Acadêmico

Por que é tão difícil acabar com a pobreza no Brasil

Hermano de Oliveira Santos

13 de junho de 2024(atualizado 13/06/2024 às 15h33)
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Função Social da Renda de Cidadania: uma arqueogenealogia do discurso sobre pobreza no Brasil

Autoria

Hermano de Oliveira Santos

Lattes

Área e sub-área

Direito/Antropologia Jurídica

Publicado em

29/05/2023

Os valores sobre os quais se debruçaram as leis brasileiras — vindos da Revolução Francesa —, de liberdade, igualdade e fraternidade, segundo esta pesquisa, apresentam contradições com a realidade prática da perpetuação de sistemas de desigualdade econômica que assola o país.

 

Pensando nisso, a tese se debruça sobre os problemas estruturais que estão presentes na questão da continuidade da pobreza no Brasil, como fundamentações jurídicas, políticas e econômicas que muitas vezes assumem posturas assistencialistas, falta de representação e participação da população nas decisões do Estado, preconceitos e a forte ideia de propriedade privada.

1Qual pergunta a pesquisa responde?

Por que as iniciativas do Estado brasileiro não são suficientes para eliminar a pobreza ou ao menos reduzi-la a níveis toleráveis e de modo sustentável?

2Por que isso é relevante?

Iniciativas como o Benefício de Prestação Continuada, o Bolsa Família e auxílios emergenciais são paliativos momentâneos, não soluções duradouras, e, em lugar de interromper, mantêm em aberto o ciclo de reprodução da pobreza.

 

FOTO: Pilar Olivares/Reuters

Vista da favela Cantagalo, no Rio de Janeiro

 

Essas iniciativas, caracterizadas como políticas públicas de assistência social, vêm sendo preferidas por governos das mais diferentes inclinações ideológicas. Elas tomam o lugar de um política pública que pode ser definida como de desenvolvimento econômico-social, como é o caso da Renda Básica de Cidadania, instituída pela Lei Federal 10.835/2004, segundo a qual é “direito de todos os brasileiros residentes no país e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário”.

 

No ano em que completa 20 anos de existência, a Renda Básica de Cidadania ainda é um instrumento subutilizado, com o potencial inexplorado de interromper o ciclo de reprodução da pobreza.

3Resumo da pesquisa

A pobreza é tanto um problema empírico, com o qual lidamos na realidade todos os dias, quanto um problema teórico, que se manifesta de diversas formas e afeta a todos.

 

Como problema empírico, a pobreza é amplamente documentada e quantificada, sendo, assim, um importante dado econômico e social. As desigualdades estão presentes em várias esferas da sociedade brasileira, e seus fatores e efeitos podem ser observados nas diferenças entre as regiões do país, entre zonas urbanas e rurais e entre áreas centrais e periféricas, assim como no acesso a bens e serviços, educação, trabalho, lazer e renda, além de na exposição ou não a situações de violência. 

 

A pesquisa considera que a pobreza seria não apenas um efeito ou uma externalidade econômica negativa, mas principalmente um fator de discriminação, baseado no preconceito ou estigma que a filósofa espanhola Adela Cortina chama de “aporofobia”, ou aversão a pessoas pobres, um comportamento comum na sociedade, na medida em que passa por uma legitimação social.

 

Já como problema teórico, há diferenças significativas entre o que se diz e o que não se diz sobre a pobreza. O trabalho se debruça sobre as dimensões política e jurídica desse problema. Partindo das perspectivas da arqueologia do saber e da genealogia do poder (teorias que versam sobre a história das ideias e das hierarquias na sociedade), propostas pelo filósofo francês Michel Foucault, o trabalho identifica e analisa ideias e conceitos de diferentes campos científicos, assim como modos de ter e ser de diversos grupos sociais, demonstrando como documentos jurídicos revelam uma determinada forma de organização não apenas política, mas também econômica e social.

 

Assim, a pesquisa se propõe a verificar a hipótese de que a forma jurídica da cidadania (isto é, o conjunto de direitos e deveres dos cidadãos) está relacionada tanto à organização política (especialmente às instituições do Estado) quanto ao chamado “contrato social” (ou seja, o modo como a sociedade lida com os valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade).

 

Analisando fatos da história do Brasil, tal como registrados em documentos jurídicos (desde a Carta de “Descobrimento”, passando pelo primeiro Regulamento Geral da Administração Pública brasileira, até a Constituição de 1988), o trabalho constata que a forma jurídica da cidadania e a evolução no reconhecimento de direitos individuais e sociais não correspondem a uma evolução da população no exercício de direitos políticos, o que faz com que a sociedade brasileira seja codependente de seus representantes. 

 

Já no que se refere ao que se poderia chamar de “contrato social” brasileiro, o trabalho constata que há um desequilíbrio provocado pelo apego à propriedade como direito individual, em detrimento da solidariedade como dever social.

4Quais foram as conclusões?

É necessário e possível um giro teórico que, alinhando a forma de cidadania ao dever de solidariedade, implique um compromisso social de respeito e promoção de liberdade com dignidade, de modo a compreender que a riqueza, como propriedade que é, deve cumprir uma função social. 

 

Entendendo que todas as pessoas que integram uma sociedade contribuem ou podem contribuir para a produção da riqueza, é possível afirmar que todas elas têm o direito a uma renda. A garantia efetiva do direito a uma renda, como manifestação do que o trabalho chama de cidadania solidária, seria a principal política pública de investimento e desenvolvimento de um país periférico e de capitalismo tardio, como é o caso do Brasil. E a função social dessa renda seria o instrumento mais adequado para a sociedade enfrentar e, oxalá, erradicar a pobreza no Brasil.

5Quem deveria conhecer seus resultados?

Acadêmicos das ciências humanas, sociais e sociais aplicadas e profissionais que trabalham com políticas públicas, especialmente no que se refere aos fatores e efeitos da pobreza.

Hermano de Oliveira Santos é doutor em direito pela Universidade Federal da Bahia, professor de direito da Faculdade Pio Décimo, em Aracaju, e servidor do Tribunal Regional Eleitoral de Sergipe.

Referências

  • CARVALHO, José Murilo de (2013). Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • CORTINA, Adela ([2016] 2020). Aporofobia: a aversão ao pobre: um desafio para a democracia. São Paulo: Contracorrente.
  • LEAL, Victor Nunes ([1960] 2012). Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o sistema representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
  • MORELL, Antonio (2002). La Legitimación Social de la Pobreza. Barcelona: Anthropos.
  • SEN, Amartya ([1992] 2001). Desigualdade Reexaminada. Rio de Janeiro: Record.

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