‘Num Estado racista, a grande obra do homem negro é se manter vivo’
Juliana Domingos
14 de agosto de 2020(atualizado 05/03/2024 às 12h20)‘O avesso da pele’, romance de Jeferson Tenório, restitui identidade e afetos de personagem assassinado pela polícia
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O escritor Jeferson Tenório
A reconstrução dos afetos e da memória do pai, morto em uma abordagem policial, é a tarefa assumida por Pedro, narrador de “O avesso da pele”, romance de Jeferson Tenório lançado em agosto pela Companhia das Letras.
Não à toa, a citação que abre o livro é tirada de “Hamlet”, tragédia de William Shakespeare em que o príncipe da Dinamarca recebe a visita do fantasma do pai assassinado e tenta dar sentido ao mundo à sua volta.
Pedro conta a história de seus pais desde a infância, narra como se conheceram e se separaram. Assim, dá substância e humanidade a Henrique, seu “pai fantasma”, professor de literatura na rede pública de Porto Alegre.
O livro lida com a subjetividade dos personagens, marcada pelo racismo, seus relacionamentos amorosos e familiares, com a precariedade do sistema público de ensino e da vida dos mais pobres no Brasil.
PINTURA DO ARTISTA ANTONIO OBÁ ESTAMPA A CAPA DE ‘O AVESSO DA PELE’
“O avesso da pele” é o terceiro romance de Jeferson Tenório, escritor nascido no Rio de Janeiro em 1977 e radicado em Porto Alegre. É também o primeiro publicado por uma editora de grande porte, marcando sua consolidação como uma das grandes vozes da literatura brasileira contemporânea.
Tenório falou ao Nexo sobre os temas explorados no livro, como se encaixa em um projeto literário mais amplo, sobre sua trajetória pessoal e a atual situação da educação no Brasil.
Jeferson Tenório O título tem a ver com o meu projeto literário, que começa no primeiro livro, “O beijo na parede”, passa por “Estela sem deus”, até chegar nesse terceiro livro. Ele tem a ver com contar a história de pessoas negras a partir das idades. Então eu começo na infância, passo pela adolescência e chego, com “O avesso da pele”, a esse personagem adulto.
Minha preocupação nesses três livros sempre foi colocar personagens negros, tocar na questão racial, mas que ela servisse como pano de fundo, porque o que me interessa discutir é a subjetividade desses personagens. Nesse último livro, optei por dar esse título porque eu queria que a pele aparecesse no título, mas que ela não fosse a principal, que o principal fosse na verdade o seu avesso, ou seja, as suas subjetividades, as suas contradições, as angústias, é isso que eu me proponho a discutir no livro. Tanto que o capítulo do avesso é o maior de todos, porque é ali que eu vou concentrar a maior reflexão sobre a vida desses personagens.
Jeferson Tenório Foi parecido com o Henrique, embora tenha algumas diferenças. Foi quando eu entrei na faculdade. Me deparei com um curso de Letras onde os meus colegas sabiam quem era Homero, Shakespeare, Cervantes, e eu não fazia ideia de quem eram esses autores.
Senti uma necessidade muito grande de conhecer esses escritores e comecei a comprar muitos livros, de modo que eu não consegui mais frequentar essa faculdade particular onde eu estava, fiquei endividado.
Foi quando comecei a estudar pra fazer o vestibular na universidade federal [a UFRGS, onde foi o primeiro cotista negro a se formar], e aí eu posso dizer que os livros me ajudaram nesse sentido. Minha entrada na literatura foi essa descoberta de um mundo que eu havia perdido durante a minha adolescência, que ninguém me disse que existia, e só na universidade comecei a me dar conta disso.
Jeferson Tenório O personagem Oliveira é baseado na verdade em duas pessoas. Uma foi de fato um professor meu, que se chama Jorge Fróis, e o outro é o Oliveira Silveira, um poeta daqui do Rio Grande do Sul, foi ele quem idealizou o Dia da Consciência Negra.
Eu quis fazer então uma homenagem a essas duas pessoas que de certo modo acabaram me tornando mais consciente, como escritor e também como homem negro. Foi a partir dessas duas figuras que eu consegui compreender que ser negro no Brasil era bem mais grave do que eu imaginava.
Ter professores negros é fundamental para ampliar a visão dos alunos em relação à literatura e até ao próprio entendimento da sociedade, da vida, principalmente aqui no sul, onde a gente não tem muitos professores negros em sala de aula.
Eu dou aula em duas escolas particulares e sou um dos poucos professores negros, aliás, o único professor negro de literatura da escola, e eu percebo que tem algumas coisas que eu não deixo passar pelo fato de ter uma experiência negra.
Jeferson Tenório Talvez alguns achem a visão que eu quis colocar em “O avesso da pele” super pessimista. E de fato ela é.
A gente tem um personagem negro, professor de literatura, e que está prestes a se aposentar sem nenhum tipo de reconhecimento. Ele percebe que não há mais o que fazer dentro desse sistema e é já mais no final do livro que ele começa a recuperar esse gosto pela educação através da literatura.
O que esse personagem mostra é que as ações individuais surtem efeito em determinados locais, mas não mexem na estrutura da educação no Brasil. Isso é que é triste. A gente tem várias pessoas, vários professores que têm boas iniciativas de conseguir levar uma boa educação. Mas ele acaba sendo vencido pela estrutura.
