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Carisma é um dom tão misterioso quanto perigoso

John Potts

06 de janeiro de 2017(atualizado 28/12/2023 às 01h22)

Usado para descrever políticos, celebridades e líderes empresariais, o carisma já teve significados bem diferentes na história, nem sempre positivos

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ARTIGO ORIGINAL

Charisma is a mysterious and dangerous gift

RevistaAeon

03 de agosto de 2016

Autoria: John Potts

Edição: Sam Dresser

Tradução: Murilo Roncolato

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FOTO: KEVIN LAMARQUE/REUTERS – 19.11.2016

Obama foi considerado carismático na política americana. Recentemente, porém, mais ninguém ganhou o elogio

O carisma é mais fácil de reconhecer do que de definir. Artigos de jornais e revistas sempre identificam líderes carismáticos – como John F. Kennedy, Martin Luther King Jr. e Barack Obama – mas esses mesmos artigos raramente descrevem exatamente o que é carisma. É sempre alvo de debate se o carisma é necessário para um líder “transformacional”, enquanto as prateleiras de livros de auto-ajuda prometem, de forma otimista, transmitir os “segredos” do carisma. Outras pessoas afirmam que o carisma não pode ser “desbloqueado” ou “descoberto” por ser algo inato e presente apenas em raros dos indivíduos. Então, para perguntar novamente, o que afinal é carisma?

As origens do carisma são encontradas nas cartas do apóstolo São Paulo, escritas por volta de 50 d.C. Este é o primeiro uso em escrito da palavra “carisma”, derivada do grego “charis” (graça). Para Paulo, carisma significava “o dom da graça de Deus” ou o “dom espiritual”. Nas cartas de Paulo às incipientes comunidades cristãs espalhadas pelo império romano, ele escreveu sobre os “charismata” ou os dons espirituais disponíveis para cada membro da comunidade. Ele identificou nove charismatas, incluindo a profetização, a cura, a fala de idiomas, interpretação de discurso, a educação e o serviço – uma gama de dons sobrenaturais e pragmáticos.

Para Paulo, o carisma era uma noção mística: pensava-se que os dons acendiam em cada indivíduo sem a necessidade de autoridade ou de instituição da Igreja. E não havia carisma de liderança: os “charismata” eram destinados a servir a comunidade sem a necessidade de um líder imposto. Por volta do século quarto, no entanto, a Igreja havia suprimido em grande parte a noção de carisma derivado diretamente do Espírito Santo. Convenientemente, em seu lugar havia uma hierarquia de liderança da Igreja, com bispos no topo, interpretando as leis religiosas fixas inscritas na recém-autorizada Bíblia. O carisma sobreviveu apenas entre heréticos isolados, como os profetas que alegavam inspiração direta sem as mediações de bispos ou da escritura. Essas heresias foram violentamente reprimidas pela Igreja.

A ideia de carisma então permaneceu latente por séculos. Apenas nos escritos do sociólogo alemão Max Weber, no século 20, ela renasceu. Por sinal, nós devemos o significado contemporâneo de “carisma” a Weber, que tomou a ideia religiosa de Paulo e a secularizou, colocando o carisma dentro de uma sociologia de autoridade e liderança. Para Weber, havia três tipos de autoridade: a racional-legal, a tradicional e a carismática. Weber viu a forma carismática da autoridade como o antídoto revolucionário, e até instável, para a “jaula de ferro” da racionalização encontrada no mundo contemporâneo “desencantado”. Ele sustentava que havia algo de heroico sobre o líder carismático, que galvanizava seguidores com grandes feitos ou com seu “carisma da retórica” ​​encontrado em discursos inspiradores.

Weber definiu o carisma como “uma certa qualidade da personalidade de um indivíduo em virtude da qual ele é considerado extraordinário e tratado como dotado de poderes ou qualidades sobrenaturais, super-humanas ou, ao menos, especificamente excepcionais”. Ele traçou a liderança carismática através da história, na pessoa de grandes líderes militares ou religiosos – e também manteve a esperança de que lideranças carismáticas continuariam a surgir, mesmo nas burocracias altamente reguladas do mundo moderno.

