Função Social da Renda de Cidadania: uma arqueogenealogia do discurso sobre pobreza no Brasil
Autoria
Hermano de Oliveira Santos
LattesÁrea e sub-área
Direito/Antropologia Jurídica
Publicado em
29/05/2023
Como participar?
Os valores sobre os quais se debruçaram as leis brasileiras — vindos da Revolução Francesa —, de liberdade, igualdade e fraternidade, segundo esta pesquisa, apresentam contradições com a realidade prática da perpetuação de sistemas de desigualdade econômica que assola o país.
Pensando nisso, a tese se debruça sobre os problemas estruturais que estão presentes na questão da continuidade da pobreza no Brasil, como fundamentações jurídicas, políticas e econômicas que muitas vezes assumem posturas assistencialistas, falta de representação e participação da população nas decisões do Estado, preconceitos e a forte ideia de propriedade privada.
Por que as iniciativas do Estado brasileiro não são suficientes para eliminar a pobreza ou ao menos reduzi-la a níveis toleráveis e de modo sustentável?
Iniciativas como o Benefício de Prestação Continuada, o Bolsa Família e auxílios emergenciais são paliativos momentâneos, não soluções duradouras, e, em lugar de interromper, mantêm em aberto o ciclo de reprodução da pobreza.

Vista da favela Cantagalo, no Rio de Janeiro
Essas iniciativas, caracterizadas como políticas públicas de assistência social, vêm sendo preferidas por governos das mais diferentes inclinações ideológicas. Elas tomam o lugar de um política pública que pode ser definida como de desenvolvimento econômico-social, como é o caso da Renda Básica de Cidadania, instituída pela Lei Federal 10.835/2004, segundo a qual é “direito de todos os brasileiros residentes no país e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário”.
No ano em que completa 20 anos de existência, a Renda Básica de Cidadania ainda é um instrumento subutilizado, com o potencial inexplorado de interromper o ciclo de reprodução da pobreza.
A pobreza é tanto um problema empírico, com o qual lidamos na realidade todos os dias, quanto um problema teórico, que se manifesta de diversas formas e afeta a todos.
Como problema empírico, a pobreza é amplamente documentada e quantificada, sendo, assim, um importante dado econômico e social. As desigualdades estão presentes em várias esferas da sociedade brasileira, e seus fatores e efeitos podem ser observados nas diferenças entre as regiões do país, entre zonas urbanas e rurais e entre áreas centrais e periféricas, assim como no acesso a bens e serviços, educação, trabalho, lazer e renda, além de na exposição ou não a situações de violência.
A pesquisa considera que a pobreza seria não apenas um efeito ou uma externalidade econômica negativa, mas principalmente um fator de discriminação, baseado no preconceito ou estigma que a filósofa espanhola Adela Cortina chama de “aporofobia”, ou aversão a pessoas pobres, um comportamento comum na sociedade, na medida em que passa por uma legitimação social.
Já como problema teórico, há diferenças significativas entre o que se diz e o que não se diz sobre a pobreza. O trabalho se debruça sobre as dimensões política e jurídica desse problema. Partindo das perspectivas da arqueologia do saber e da genealogia do poder (teorias que versam sobre a história das ideias e das hierarquias na sociedade), propostas pelo filósofo francês Michel Foucault, o trabalho identifica e analisa ideias e conceitos de diferentes campos científicos, assim como modos de ter e ser de diversos grupos sociais, demonstrando como documentos jurídicos revelam uma determinada forma de organização não apenas política, mas também econômica e social.
Assim, a pesquisa se propõe a verificar a hipótese de que a forma jurídica da cidadania (isto é, o conjunto de direitos e deveres dos cidadãos) está relacionada tanto à organização política (especialmente às instituições do Estado) quanto ao chamado “contrato social” (ou seja, o modo como a sociedade lida com os valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade).
Analisando fatos da história do Brasil, tal como registrados em documentos jurídicos (desde a Carta de “Descobrimento”, passando pelo primeiro Regulamento Geral da Administração Pública brasileira, até a Constituição de 1988), o trabalho constata que a forma jurídica da cidadania e a evolução no reconhecimento de direitos individuais e sociais não correspondem a uma evolução da população no exercício de direitos políticos, o que faz com que a sociedade brasileira seja codependente de seus representantes.
Já no que se refere ao que se poderia chamar de “contrato social” brasileiro, o trabalho constata que há um desequilíbrio provocado pelo apego à propriedade como direito individual, em detrimento da solidariedade como dever social.
É necessário e possível um giro teórico que, alinhando a forma de cidadania ao dever de solidariedade, implique um compromisso social de respeito e promoção de liberdade com dignidade, de modo a compreender que a riqueza, como propriedade que é, deve cumprir uma função social.
Entendendo que todas as pessoas que integram uma sociedade contribuem ou podem contribuir para a produção da riqueza, é possível afirmar que todas elas têm o direito a uma renda. A garantia efetiva do direito a uma renda, como manifestação do que o trabalho chama de cidadania solidária, seria a principal política pública de investimento e desenvolvimento de um país periférico e de capitalismo tardio, como é o caso do Brasil. E a função social dessa renda seria o instrumento mais adequado para a sociedade enfrentar e, oxalá, erradicar a pobreza no Brasil.
Acadêmicos das ciências humanas, sociais e sociais aplicadas e profissionais que trabalham com políticas públicas, especialmente no que se refere aos fatores e efeitos da pobreza.
Hermano de Oliveira Santos é doutor em direito pela Universidade Federal da Bahia, professor de direito da Faculdade Pio Décimo, em Aracaju, e servidor do Tribunal Regional Eleitoral de Sergipe.
Referências
- CARVALHO, José Murilo de (2013). Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
- CORTINA, Adela ([2016] 2020). Aporofobia: a aversão ao pobre: um desafio para a democracia. São Paulo: Contracorrente.
- LEAL, Victor Nunes ([1960] 2012). Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o sistema representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
- MORELL, Antonio (2002). La Legitimación Social de la Pobreza. Barcelona: Anthropos.
- SEN, Amartya ([1992] 2001). Desigualdade Reexaminada. Rio de Janeiro: Record.