Reportagem

‘Eles não conseguiam brecar Dom Paulo!’

Camilo Rocha

23 de dezembro de 2016(atualizado 28/12/2023 às 08h03)

Sacerdote foi além da sacristia para se tornar um empenhado ativista dos direitos humanos e da democracia

“Maldito seja aquele que mancha as mãos com o sangue do seu irmão”. As palavras de dom Paulo Evaristo Arns ecoaram pela Catedral da Sé, para um público de oito mil pessoas, lotação máxima da igreja. O evento era a cerimônia ecumênica em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, morto uma semana antes. Nas palavras do sacerdote, uma condenação indireta àqueles que haviam assassinado Herzog. Realizada em 31 de outubro de 1975, a missa viria a ser um importante ato de desafio à sistemática violência que vinha sendo praticada pelo Estado brasileiro.

Herzog foi encontrado sem vida em uma cela do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), órgão de repressão política da Polícia Civil. O laudo oficial indicava suicídio. Como depois se comprovaria, Herzog na verdade foi morto durante uma sessão de tortura nas mãos dos agentes policiais. Diretor de jornalismo da TV Cultura, era acusado de associação com o partido comunista. Fazia parte de uma lista de profissionais da imprensa que estavam na mira da repressão política. “Sua prisão foi o clímax de um processo de perseguição a jornalistas”, lembra Audálio Dantas, na época presidente do Sindicato dos Jornalistas.

O sindicato tinha certeza que não fora suicídio. Dom Paulo também. Logo após a notícia da morte, representantes da entidade procuraram o líder religioso. “Sabíamos que podíamos recorrer a ele nessas horas difíceis”, diz Dantas. Surgiu então a ideia de uma homenagem ecumênica na Sé. “Absolutamente na hora, sem nenhuma dúvida, dom Paulo respondeu que assumiria a organização religiosa desse culto”, recorda Dantas.

Dom Paulo recebeu então em sua casa um grupo de rabinos da Congregação Israelita para falar da homenagem, uma vez que Herzog era judeu. Os religiosos, entretanto, acreditavam na versão oficial e não queriam participar da celebração, pois a crença judaica não permitiria celebrar a morte de um suicida. Dom Paulo lhes garantiu que Vlado havia sido morto. Depois de um período de silêncio tenso, um dos rabinos, Henry Sobel, deu um passo à frente: “Eu estarei lá com o senhor na missa”.

Estudantes queriam usar a ocasião para protestar e fazer do ritual um ato político. Dom Paulo pediu que se contivessem. Sabia que, ao menor sinal do que poderia ser encarado como provocação, a repressão interviria. Um arcebispo havia sido procurado por dois emissários do então governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins, que pediram que o culto não se realizasse pois poderia haver “derramamento de sangue”. Dom Paulo se recusou a atender o pedido. “A minha obrigação como religioso é estar onde está meu povo”, disse.

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