Entrevista

‘Quem propaga armas sabe quais são os corpos que morrem’ 

Estêvão Bertoni

07 de fevereiro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h29)

Professor de direito Gabriel Sampaio diz ao ‘Nexo’ que Brasil vai na contramão no controle de mortes violentas com medidas do governo Bolsonaro

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FOTO: CAROLINA ANTUNES/PR – 24.SET.2020

Imagem mostra mesa com toalha branca com várias metralhadoras apoiadas. Ao fundo, cercado de policiais, presidente Bolsonaro segura uma das armas e sorri

Presidente Jair Bolsonaro participa de entrega de equipamentos à Polícia Rodoviária Federal, no Rio de Janeiro

A lista de prioridades entregue pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso no início de fevereiro incluiu novas propostas para a ampliação do acesso a armas pelos brasileiros. Com a eleição de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para presidir a Câmara e o Senado, respectivamente, o presidente espera ter apoio para aprovar medidas sobre o tema, além de dificultar a punição de militares por mortes em operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem).

Durante uma cerimônia no Paraná na quinta-feira (4), Bolsonaro prometeu também “ baixar mais três decretos sobre armas e CAC (Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador)”. “Arma é um direito de vocês. Arma evita que um governante de plantão queira ser diretor. Eu não tenho medo do povo armado. Muito pelo contrário, me senti muito bem (em) estar ao lado do povo de bem armado no nosso Brasil”, disse.

Nos dois primeiros anos de governo, foram dez decretos, 14 portarias de órgãos do governo, dois projetos de lei e uma resolução sobre o tema. De dezembro de 2018 ao final de 2020, o país pulou de 697 mil armas legais em posse da população para 1,15 milhão, um aumento de 65% em dois anos, segundo um levantamento do jornal O Globo em parceria com os institutos Igarapé e Sou da Paz.

O maior crescimento aconteceu nas licenças para pessoas físicas, concedidas pela Polícia Federal. Foram 72% a mais de 2018 a 2020. Entre caçadores, atiradores e colecionadores, o aumento foi de 58%. Neste caso, os registros são de responsabilidade do Exército.

Entre as mudanças impostas pelo governo Bolsonaro estão a ampliação da validade dos registros de armas, de cinco para dez anos, e o fim da exigência da declaração de efetiva necessidade para cidadãos comuns — a declaração passou a ser presumida como verdadeira. Caçadores, atiradores e colecionadores também puderam comprar mais munições e armas, inclusive as de calibre antes exclusivo das Forças Armadas.

Armar cada vez mais a população só pode ter um resultado: mais mortes, especialmente de negros, segundo Gabriel Sampaio, coordenador do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da ONG Conectas, em entrevista ao Nexo . “Nós estamos na contramão da demanda social pelo controle de mortes violentas”, disse.

Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que a tendência de queda nos homicídios ocorrida em 2019 foi revertida no primeiro semestre de 2020, quando houve um aumento de 7% nos assassinatos em relação ao mesmo período do ano anterior.

72,5%

dos assassinatos em 2019 foram cometidos com arma de fogo, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública

74,4%

das vítimas de mortes violentas naquele ano eram negros

Nesta entrevista, ele comenta as implicações do aumento no número de armas legais a disposição da população nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro e define as medidas defendidas pelo presidente como parte de um projeto autoritário que compromete as bases da Constituição de 1988.

Quais as consequências do aumento de armas registradas?

GABRIEL SAMPAIO A consequência direta é a perda de vidas. Por que podemos fazer essa relação? A grande maioria das mortes violentas no Brasil ocorre pelo uso de armas de fogo. Então, por uma relação muito direta, podemos avaliar que o aumento no acesso à arma de fogo também gera, como consequência, a perda de vidas. Isso pensando para além das armas que são legalizadas e seguem o trâmite normal de concessão. Há também um efeito importante que é a própria vulnerabilidade que esse aumento de armas gera para quem tira a posse e o porte e a possibilidade de elas serem utilizadas ou fazerem parte de algum tipo de ação do mercado ilegal.

Quando os efeitos poderão começar a ser sentidos?

