Cigarros, bebida, aposta: o ‘imposto do pecado’ na reforma
Letícia Arcoverde e Aline Pellegrini
04 de julho de 2024(atualizado 04/07/2024 às 20h02)Relatório preliminar de projeto de regulamentação de sistema tributário propõe taxação mais alta para carros, inclusive elétricos, mas não caminhões. Armas também ficam de fora
O grupo de trabalho da Câmara divulgou nesta quinta-feira (4) seu parecer sobre o projeto de lei que regulamenta pontos da reforma tributária, entre eles o imposto seletivo. Cigarros, bebidas alcóolicas, apostas e carros elétricos terão taxação acima da alíquota padrão, enquanto armas e munições ficaram de fora. O Durma com Essa explica o que é o “imposto do pecado” e como ele aparece na regulamentação da reforma tributária. O programa também tem participação de Glaucio Neves, que assina uma coluna do Movimento Pessoas à Frente sobre a importância da gestão de pessoas no setor público municipal.
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Edição de áudio Brunno Bimbati
Produção de arte Mariana Simonetti
Transcrição do episódio
Leticia: Uma reforma que vai simplificar o sistema tributário do Brasil, cujas bases já estão na Constituição Federal. Uma reforma que ainda depende de muitas definições e detalhes que estão sendo ajustados no Congresso. Detalhes que incluem a decisão de quais produtos e serviços precisam ser mais caros de propósito. Eu sou a Letícia Arcoverde e esse é o Durma com Essa, o podcast de notícias do Nexo.
Aline: Olá, eu sou a Aline Pellegrini e tô aqui com a Leticia pra apresentar este podcast que vai ao ar todo começo de noite, de segunda a sexta, sempre com notícias que podem continuar a ecoar por aí.
[trilha de abertura]
Leticia: Quinta-feira, 4 de julho de 2024. Dia em que o grupo de trabalho criado na Câmara para analisar projetos que regulamentam a reforma tributária apresentou um parecer. Esse relatório preliminar trouxe sugestões pra alguns pontos que estavam sendo discutidos recentemente, como a taxação de carnes e a lista de produtos sujeitos ao imposto seletivo, também conhecido como imposto do pecado.
Aline: O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse recentemente que era a favor da inclusão de alguns tipos de carne na cesta básica, que fica totalmente isenta de tributação. A bancada ruralista também tava pressionando por isso. Mas o grupo de trabalho não adotou a ideia, e deixou proteínas animais no grupo que tem alíquota reduzida, ou seja, com 60% a menos de impostos. A justificativa dos deputados é que isentar a carne ia aumentar demais a alíquota padrão, que o governo e o Congresso estimam hoje que vai ficar em torno de 26%.
Leticia: A emenda constitucional da reforma tributária aprovada em 2023 prevê a unificação dos tributos sobre o consumo. É um texto que trouxe as bases do novo sistema de recolhimento de impostos do país, que vai ficar mais simples que o atual. Mas ainda tem dezenas de pontos em aberto e precisam ser definidos até o início da aplicação das mudanças, em 2026. É isso que a gente chama de regulamentação da reforma e é isso que tá em discussão no Congresso agora.
Aline: O governo Lula mandou pra Câmara dois projetos de lei com propostas pra essa regulamentação. Um deles foi analisado pelo grupo de trabalho formado por sete deputados que divulgou o parecer nesta quinta-feira. Essas sugestões feitas pelo grupo não são definitivas. Os partidos e líderes vão discutir o texto, que ainda vai passar por votações em comissões e no plenário da Câmara. Durante esse processo os parlamentares vão poder adicionar ou retirar trechos. E depois ainda tem que ser analisado e votado no Senado antes de ir pra sanção presidencial.
