Expresso

Como ‘Um defeito de cor’ mudou a memória afro-brasileira 

Mariana Vick

14 de fevereiro de 2024(atualizado 15/02/2024 às 19h09)

Tema do enredo da Portela no Carnaval de 2024, romance de Ana Maria Gonçalves virou um dos mais procurados do país. O ‘Nexo’ mostra o que estudos dizem sobre a obra

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FOTO: Ricardo Moraes/Reuters - 12.fev.2024Pessoas usam fantasias exuberantes no Carnaval, durante um desfile de escola de samba.

Desfile da Portela na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, no Carnaval de 2024

Tema do enredo da Portela no Carnaval de 2024 do Rio de Janeiro, o romance histórico “Um defeito de cor” está no topo dos livros mais vendidos na Amazon desde o desfile da escola na segunda-feira (12), na Marquês de Sapucaí. A obra da escritora Ana Maria Gonçalves também esgotou em marketplaces como a Estante Virtual. O Grupo Editorial Record, que publica o livro, disse ter iniciado a reimpressão de exemplares para atender a todos os pedidos.

Vencedor do prestigiado Prêmio Casa de Las Américas, em Cuba, o romance de quase 1.000 páginas é considerado um dos livros mais importantes da literatura brasileira no século 21. Vendeu mais de 100 mil exemplares, acumulando quase 30 edições desde seu lançamento, em 2006. Misturando ficção e realidade, é amplamente elogiado pelo público e crítica pela forma como resgata e reelabora a memória da população negra no Brasil. 

Neste texto, o Nexo explica qual o enredo de “Um defeito de cor”, qual é a importância da obra para a literatura brasileira e como a Portela apresentou a história nos desfiles de 2024 na Marquês de Sapucaí. Mostra também uma breve biografia de Ana Maria Gonçalves, autora do livro. 

O que é ‘Um defeito de cor’

A obra conta a história de Kehinde, mulher africana que, quando criança, é sequestrada do Reino de Daomé (atual Benim) e escravizada na Bahia. A protagonista regressa a seu país de origem ao conseguir se alforriar na idade adulta. Anos mais tarde, cega e idosa, ela decide voltar ao Brasil para buscar um filho perdido, iniciando uma viagem que revisita suas dores da escravidão e décadas de construção da sociedade brasileira.

A personagem é inspirada em Luisa Mahin, heroína da Revolta dos Malês — movimento de escravizados de Salvador em 1835 — e tida como mãe do abolicionista Luís Gama. Mahin foi trazida ao Brasil da Costa da Mina e escravizada no século 19, segundo a Fundação Cultural Palmares. Gama, nascido em 1830, foi vendido como escravo na infância pelo próprio pai, português afundado em dívidas.

FOTO: Ricardo Moraes/Reuters - 12.fev.2024Pessoas usam fantasias exuberantes no Carnaval, durante um desfile de escola de samba. Uma mulher negra, no centro, sorri para a câmera.

Desfile da Portela na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, no Carnaval de 2024

A narrativa é uma “história real romanceada”, segundo Ana Maria Gonçalves. Baseado em extensa pesquisa documental, o livro se apoia em fatos históricos sobre Mahin e outras figuras da diáspora africana (nome dado à imigração forçada de africanos durante a escravidão), que inspiram mais de 400 personagens. A protagonista descreve com detalhes suas desilusões, amores e sofrimentos durante a vida.

“‘Um defeito de cor’ é a história da luta preta no Brasil incorporada em uma mulher que enfrentou os maiores desafios imagináveis para continuar viva e preservar suas heranças e raízes. […] A história de uma mãe, heroína, filha de África, que pariu a liberdade dessa nação” 

Ana Maria Gonçalves

escritora e autora de “Um defeito de cor”, em entrevista ao portal G1 

A figura de Mahin virou símbolo de resistência das mulheres negras no Brasil. Gonçalves fala que, ao escrever o livro, quis contar a história de outras como ela. “[As mulheres] tiveram um papel importantíssimo durante a escravidão. Não se tem quase nada de informações sobre elas, nem no Brasil nem na África”, disse ao jornal O Estado de S. Paulo em 2007, pouco depois do lançamento do livro.

O que a obra representa

Tratado às vezes como romance histórico, às vezes como épico, “Um defeito de cor” é uma obra que extrapola a literatura. “Não é somente a ficção que está ali, mas a história do Brasil”, disse ao Estadão Iraneide Soares da Silva, presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. Gonçalves afirmou em 2007 que o escreveu como “um livro que gostaria de ter lido sobre todas aquelas histórias esquecidas e perdidas nos arquivos”.

Diferentes artigos científicos discutem a importância do livro. Zilá Bernd, professora na Universidade Lasalle, afirmou, em estudo em 2012, que a obra resgata a memória coletiva afro-brasileira. A narrativa “se esforça por mesclar constantemente o racional, o sensível, o imaginário coletivo e o simbólico para penetrar no emaranhado multicultural e multirracial que conformava o cenário do Brasil do século 19”, segundo o texto.

FOTO: Ricardo Moraes/Reuters - 12.fev.2024Pessoas usam fantasias exuberantes no Carnaval, durante um desfile de escola de samba.

Desfile da Portela na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, no Carnaval de 2024

A duplicidade da protagonista — Kehinde/Luisa Mahin — permite que ela transite por muitos lugares. Essa característica expande “a representatividade do coletivo [da população negra]” na obra, disse a pesquisadora Camila Matos Silva em dissertação defendida em 2018 na UFPB (Universidade Federal da Paraíba). Apesar de ter aspectos individuais, a narrativa apresenta ao leitor outras histórias, principalmente de mulheres negras.