GABRIEL SAMPAIO A gente tem uma particularidade que a própria pandemia, que vai nos exigir uma reflexão ampla em relação a tudo o que vamos ter de dados a partir de agora. Eu atentaria para um fato importante: o Brasil já tem índices absolutamente incompatíveis com uma sociedade democrática em relação às mortes violentas. E aqui quero registrar a especial preocupação com o racismo estrutural. Nós temos mais de 70% das mortes violentas no Brasil praticadas contra pessoas negras. Toda a falta de políticas públicas e de ações efetivas para a redução desses dados colocam o Brasil numa posição muito delicada do ponto de vista do cumprimento dos direitos humanos. Além dessa consequência do aumento que se espera no número de mortes, tem uma outra que é essencialmente grave que é o fato de não haver o enfrentamento aos índices já completamente bárbaros que vivemos hoje de mortes violentas. É muito importante que haja uma reversão dessas flexibilizações realizadas em relação à posse e porte de armas de fogo.

Como poderiam ocorrer essas reversões?

GABRIEL SAMPAIO O Congresso Nacional tem a possibilidade de fazer o controle dos decretos editados pelo presidente da República, existem projetos de decretos legislativos para isso, que tramitam na Câmara e no Senado. Por meio de judicialização também há questionamento a alguns desses atos normativos, e é muito importante que haja uma consequência em relação a essas tramitações. O Supremo também tem ações em análise. E a sociedade civil exerce um papel importante na cobrança. É muito importante que a sociedade civil e todos os setores comprometidos com a defesa da vida se manifestem e pressionem o governo para alterar essa política.

Com o controle da Câmara pelo centrão, as chances de reversão recaem mais sobre o Supremo?

GABRIEL SAMPAIO Eu acho que tem uma responsabilidade importante da Justiça, mas não vamos nos furtar de cobrar o Parlamento, independente da atual composição das mesas diretoras. Nós estamos falando de um debate que diz respeito diretamente à perda de vidas no Brasil, à perda de vidas negras, e nós da sociedade civil não vamos nos furtar de chamar o Parlamento à sua responsabilidade. Pela defesa do direito à vida e em especial pelo direito à vida das pessoas negras, retomando a campanha que é nacional e internacional, de que as vidas negras importam.

O limite de armas por pessoa aumentou expressivamente entre caçadores, atiradores e colecionadores. Deveria haver um maior controle sobre esses grupos?

GABRIEL SAMPAIO Deveria haver um controle maior, em especial porque esse tipo de categoria deveria servir para as situações específicas e não necessariamente para uma situação de defesa pessoal. Para eles, o controle deveria ser maior, não ser flexibilizado. Chama a atenção esse tipo de aumento. Pode-se usar de uma brecha em relação a essa flexibilidade ou falta de controle para que, a partir dessa brecha, pessoas que não necessariamente se enquadram nesse critério usem das possibilidades para ter acesso a mais armas e munições. Todo tipo de flexibilização fere o interesse público.

As medidas contribuem de alguma forma para que as pessoas circulem livremente com armas mesmo sem autorização para isso?

GABRIEL SAMPAIO Sem sombra de dúvida. Quando se fala por exemplo da posse, é aquela coisa da pessoa que não vai andar com a arma, mas vai ter uma autorização para ter a arma em casa. É impossível ter um controle ostensivo se essa pessoa está mantendo essa arma exclusivamente dentro de casa. Ela pode, numa situação de descontrole, descumprir a norma e passar a usar essa arma numa hipótese não prevista em lei. É por isso que nós temos que exercer um controle rígido. A sociedade precisa ter consciência de que o aumento da circulação de armas traz uma consequência grave para o aumento de mortes e sobretudo da vulnerabilidade. As pessoas passam a achar que, no lugar dos órgãos de segurança pública, serão capazes de resolverem seus problemas pessoais de segurança sozinhas. Isso não é verdade. Até lamento que a gente esteja sendo pautado nesse debate por essa agenda. Quando todos os dados e a ciência têm demonstrado que não há fórmula eficaz de redução do número de mortes violentas que não inclua a retirada de armas de circulação.

De que forma o comércio legal e o mercado ilegal se relacionam?

GABRIEL SAMPAIO Se você tem armas desprotegidas, em condição de serem objeto de furto, ou então transporta em local em que ela está mal alocada, às vezes acaba sendo um caminho mais fácil para que setores que atuam na ilegalidade tenham acesso a essas armas. Passa a ser mais fácil se aproveitar da vulnerabilidade daqueles que têm uma arma do que buscar por outras formas no mercado ilegal. Mais do que isso, você incentiva uma produção e uma circulação que pode ser objeto de ação ilegal. Quanto mais armas estão em circulação pelo mercado legal, mais o mercado ilegal pode usar de todas as vulnerabilidades — individualmente ou numa situação de acomodação ou de transporte ds armas — e se aproveitar disso para ter acesso a elas.

