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Movimento Pessoas à Frente
O que o governo fez (e não fez) pela gestão pública em 100 dias
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Os 100 primeiros dias de um governo representam um ciclo de reconhecimento do ritmo da nova gestão, período para mostrar a que veio. É uma data mítica, mas também crítica da “lua de mel” embalada na expectativa de muitos setores da sociedade civil por mudanças, abertura de diálogos, e, dada a conjuntura recente do país, pelo retorno à normalidade democrática e republicana.
De janeiro para cá, acompanhamos definições positivas no primeiro escalão, com a nomeação de 12 ministras, três delas — Margareth Menezes, Luciana Santos e Anielle Franco — mulheres negras. Outro ponto positivo na trilha pela promoção da equidade de gênero e étnico-racial foi a nomeação da deputada federal e líder indígena, Sônia Guajajara, como ministra do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas. Nomeações que fizeram subir o pêndulo da balança na composição dos ministérios. Até então, os ministros anunciados tinham duas características em comum: sexo masculino e cor branca.
Em 2019, o governo Bolsonaro empossou apenas duas ministras: Tereza Cristina (Ministério da Agricultura) e Damares Alves (no extinto Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos). Podemos acrescentar, é verdade, Flávia Arruda, que substituiu o general Luiz Eduardo Ramos, em 2021, como ministra-chefe na Secretaria de Governo.
O que se almeja é uma instância governamental mais forte, mais qualificada e orientada por valores democráticos e humanos
A arquitetura institucional do novo governo também se mostra imbuída no compromisso com o diálogo e proteção da sociedade civil quando observamos, além da criação dos ministérios da Igualdade Racial e dos Povos Indígenas e da recriação do Ministério dos Direitos Humanos, o aceno à perspectiva de transformação da gestão pública, com a recriação do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos e a criação da Secretaria Extraordinária para a Transformação do Estado. A ministra Esther Dweck atua na transição da ideia de reforma administrativa para uma agenda de transformações no setor público.
Considerando o tema de gestão de pessoas no setor público, foco das agendas prioritárias do Movimento Pessoas à Frente, observa-se um esforço para resgatar as negociações com os servidores públicos e medidas para melhorar a eficiência da gestão do governo federal. Esther Dweck anunciou o que seria o primeiro de três lotes de concursos públicos, que deverão ser concluídos até o final do ano, verbalizando as dificuldades em compor quadros em vários setores do funcionalismo público.
Outro ponto importante foi a criação da Secretaria Extraordinária de Transformação do Estado — a SETE — e da Secretaria de Gestão Corporativa. Não existe reforma administrativa que mude o Estado para todo o sempre. Por princípio, a SETE surge para que o Estado consiga ter um olhar permanente sobre práticas e experiências que possam aprimorar a capacidade operacional da máquina pública.
Já a Secretaria de Gestão Corporativa foi criada para dar suporte aos ministérios desmembrados e também ao recém-criado Ministério dos Povos Indígenas. A nova secretária vai administrar contratos e a gestão de pessoas do ponto de vista operacional, financeiro, orçamentário e do planejamento estratégico, evitando que cada um dos ministérios tivesse de criar área própria para os procedimentos, garantindo agilidade com técnicas compartilhadas e economia orçamentária.
Entre as ações nesse início de governo, o Movimento Pessoas à Frente celebrou especialmente o decreto 11.443, que estabeleceu o mínimo de 30% dos cargos em comissão e de confiança no âmbito da administração pública federal para pessoas negras.
Embora conscientes das fragilidades de um decreto, a medida certifica o reconhecimento do governo sobre o número expressivamente menor de pessoas negras e indígenas em postos do serviço público e em cargos de liderança e a importância de repará-los. No entanto, sabemos ser necessários dispositivos que possam produzir política pública de equidade de raça e gênero no setor público brasileiro como um todo. Segundo o estudo “Mulheres Líderes no Setor Público da América Latina e do Caribe”, publicado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Brasil ocupa o último lugar no ranking de mulheres em cargos de liderança no serviço público (18,6%), sendo a média de ocupação da região 41,4%.