Leticia: O presidente da Câmara, Arthur Lira, disse que pretende votar o texto na próxima semana, antes dos parlamentares saírem de recesso na segunda metade de julho. Tem um segundo projeto de regulamentação cujo relatório deve ficar pra agosto, mas ele trata de temas mais técnicos. As atenções tão mais voltadas pro de agora por ele incluir debates como esse da carne, que tão mais próximos da vida da população.
[mudança de trilha]
Aline: Outro tema que também tem esse perfil é o debate sobre o imposto seletivo, ou imposto do pecado, que foi criado na reforma para taxar alguns bens e serviços acima da alíquota padrão. Isso porque esses produtos prejudicam a saúde ou o meio ambiente e o poder público pretende desestimular o seu consumo.
Leticia: Um exemplo clássico de produto que já tem uma tributação maior no Brasil e em grande parte do mundo é o cigarro e outros derivados do tabaco. Segundo cálculos do Instituto Nacional do Câncer, a carga tributária pode representar até 80% do preço de um maço. Na proposta de regulamentação, os cigarros estão sujeitos ao imposto seletivo, junto com similares como fumo para cachimbo e tabaco para narguilé.
Aline: As bebidas alcoólicas também devem ser taxadas pelo imposto seletivo. Houve um debate sobre qual a melhor forma de fazer isso, e o grupo de trabalho manteve a proposta do governo de taxar mais os produtos com teor alcoólico maior. Na prática, cervejas devem ter menos tributos que destilados. Bebidas não alcoólicas açucaradas, como refrigerantes, também vão ter imposto seletivo.
Leticia: O governo também propôs taxar com o imposto seletivo a extração de minério de ferro, de petróleo e de gás natural, pelos efeitos ambientais. Outro grupo de produtos são veículos, embarcações e aeronaves, por serem grandes emissores de gases poluentes. Na proposta do governo o peso do imposto seria menor de acordo com critérios de eficiência energética. Ou seja, veículos considerados sustentáveis ficariam de fora do imposto seletivo.
Aline: Aqui a gente começa a entrar no que o grupo de trabalho mudou no seu relatório preliminar. Eles tiraram os caminhões dessa lista. Você ouve agora um dos membros do grupo de trabalho, o deputado Moses Rodrigues, do União Brasil do Ceará, falando sobre o porquê disso na apresentação do parecer pra jornalistas nesta quinta-feira, em Brasília.
“Isso afeta diretamente, tem um impacto profundo na questão no modal, e aí o Brasil na hora de produzir e distribuir precisa dos caminhões. E aí o entendimento do grupo, o nosso entendimento, é que ele não deveria ser taxado com o imposto seletivo.”
Leticia: Outra mudança foi na lógica de que os veículos menos poluentes deveriam ficar de fora do imposto seletivo. O grupo incluiu no imposto os carros elétricos, com a justificativa de que separar eles dos veículos movidos a combustíveis fósseis atentaria contra a isonomia no mercado automotivo. Ou seja, produtos, entre aspas, “iguais” receberiam tratamento diferente. Eles também afirmaram que as baterias elétricas usam minerais como lítio, cuja extração e descarte podem ter impacto ambiental.
Aline: O grupo de trabalho também incluiu um novo item pra ser taxado a mais, que são apostas ou jogos de azar realizados presencialmente, como em corridas de cavalo, ou online, no caso das bets e dos fantasy games, que são um jogo em que as pessoas montam equipes esportivas virtuais e podem ganhar dinheiro com isso. As bets já foram regulamentadas com uma taxação própria em 2023, depois de anos operando sem regras claras. Também tem um projeto de lei em tramitação no Senado pra legalizar vários tipos de jogos de azar, como cassinos, bingos e o jogo do bicho, hoje proibidos no Brasil. Se isso acontecer, eles podem ficar sujeitos ao imposto do pecado.
[mudança de trilha]
Leticia: Como a gente disse, o governo justifica a criação do imposto seletivo como forma de desestimular o consumo de produtos que podem prejudicar a saúde da população e o meio ambiente. Ou seja, ele é um imposto diferente dos outros, porque o principal objetivo dele não é o de arrecadar, mas sim o de influenciar as escolhas das pessoas.