E a gente percebe que os alunos do Henrique são alunos negros, de periferia, que são justamente os mais afetados por essa estrutura educacional falida. Com esse governo que a gente tem agora então, isso virou uma tragédia.
Os efeitos desse desmonte e dessa destruição da educação vão ser sentidos por décadas. Não é uma coisa de que a gente vai se recuperar daqui a alguns anos. É muito grave o que está acontecendo. Acho que é um livro que chega pra discutir isso também: as ações individuais não são suficientes. Mas já são alguma coisa.
Jeferson Tenório Eu não conheço todo o Brasil para poder fazer essa comparação – visitei alguns estados, sou carioca, morei no Rio até os 13 anos, continuo indo ao Rio de Janeiro pelo menos uma vez por ano, também costumo ir a São Paulo e a Santa Catarina.
O que eu tenho percebido é que aqui no sul o racismo é mais escancarado, é mais evidente. Eu sofri mais episódios de racismo diretamente, pessoalmente, aqui em Porto Alegre do que em outros lugares. Então me parece que aqui o racismo não se esconde, ele não é escamoteado assim como em outros lugares. Essa é um pouco a diferença. O personagem Henrique se sente fora da cidade. Porque caminhar pela cidade de Porto Alegre ou pelo interior do Rio Grande do Sul sendo negro é ser um estranho sempre. É essa a percepção que eu tenho da diferença do racismo aqui no sul.
Jeferson Tenório “O avesso da pele” não é um livro sobre o racismo e também não é um livro sobre a violência policial. Ele é antes de tudo uma reivindicação afetiva, que vai restituir a subjetividade perdida ou retirada em função do racismo e da violência. A questão central do livro é discutir as coisas que se perdem quando o Estado e a polícia agem dessa forma. E aí, então, claro que acaba envolvendo essas questões da violência policial.
Também não é um livro que está entrando na onda da violência policial porque isso está em evidência. Na verdade, para quem é negro, isso sempre foi uma evidência, isso sempre aconteceu. Então é por acaso, bem por acaso, que o livro esteja saindo em um momento em que a gente tem esses vários relatos de violência policial.
Eu acho que, de um modo geral, a literatura não tem abordado essa questão da violência policial como deveria, ou pelo menos como eu penso que deveria ser: ela não pode ser panfletária, tem que ser mais complexa.
E também, acho que está faltando um livro que consiga transitar do outro lado, um livro que seja corajoso para entrar dentro da polícia e ver como essas coisas acontecem. Talvez o “Tropa de elite” seja uma tentativa disso, mas eu acho que a gente está carente ainda de literaturas que abordem isso de maneira mais complexa, sem ficar naquele maniqueísmo, para que a gente possa ver de modo mais plural como essa violência acontece e as origens dela.
Jeferson Tenório Exatamente. Eu quis de certa forma humanizar esse policial, não no sentido de absolvê-lo do que fez, mas de mostrar que atrás daquela arma ali existe uma pessoa. E que ela está a serviço do Estado. Muitos tem isso como um lema,“não sou eu que estou atirando, é o Estado”, porque é impossível que uma pessoa saia matando e depois consiga dormir. São pessoas que entram dentro de uma estrutura da qual é muito difícil sair.
Não é uma defesa da violência policial mas é demonstrar que existe uma pessoa ali também. Acho que isso que é legal da literatura: a gente poder complexificar a questão, e não simplesmente jogar ali uma cena de violência e não refletir sobre as causas dessa violência.
O que eu quis deixar evidente dessa violência é que ela vai tendo uma gradação. Nesse capítulo das abordagens, começa quando ele é pequeno, passa pela adolescência. É como se aquilo fosse uma crônica da morte anunciada. É uma questão de tempo que pessoas negras acabam morrendo na mão de policiais. E isso é muito triste.
Jeferson Tenório O Pedro, como eu costumo dizer, é o filho a se cumprir, um filho a se completar como filho. Isso significa estabelecer uma narrativa que faça com que ele possa se apaziguar quanto ao seu passado, quanto a essa ausência paterna. Ou seja, um filho para se cumprir como filho precisa passar por esse ciclo para, logo em seguida, se tornar pai de si mesmo. Eu escrevo pouco sobre o Pedro, mas o modo como ele narra já diz alguma coisa sobre ele. A frieza com que ele narra o primeiro capítulo mostra o quanto ele teve que se tornar uma pessoa mais fria para conseguir narrar todas essas violências.
O fato de eu querer contar o relacionamento afetivo parte da perversidade que o racismo tem em influenciar até nas questões afetivas. Também é uma tentativa minha de naturalizar essas questões do afeto em pessoas negras. Acho que, em alguns momentos, o leitor até se esquece que ali existem duas pessoas negras. O narrador precisa lembrar aos leitores disso. Mas como os conflitos são, entre aspas, universais, de casais, de família, pode ser que o leitor acabe se esquecendo, e isso é proposital.
Por fim, eu acho que a grande obra que um homem negro pode ter ou produzir num Estado racista é manter a própria vida. Essa é a grande obra, é sobreviver, é se manter vivo, para, em seguida, conseguir produzir coisas para sua vida e para as pessoas que gosta. O Henrique é isso – ele tentou fazer sua grande obra, mas o Estado e a polícia não deixaram.
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