A obra tem também o que Silva chama de “caráter antinarrativo”. “Os negros da diáspora africana ocupam lugar de destaque [no livro], como na Revolta dos Malês”, e “o estereótipo de que o negro foi passivo é desfeito majestosamente durante as 950 páginas de narração”. Outros autores exploram outros mitos que o romance desfaz, como o da “mãe preta” que perde o filho, amplamente retratado na literatura brasileira:

“A obra coloca em primeiro plano o procedimento […] apontado como motor para o funcionamento do mito da ‘mãe preta’, a saber, a subtração da criança negra, o filho. […] Em ‘Um defeito de cor’, essa subtração, além de ser visibilizada, é problematizada, é chorada, é sentida e, acima de tudo, não é dada como um fato consumado. A última travessia de Kehinde em direção ao Brasil expressa a não desistência dela em encontrar o filho”

Fabiana Carneiro da Silva

pesquisadora e hoje professora na UFPB, no artigo “Maternidade negra em ‘Um defeito de cor’: a representação literária como disrupção do nacionalismo”, publicado em 2018

As contestações à história oficial tornam a obra comparável às de outras autoras negras contemporâneas, como “Amada”, da americana Toni Morrison, segundo estudos. “As memórias presentes nos romances suscitam questionamentos sobre quais são os critérios e interesses a partir dos quais os arquivos coloniais são legitimados e consolidados. Tais arquivos reúnem documentos sobre a escravização, geralmente com base em textos escritos, e neglicenciam […] memórias orais que permeiam as diversas experiências de sujeitos negros da diáspora africana”, escreveu em 2022 para o Nexo a pesquisadora Cátia Cristina Bocaiuva Maringolo, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Como a Portela retratou a obra

A Portela trouxe à Marquês de Sapucaí uma nova perspectiva de “Um defeito de cor”. Em vez de uma história contada por Kehinde (ou Luisa Mahin), como faz o romance, o samba-enredo simula uma resposta de Luís Gama à mãe, reconhecendo seu legado. A autoria é dos carnavalescos André Rodrigues e Antônio Gonzaga, recém-chegados à escola.

A obra é dedicada às mães negras do Brasil, segundo a agremiação. A vida de Mahin “poderia ser a história da mãe de qualquer um de nós, ou melhor dizendo, é a história das negras mães de todos nós”, descreveu a escola no argumento para o enredo. “Precisamos não apenas nos espelhar na história, mas principalmente valorizar as descendentes desses movimentos de coragem por amor à continuidade.”

“Honrar quem veio antes é o que faço. Eu sou porque tu fostes, minha mãe” 

Luís Gama

na carta imaginada pela Portela no enredo do Carnaval de 2024 

Personalidades como a escritora Conceição Evaristo, o ator Lázaro Ramos e o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, participaram do desfile, representando Mahin e Luís Gama. A Portela também homenageou mulheres negras que perderam seus filhos para a violência no Rio. Estavam na alegoria Marinete Silva, mãe da vereadora Marielle Franco, e Jackeline Oliveira, mãe de Kathlen Romeu (morta em 2021).

Ana Maria Gonçalves também desfilou com a Portela. Antes do Carnaval, ela havia elogiado a iniciativa da escola. “É muito enriquecedor ver como esse livro está sendo trabalhado por uma perspectiva mais popular. Infelizmente, a literatura no Brasil ainda é uma arte elitista”, disse ao site Metrópoles. 

Quem é Ana Maria Gonçalves

Ana Maria Gonçalves nasceu em 1970, em Ibiá (MG). Interessada em literatura desde a juventude, formou-se em publicidade, área na qual trabalhou durante 13 anos em São Paulo. Decidiu se dedicar à ficção em 2002, quando abandonou a profissão e a capital paulista para morar na Ilha de Itaparica (BA), onde se estabeleceu por cinco anos. 

Lançou ainda em 2002 seu primeiro romance, “Ao lado e à margem do que sentes por mim”. Editado de forma independente, o livro — “terno, íntimo, vivido e escrito em Itaparica”, segundo Millôr Fernandes, seu padrinho literário — teve circulação restrita. Quatro anos depois, publicou pela Editora Record “Um defeito de cor”, sua principal obra até hoje.

FOTO: Ricardo Moraes/Reuters - 12.fev.2024Mulheres negras com fantasias exuberantes erguem o punho esquerdo, em círculo.

Desfile da Portela na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, no Carnaval de 2024

Gonçalves escreveu outros textos desde então. Estão entre eles a peça “Tchau, querida!”, dirigida em 2016 por Wagner Moura, e colaborações para o trabalho “Chão de pequenos”, da Companhia Negra de Teatro, dirigido em 2017 por Tiago Gambogi e Zé Walter Albinati. A escritora também tem presença ativa nas redes sociais, onde discute temas ligados às relações étnico-raciais no Brasil.

Junto com figuras como Conceição Evaristo, Cidinha da Silva e Jeferson Tenório, Gonçalves faz parte do grupo de escritores negros que se tornaram best-sellers no Brasil nos últimos anos. Ao mesmo tempo, a autora tenta se afastar do rótulo de “literatura negra”. Em entrevista em 2023 ao programa Roda Viva, da TV Cultura, ela disse que vê sentido no nicho, mas quer reivindicar “um [lugar] além” — o de escritora de literatura brasileira.

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