Aline: No meio acadêmico, o principal argumento usado por economistas e especialistas em políticas públicas para defender o imposto do pecado é que ele pode ajudar a reduzir externalidades negativas, que são consequências indiretas das ações ou escolhas de uma pessoa. É comum que governos usem impostos para controlar externalidades. Outro caso clássico é o imposto sobre a gasolina. Com o combustível mais caro, as pessoas podem deixar de usar seus carros, o que pode diminuir a emissão de gases poluentes e reduzir o trânsito em um local.
Leticia: No caso dos bens prejudiciais à saúde, o argumento utilizado por economistas é que as pessoas que consomem produtos como cigarro, álcool e alimentos açucarados têm maiores chances de ter problemas de saúde, o que pode aumentar o gasto público com saúde no futuro.
Aline: Tem um contra-argumento usado por outros economistas, que diz que hábitos de consumo prejudiciais à saúde podem ter efeito neutro sobre as contas do governo. Isso porque mesmo exigindo maiores recursos do sistema de saúde, as pessoas que consomem esses produtos podem morrer mais cedo, o que acabaria aliviando o sistema previdenciário. Segundo esse raciocínio, as consequências sobre os dois sistemas se anulariam.
Leticia: Vários estudos empíricos tentam mensurar os efeitos desses impostos do pecado. Uma compilação feita pela revista The Economist em 2018 mostrou que esses tributos tendem a reduzir o consumo de produtos como refrigerantes, álcool e tabaco. Também tem pesquisas mostrando efeitos positivos significativos na área da saúde.
Aline: No meio das discussões sobre a reforma tributária, outros produtos também foram aventados pra serem incluídos ou não no imposto do pecado. Antes do governo Lula enviar o projeto de regulamentação pro Congresso, por exemplo, um ponto bastante debatido foi a tributação de alimentos ultraprocessados, como refeições congeladas, salsichas, e salgadinhos em pacote.
Leticia: A lógica aqui seria a mesma dos refrigerantes pelos seus riscos à saúde, que foram identificados em diversas pesquisas científicas. Entidades da sociedade civil e pesquisadores defendiam essa inclusão, enquanto a indústria alimentícia dizia que aumentar a taxação dos ultraprocessados prejudicaria a população de baixa renda. Esses alimentos acabaram ficando de fora da proposta do governo e do parecer do grupo de trabalho da Câmara.
Aline: Os deputados também deixaram de fora armas e munições. Hoje esses produtos têm uma taxação de 55% só na esfera federal, sem contar tributos estaduais. Com a reforma tributária e sem deixar as armas sujeitas ao imposto seletivo, elas pagariam só a alíquota geral, ou seja, de uns 26%. Seria uma queda enorme, que deixaria armas e munições com o mesmo tributo de produtos como perfumes ou fraldas.
Leticia: Esse argumento foi feito por um grupo de 22 pesquisadoras da área de tributação e gênero da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, que encaminharam um documento com sugestões pros parlamentares. Elas defenderam que as armas deveriam ter incidência do imposto seletivo porque também prejudicam a saúde e o direito à vida.
Aline: O texto da PEC com as bases da reforma tributária, o que foi promulgado e incluído na Constituição, tinha um dispositivo pra aumentar a taxação de armas e munições. Só que esse trecho foi derrubado na Câmara. O governo Lula diz que por isso que não incluiu armas no projeto de regulamentação do imposto seletivo, mas que vê a ideia positivamente. Os deputados do grupo de trabalho também disseram que não incluíram os produtos no seu parecer por causa da decisão do plenário na Câmara no ano passado, mas que o texto ainda pode ser alterado.
