊNCIA BRASIL

Criança, vestida com uma blusa cor de rosa, é vacinada por profissional da saúde. Na imagem, somente parte do seu rosto aparece, abaixo do nariz.

Criança é vacinada com a tríplice viral, que protege contra sarampo, caxumba e rubéola

A desinformação partiu também do governo federal. O então presidente Jair Bolsonaro desincentivou ativamente a vacinação entre 2020 e 2022, espalhando mentiras como a de que os imunizantes contra a covid-19 causavam aids .

Nos primeiros meses da vacinação infantil, que ocorreu quase um ano depois do início da imunização de adultos, a então ministra Damares Alves associou a morte de uma criança ao imunizante da Pfizer, sem informar que a relação entre os dois já havia sido descartada.

Com a saída de Bolsonaro da Presidência, a comunicação do Ministério da Saúde sobre a vacinação mudou. Mas pesquisadores e profissionais de saúde avaliam que os efeitos da desinformação são duradouros .

Segundo o site Vacinômetro, do governo federal, cerca de 18,6 milhões de crianças de até 12 anos receberam a primeira dose da vacina de covid-19, quando no Brasil a estimativa é de que haja 35,5 milhões de pessoas nessa faixa etária.

“O medo das reações às vacinas é uma das explicações para esse problema, algo que era bastante exacerbado pelo governo anterior, que frisava eventos adversos mas minimizava benefícios”, afirmou ao Nexo o médico José Cássio de Moraes, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

Moraes também conduziu o Inquérito de Cobertura Vacinal nas Capitais, documento que mapeou a cobertura vacinal de crianças nascidas em 2017 aos 12, 18 e 24 meses residentes nas áreas urbanas das capitais brasileiras.

O enfraquecimento do PNI

A queda na cobertura vacinal infantil coincidiu ainda com um período de desmonte do PNI no governo federal.

Criado em 1973, o PNI trouxe reconhecimento internacional ao Brasil e constitui um dos maiores programas de vacinação do mundo. Reforça o foco na prevenção e no cuidado ao longo dos ciclos de vida, contemplando 45 tipos de imunobiológicos, que abrangem desde recém-nascidos até a população idosa. Todos são aplicados de forma gratuita.

O programa foi o grande responsável pela erradicação de muitas doenças no país, sobretudo a poliomielite e a varíola. “E hoje o que temos é o Brasil sob um risco muito alto para volta de circulação da poliomielite. Se os índices de vacinação não melhorarem, nós vamos preparar a volta de epidemias e o não controle de doenças”, disse Moraes ao Nexo .

Há atualmente dois desafios para o PNI: o movimento antivacina e o equilíbrio dos estoques no SUS, uma vez que, ao longo dos anos recentes, a falta de doses foi noticiada em diversas regiões do país.

Na pandemia de covid-19, o programa foi crucial para permitir a vacinação em massa, mesmo com o percurso de compra de vacinas bastante acidentado no governo anterior, inclusive com suspeitas de corrupção . Em 2021, o PNI chegou a ficar cinco meses sem coordenação após a saída Francieli Fantinato, coordenadora do programa entre outubro de 2019 e junho de 2021, que pediu demissão, o que levou a uma desmobilização do programa e obstáculos logísticos.

Desafios das ações de retomada

Para José Cássio de Moraes, as ações do atual governo federal como as campanhas de vacinação como o Movimento Nacional pela Vacinação, que uniu Xuxa e Zé Gotinha como embaixadores, é uma boa iniciativa para que as carteirinhas das crianças e adolescentes sejam atualizadas, embora insuficiente.

De acordo com o médico, o que se constatou no Inquérito Vacinal é que as questões logística e de trabalho das famílias é o que mais impacta na ida a um posto de saúde. Por isso, medidas como ampliação de horários dos postos de saúde e dias de mutirão aos finais de semana são essenciais.

FOTO: BLAD MENEGHEL/@XUXAMENEGHEL

Xuxa foi convidada para ser embaixadora da campanha de vacinação do Ministério da Saúde em 2023. Ela está em pé, sorrindo, usa uma roupa branca e abraça com um dos braços o personagem Zé Gotinha

Xuxa, embaixadora da campanha de vacinação do Ministério da Saúde em 2023, e Zé Gotinha

A utilização de sistemas de alerta e de busca ativa de crianças não vacinadas, facilitado pela informatização dos sistemas e carteirinhas de vacinação, também são medidas fundamentais. Discutir a possibilidade de adoção de vacinas de dose única, utilizadas pelo setor privado, para determinadas regiões e situações, é outra discussão necessária, segundo Moraes.

O mercado de trabalho informal também agrava o problema: Moraes frisa que o retorno de mães precocemente ao trabalho por não terem direito à licença-maternidade dificulta a chegada da criança no posto de saúde nos primeiros meses de vida, quando há a aplicação de inúmeras vacinas no bebê.

Há ainda situações em que estados aplicam vacinas como a da BCG, que protege contra formas graves de tuberculose e deve ser administrada em recém-nascidos, apenas sob agendamento. Isso ocorre porque, ao abrir um frasco com as vacinas, todas elas precisam ser realizadas no mesmo dia, caso contrário, estragam e precisam ser descartados.

De acordo com Moraes, os pais nem sempre são orientados sobre o agendamento e, ao chegar a um posto de saúde para fazer a BCG, muitas vezes são mandados de volta para casa.

“É uma oportunidade de vacinação que se perde. Antes, tínhamos um lema que era: perca vacina, mas não perca a criança. Hoje é o contrário, e isso dificulta. Não é por acaso que 28% não conseguem completar o esquema vacinal”, disse o médico ao Nexo . Em 2021, a cobertura de BCG em bebês foi a menor em uma década .

“O programa vacinal precisa de dinamismo. Não dá só para esperar as pessoas irem ao posto de saúde, é necessário que o Estado seja mais pró-ativo. É fácil dizer que a população não quer se vacinar, e que não é possível fazer nada. Sim, muita gente não quer, mas o problema principal não é esse. E sim os obstáculos que ocorrem pré-chegada ao posto de saúde e dentro do posto de saúde”, afirmou Moraes ao Nexo .

Neste sábado (7), o governo de São Paulo realiza o Dia D da Campanha de Multivacinação em todo o estado – 5.000 unidades básicas de saúde estarão abertas para a atualização da vacinação de crianças e adolescentes. Dúvidas também podem ser sanadas pelo Disque 100.

Este conteúdo é parte da série “A cobertura vacinal de crianças e adolescentes no Brasil”, realizada em parceria com a FJLES (Fundação José Luiz Egydio Setúbal), instituição que atua em iniciativas sociais dedicadas à melhoria da qualidade de vida na infância, ao conhecimento científico sobre a saúde infantil e à assistência médica infanto-juvenil.

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