No hall de políticas anunciadas pelo governo figurou também o Observatório de Pessoal, do Ministério de Gestão de Inovação, portal que reúne dados e informações de gestão de pessoas da administração pública federal. A deficiência de dados é um problema crucial do setor público e a iniciativa da implementação do observatório como banco de dados e pesquisas contribui como dispositivo de transparência ativa.
Há que se ponderar, no entanto, pontos que podem ser considerados negativos ou ainda sem horizonte, como o silêncio que paira sobre a questão dos supersalários. Essas remunerações exacerbadas são pagas a apenas 0,23% dos servidores e representam gastos anuais de R$ 2,6 bilhões. A grande maioria dos servidores recebe salários bem abaixo do previsto como texto constitucional, mas todos acabam estigmatizados.
Os interesses legítimos dos servidores não traduzem a visão grosseira do “trabalhar menos e ganhar mais” – a maior parte do funcionalismo tem visão edificante e virtuosa de valor público.
Os sindicatos guardam um papel importante na gestão de pessoas, na medida em que representam também os interesses dos servidores e propugnam pela melhoria da gestão pública. Não se trata apenas da discussão sobre supersalários, mas de toda uma política e modelo de remuneração que devem buscar a valorização do servidor de forma condizente com a complexidade do cargo exercido.
Parte significativa das atuais distorções salariais no âmbito da administração federal resulta da atuação desmesurada de negociações salariais feitas nos governos Lula anteriores. As mesas de negociação em si podem ser um ótimo instrumento se utilizadas nos limites da racionalidade.
O que ocorre nos 100 primeiros dias de governo é sempre um bom preditor: se começa bem, dificilmente terminará mal. Se começa mal, dificilmente terminará bem.
São imensos os desafios de aprimorar as qualidades e capacidades para tornar as instituições governamentais aptas a desempenhar melhor e gerar valor. É preciso seguir transformando. E transformar implica em melhorar regras, estratégias, estruturas, processos, recursos, tecnologia e, fundamentalmente, as pessoas, desenvolvendo e aprimorando lideranças. O que se almeja é uma instância governamental mais forte, mais qualificada e orientada por valores democráticos e humanos que seja salvaguarda da sociedade contra governos com tendências despóticas e distópicas.
Mesmo no final do começo, ao cabo dos 100 primeiros dias, nem todos os sinais indicam boas direções. Mas as transições não se esgotam nos primeiros 100 dias. Oxalá haja tempo para consolidar uma agenda da gestão para que este governo seja bem-sucedido e deixe um rastro de capacidades instaladas para os próximos.
Simone Ramos é especialista em Gestão e Administração Pública (UFF), graduada em Serviço Social (UERJ), mestranda em políticas públicas e direitos humanos (UFRJ). Em sua trajetória profissional no setor público, atuou como assessora parlamentar e como coordenadora de projetos na Secretaria de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Atualmente, integra o time de projetos da Republica.org e é membro da Secretaria Executiva do Movimento Pessoas à Frente.
Humberto Falcão Martins é integrante do Comitê de Governança do Movimento Pessoas à Frente. É doutor em administração e mestre em Administração Pública (EBAPE/FGV), Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ENAP) e bacharel em Administração (UnB). Professor de dedicação exclusiva da Fundação Dom Cabral na área de gestão pública, atuando em temas relacionados principalmente à capacidades institucionais e governança colaborativa.
Movimento Pessoas à Frenteé uma organização da sociedade civil, plural e suprapartidária. Com base em evidências, ajuda a construir e viabilizar propostas para aperfeiçoar políticas públicas de gestão de pessoas no setor público, com foco em lideranças. A rede de membros do Movimento Pessoas à Frente une especialistas, parlamentares, integrantes dos poderes públicos federal e estadual, sindicatos e terceiro setor, que agregam à rede visões políticas, sociais e econômicas plurais.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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