Leticia: Você ouve aí o deputado Reginaldo Lopes, do PT de Minas, na Câmara, falando sobre isso. Quando ele cita o IVA, é a sigla pra Imposto sobre Valor Agregado, que é o nome desse modelo adotado na reforma de unir vários tributos num só.
“Houve uma redução da carga tributária pra todos os setores econômicos. O IVA não pega um produto e fala vou te carimbar aqui, não. Pra carimbar, tem que levar pro imposto seletivo. Tem que ter maioria no parlamento brasileiro pra levar um produto pro imposto seletivo. Então esse é o debate agora. Quando veio a emenda, nós perdemos, ponto. Agora tem um segundo momento, uma repescagem.”
Aline: A inclusão ou retirada de setores na reforma, tanto no caso do imposto seletivo quanto no caso de exceções, que são aqueles setores que pagam menos imposto do que os 26% da alíquota padrão, são decisões que passam por uma série de interesses. Setores com mais influência e mais presença do lobby no Congresso muitas vezes conseguem vantagens nessas negociações.
Leticia: No caso das armas, esse setor conta com o apoio da bancada da bala, que defende o acesso às armas no país e faz oposição forte ao governo Lula. Quem propôs a retirada do trecho que aumentava a taxação de armas no ano passado foi o PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, e a maior bancada da Câmara.
Aline: O Durma com Essa volta já.
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[trilha da ponto futuro]
Aline: Em outubro os eleitores brasileiros vão às urnas escolher prefeitos e vereadores. Numa coluna do Movimento Pessoas à Frente publicada na editoria Ponto futuro, o Eduardo Araujo Couto e o Glaucio Neves defendem que a gestão de pessoas no setor público merece ser um tema na campanha. O Glaucio Neves comenta agora.
“As eleições municipais são a oportunidade para que a sociedade cobre seus governantes e deem o seu voto a quem acham que melhor pode cuidar do lugar que você mora. Mas a partir do primeiro dia desses governantes, do seu mandato, seja prefeito, vice-prefeito e vereadores, essas lideranças precisarão coordenar um efetivo enorme de pessoas para transformar aquilo que elas prometeram em prática, em políticas públicas efetivas. Nos municípios hoje trabalham 60% dos servidores públicos em atividade do país. Isso totaliza em torno de 6,5 milhões de pessoas, é um contingente gigante. Então é imprescindível que todos os programas do governo prevejam uma nova visão de gestão de recursos humanos, aderente às melhores práticas de gestão de pessoas, e isso tem que além das atividades típicas somente de folha de pagamento e alocação de gente. Uma nova abordagem nesse sentido precisa começar pela escolha de lideranças certas para diversas funções dentro da gestão municipal, porque líderes bem escolhidos são capazes de inspirar suas equipes e transformar a vida de muita gente. Mas além disso é essencial pensar em outros aspectos, como gestão de carreira, gestão do desempenho, gestão de incentivos financeiros e não financeiros, e promoção de uma burocracia também mais representativa. Pessoas brancas hoje ocupam 60% das vagas de liderança nos três níveis da federação. E mulheres recebem apenas 75% da remuneração média em comparação ao total de servidores. Então com tamanho escala e importância, colocar os recursos humanos no centro do debate é prioridade máxima. Despender recursos necessários para motivar essas pessoas e fazê-las produtivas é essencial para quem quer entregar uma gestão pública mais eficiente e eficaz.”
Aline: Você encontra a coluna completa no nexojornal.com.br/pontofuturo.
Leticia: Do imposto do pecado na tributação brasileira à gestão de pessoas nos municípios, durma com essa.
Aline: Com roteiro, apresentação e produção de Leticia Arcoverde, edição de texto e apresentação de Aline Pellegrini, roteiro e edição de texto de Marcelo Roubicek, edição de áudio de Brunno Bimbati e produção de arte de Mariana Simonetti, termina aqui mais um Durma com Essa. Amanhã é dia de Extratos da Semana, quando a gente faz um resumo das principais notícias dos últimos dias. Até lá
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