Weber morreu em 1920 sem ver a aplicação da sua ideia na política e cultura contemporâneas. Talvez isso tenha sido uma coisa boa, já que os primeiros líderes políticos a serem descritos como carismáticos foram Mussolini e Hitler. Para muitos intelectuais europeus, isso criou a sensação de que a autoridade carismática tinha uma dimensão sinistra. Esse mesmo lado negativo da liderança carismática permaneceu por muito tempo: líderes de cultos nos anos 60, como Charles Manson, com o fascínio que causavam em seus seguidores, eram prontamente chamados de carismáticos. A essa altura, as obras de Weber haviam sido traduzidas, de modo que o “carisma” se popularizou no mundo de língua inglesa nos idos de 1950.

Os primeiros políticos que a imprensa identificou como carismáticos de modo positivo, em vez de demagógico, foram John F. Kennedy (presidente dos EUA entre 1961 e 1963), e seu irmão Robert. Depois da década de 1960, o uso de “carisma” ficou mais mainstream quando passou a ser usado para designar indivíduos excepcionais que não eram líderes políticos, tais como o falecido boxeador Muhammad Ali, por exemplo, talvez o mais carismático de todos.

Hoje, carisma é usado para descrever uma gama de indivíduos: políticos, celebridades, líderes empresariais. Entendemos o carisma como uma qualidade especial e inata que separa certos indivíduos e atrai outros para eles. É considerada uma qualidade rara: na política americana, por exemplo, Bill Clinton era tido como alguém dotado de uma presença carismática, assim como Obama – mas ninguém mais na memória política recente ganha o elogio.

No mundo dos negócios, Steve Jobs é arquétipo de líder carismático: visionário, entusiasmado, mas também volátil e instável. E na cultura de celebridades, o carisma é considerado como um sinal de autenticidade rara enquanto grande parte da indústria do entretenimento se dedica à fabricação da fama artificial, como no caso de “Idols” e “The Voice” [programas de reality show dos EUA]. Carisma não pode ser criado pela realidade da televisão.

O carisma é ainda desejável nos políticos contemporâneos? O biógrafo de políticos David Barnett chamou o carisma de “um dos conceitos mais perigosos em uma democracia que você pode encontrar”. Líderes carismáticos podem inspirar seguidores com uma retórica elevada – o que também pode se mostrar como algo divisivo e prejudicial aos destinos de um partido (ou de uma nação). Os partidos políticos geralmente ficam satisfeitos com líderes populares, inofensivos e folclóricos que têm apelo entre o “povão”. Na Austrália, Paul Keating foi um primeiro-ministro carismático e visionário, mas também um líder causador de cisma que afastou grande parte dos territórios tradicionais do Partido Trabalhista com sua notável arrogância. Seu sucessor, John Howard, foi universalmente considerado como despossuído de carisma, mas seu caráter ordinário acabou por ser seu maior trunfo: era um estilo de liderança mais reconfortante do que ameaçador. Enquanto isso, na Itália, Silvio Berlusconi era um líder populista cujo mandato como primeiro-ministro foi prejudicial para a democracia. O líder carismático pode causar emoção, até mesmo cativar, mas o sucesso desse líder pode não deixar um partido político, ou uma democracia, em um estado saudável.

“Carisma”, como uma ideia, abrange 2.000 anos. Existe uma ligação entre o carisma contemporâneo – considerado uma forma especial de autoridade – e o carisma religioso do tempo do apóstolo São Paulo? Isso recai sobre a noção de inerência, de dom. Paulo disse que nenhum bispo ou a Igreja eram dotados da bênção do carisma: ele simplesmente aparecia no indivíduo, como um dom espiritual. O carisma hoje é enigmático, um fator desconhecido ou especial, de alguma forma insolúvel. Ninguém sabe por que indivíduos raros são abençoados com carisma: ele permanece, como sempre, um dom misterioso.

Aeon counter – do not remove

John Pottsé professor de mídia na Universidade de Macquarie, na Austrália. Ele tem interesse pelas áreas de cultura e tecnologia, mídia digital, história da imprensa, artes contemporâneas e história intelectual. Seu último livro é “The New Time and Space” (O novo tempo e espaço, em tradução livre), de 2015.

A seção “Externo” traz uma seleção de textos cedidos por outros veículos por meio de parcerias com o Nexo ou licenças Creative Commons.

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