ESPECIAL
Por José Roberto Castro, Rodolfo Almeida e Ibrahim Cesar
em 18 de março de 2019
A falta de emprego, ou de um emprego adequado, aflige dezenas de milhões de brasileiros. E a deterioração do mercado de trabalho é um dos sintomas mais dramáticos da grave recessão que atingiu o Brasil recentemente, quando a economia encolheu por dois anos seguidos, em 2015 e 2016.
Entre 2014 e 2018, o número médio de trabalhadores desocupados praticamente dobrou. E a taxa de desocupação, medida pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), conta apenas uma parte da história.
Além do desemprego, houve diminuição de renda e aumento de precariedade nos postos de trabalho criados. Sem trabalho adequado, a opção de muitos brasileiros foi trabalhar por conta própria. Outros usaram as economias para, de forma muitas vezes improvisada, se tornarem pequenos empregadores, tentando garantir alguma renda.
Aumentou o número de trabalhadores informais - seja por conta própria, pequeno empregador ou empregado. Diminuiu o número de pessoas empregadas formalmente no setor privado.
Esses e outros fenômenos são documentados pela Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), o mais completo levantamento sobre mercado de trabalho feito no Brasil.
Amostra
A Pnad não visita todos os domicílios do Brasil, mas um grupo representativo do todo, com entrevistas em todo o território nacional e levando em conta localização e classe social. A cada três meses, são 211 mil domicílios visitados, dos quase 70 milhões que o IBGE estima existir no Brasil. É a partir da amostra que a Pnad estima os números absolutos de população e de todas as categorias da pesquisa, inclusive a situação no mercado de trabalho.
Trimestre móvel
Os resultados da Pnad Contínua Mensal são divulgados mensalmente, mas levam em conta um período de três meses. O resultado do trimestre móvel considera o mês mais recente e os dois anteriores. Depois do trimestre janeiro/fevereiro/março, por exemplo, é divulgado fevereiro/março/abril, e assim por diante. A cada resultado, o mês mais antigo vai sendo substituído pelo mais recente, mas outros dois continuam pesando no valor. Nos gráficos abaixo, a data apontada será correspondente ao último mês do trimestre móvel. A cada três meses, nos trimestres fechados, o IBGE divulga a Pnad Contínua Trimestral, mais completa.
Na Pnad, todos os brasileiros são classificados, de alguma forma, em relação ao mercado de trabalho. Alguns são apenas desconsiderados, caso dos menores de 14 anos. O resto consta, normalmente, em mais de uma categoria. Isso porque o IBGE faz perguntas que classificam as pessoas além de somente “ocupado” ou “desocupado”.
A partir das respostas de todos os entrevistados, o IBGE estima quantos são os brasileiros na mesma situação em todo país. Por exemplo: a principal classificação da Pnad em relação ao mercado de trabalho é a que mede quantos brasileiros estão ocupados e desocupados no período abordado pela pesquisa. Desde 2014, eles variaram como mostra o gif abaixo.
Durante o período da crise econômica, variaram a população brasileira e o número de brasileiros acima de 14 anos. Mas o que conta mesmo para o cálculo da taxa de desocupação é a força de trabalho, formada pelos trabalhadores ocupados e os desocupados. A taxa, divulgada mensalmente em percentual, é calculada da seguinte maneira.
Ambulante vende milho na porta de estação do metrô em São Paulo
Paulo Whitaker / Reuters
A taxa de desocupação mede qual a porcentagem da força de trabalho que está em busca de uma ocupação, mas os dados divulgados mensalmente pelo IBGE mostram mais do que simplesmente isso. Em uma crise econômica profunda e duradoura, como no caso da brasileira iniciada em 2014, os impactos no mercado de trabalho se dão não somente na desocupação.
Houve momentos efetivamente marcados por demissões, como mostram os dados de diminuição de empregados no setor privado. Em outros, a elevação do desemprego se dá porque mais pessoas sentiram necessidade de procurar trabalho - o que aumenta o número de desocupados mesmo se o número de ocupados não mudar. Uma demissão, ou o simples medo dela, pode afetar a vida de várias pessoas e alterar a taxa de desemprego.
O fenômeno descrito pelo coordenador do IBGE Cimar Azeredo é um dos que aconteceu no mercado de trabalho nos últimos anos.
No gráfico interativo abaixo, por meio de cinco grandes filtros, é possível medir a variação de 23 categorias durante os cinco anos entre 2014 e 2018. Os números mostram a deterioração do mercado de trabalho no Brasil, o aumento do desalento, do número de trabalhadores precariamente ocupados e do desemprego clássico.
Nos gráficos, é possível ver a migração da formalidade para a informalidade, do emprego tradicional para a iniciativa individual. É possível perceber também que, enquanto a indústria e a agricultura passaram a empregar menos, houve um aumento do número de ocupados nos setores de comércio e serviços, que oferece postos com exigência de qualificação menor.