Que efeito tem a liberação da compra de fuzis e armas que antes eram de uso restrito das Forças Armadas?

GABRIEL SAMPAIO É um efeito ainda mais grave. Nós já estamos num terreno em que todo incremento de concessão, de posse, porte, aumento de calibre, mais possibilidades de acesso a munições, tudo isso cria condições para o aumento de mortes violentas. Quando ainda se fala de armas ainda mais letais, o resultado não pode ser outro. Estamos falando de consequências que podem se reverter ainda mais na perda das vidas. Também contribui de forma subjetiva com o clima e com uma ideologia individualista e até autoritária para lidar com fenômenos de conflito. Quanto mais pessoas têm acesso a armas de fogo se imaginando em condições de ter sua suposta proteção pessoal por armas individuais, e cada vez de maior calibre, mais vamos reforçando o sentimento autoritário na sociedade e esvaziando os papéis dos órgãos de segurança pública na prevenção e repressão a fenômenos criminais. Reforço: todo aumento de circulação de armas, em especial essas armas de grosso calibre, traz resultados nefastos para políticas de segurança pública e de controle das mortes violentas.

O Supremo barrou a decisão de zerar impostos de importação de armas e vai julgar o tema agora. Qual o impacto se essa medida passar?

GABRIEL SAMPAIO É mais uma vez um incentivo a uma indústria e à circulação de armas. Isso tem que ficar muito delimitado: nós estamos na contramão da demanda social pelo controle de mortes violentas. Uma primeira medida mais importante para conter o aumento de mortes violentas é a redução da circulação de armas. É incompreensível que qualquer agente governamental trabalhe nesse cenário com medidas que estejam de encontro com essa constatação básica. A redução de impostos traz um facilitador ainda maior para que mais armas circulem a um preço mais barato, mais acessível do que se tem no cenário atual. Ativa setores na economia que vão explorar cada vez mais esse apelo para o armamento da população. É de todo negativo que nós tenhamos qualquer retrocesso nesse sentido. É também um retrocesso de política pública. Numa situação de pandemia, em que a sociedade tem uma série de demandas sociais, de redução de impostos em relação a bens ainda mais preciosos para a manutenção da vida da população, se tem uma medida que necessariamente traz como consequência direta ou indireta a perda de vidas, é realmente um sinal de tempos autoritários que nós vivemos.

Bolsonaro já disse que queria facilitar a compra de armas para dar um recado a governadores e prefeitos que defendiam o isolamento. Existe alguma correlação entre o acesso a armas e o controle da população sobre as decisões políticas?

GABRIEL SAMPAIO Essa fala mostra que isso só faz sentido para mentes autoritárias, para pessoas que vislumbram o uso do arbítrio ou do autoritarismo para pressionar autoridades públicas a tomarem certas decisões, nesse caso prefeitos ou governadores. Imaginar que o armamento da população possa pressionar algum agente público a tomar decisões é apostar numa via autoritária. É apostar numa via que desintegre o pacto social que é regido pela nossa Constituição de 1988. Nem é à toa que setores da sociedade civil e outros, a partir desse tipo de fala, passaram a defender o afastamento do presidente da República. Esse tipo de fala é uma representação de uma perspectiva autoritária que não tem lugar no atual modelo constitucional e em qualquer modelo civilizatório. Se há disputa política, insatisfação popular em relação a decisões de agentes públicos, os meios de se pressionar ou se alterar esse tipo de decisão estão previstos no nosso ordenamento jurídico e nas bases fundamentais da democracia, por meio de protestos e meios pacíficos de influenciar as decisões públicas.

De que forma essas medidas são um projeto político? O que esse projeto pretende?

GABRIEL SAMPAIO Faz parte de um projeto político autoritário, daquele conceito que [o filósofo e professor camaronês] Achille Mbembe classifica como necropolítica. Quando se fala nessa forma de armamento da população, sabemos que parte da população acessa esse tipo de armamento e sabemos que parcela da população morre vítima desse armamento. Um dirigente que propaga essa política tem que ter essa consciência de quem são os corpos que morrem e quem são aqueles que fazem uso desse tipo de armamento. Isso é parte de um projeto de necropolítica, de um projeto autoritário que compromete as bases da Constituição de 1988 e que atende infelizmente a uma perspectiva autoritária de política.

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