Operários trabalham na obra de transposição do São Francisco em Cabrobó, Pernambuco
Ueslei Marcelino / Reuters
A linha do tempo da crise no mercado de trabalho começa em 2014, quando a taxa de desocupação estava entre as mais baixas do Brasil desde o início do Plano Real. A série histórica da Pnad Contínua começa em 2012 e não pode ser comparada com a Pnad que era feita anteriormente pelo IBGE. Mas outros levantamentos, como a Pesquisa Mensal do Emprego, reforçam a ideia de que o mercado de trabalho no Brasil vivia um momento raro.
Desde 2014, o Brasil teve três presidentes, duas eleições, um impeachment e uma recessão que provocou uma retração no PIB (Produto Interno Bruto) de 8,2% quando a economia tocou o fundo do poço, no fim de 2016. Uma crise de tamanha magnitude e duração tem fases diferentes, que impactaram o mercado de trabalho.
É o ano em que, oficialmente, começou a crise econômica. Segundo os parâmetros estabelecidos pelo Codace (Comitê de Datação de Ciclos Econômicos), da Fundação Getúlio Vargas, a economia brasileira entrou em recessão no segundo trimestre de 2014. O efeito no mercado de trabalho, no entanto, não foi imediato.
A recessão começa no momento em que a economia passa a produzir menos, mas a decisão de um empregador sobre dispensar um funcionário - até pelos custos envolvidos - pode demorar. Por isso, 2014 foi um ano, para o mercado de trabalho, de relativa estabilidade.
O mercado de trabalho saía de seu melhor momento e a discussão era sobre se o Brasil vivia situação de pleno emprego. A menor taxa de desemprego já registrada na Pnad Contínua, 6,17%, havia acontecido no último trimestre de 2013, quando 6 milhões de brasileiros eram considerados desocupados.
Durante o ano, o número de pessoas fora da força de trabalho cresceu mais do que a população e que o número de pessoas com mais de 14 anos. Ou seja, havia pessoas aptas que não estavam preocupadas em entrar para o mercado de trabalho. O número de ocupados também aumentou.
Apesar dos vários incentivos fiscais concedidos pelo governo de Dilma Rousseff a empresas, a economia não cresceu como o esperado. Começou a ficar claro que a situação das contas públicas era ruim, com o primeiro deficit primário desde 2001.
Pessoas que não estavam ocupadas nem desocupadas na semana da pesquisa, não trabalhavam nem procuravam trabalho. Um estudante universitário, por exemplo, alguém que tinha situação financeira estável graças ao trabalho de outra pessoa. Esse número cresceu entre 2012 e o início de 2015, quando essas pessoas começaram a procurar emprego. No caso de 2014, o número de desalentados entre o grupo fora da força foi o menor da série histórica da Pnad. Isso indica que, naquele momento, as pessoas não procuravam trabalho por opção - e não por terem desistido, como aconteceu depois.
Foi o ano da explosão da crise - econômica e política. Recém-reeleito, o governo Dilma perdeu popularidade ao implantar medidas de ajuste fiscal cuja aprovação o Congresso Nacional dificultava. Em meio ao impasse, os investimentos pararam, a produção caiu e o desemprego aumentou.
O número de pessoas desocupadas cresceu vertiginosamente, 40% ao longo do ano - eram quase 3 milhões de brasileiros a mais procurando trabalho.
O número de pessoas ocupadas até diminuiu pouco ao longo do ano (0,67%), mas piorou a qualidade do emprego, com as pessoas saindo de posições que pagavam mais para trabalhos com remuneração inferior. Caiu o número de empregados no setor privado, aumentou o número de trabalhadores domésticos.
Cresceu o número de pessoas que passaram a trabalhar por conta própria em busca de alguma renda porque perderam o emprego, porque temiam perder ou porque alguém da família vivia essa situação. Dados do Sebrae mostravam o avanço do chamado empreendedorismo forçado, quando a pessoa é obrigada a montar o próprio negócio por falta de trabalho ou renda.
Outro indício da necessidade de renda foi a queda do chamado "trabalhador auxiliar familiar", que é aquele que ajuda algum parente sem receber salário por isso.
O desalento também cresceu significativamente: pessoas deixaram de fazer parte das estatísticas de desemprego simplesmente porque desistiram de trabalhar.
Com isso, a crise ajudou a levar a popularidade do governo ainda mais para baixo. No fim do ano, o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha - que depois foi preso em Curitiba condenado por corrupção -, aceitou o pedido de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, acusada de crime de responsabilidade em razão de manobras fiscais.
O desocupado não trabalha nada, procura trabalho, está apto a assumir. O desocupado nem sempre é um demitido, não necessariamente estava empregado anteriormente. Durante a crise, em muitos casos, ele veio de fora da força de trabalho, passou a procurar porque a fonte de renda da família perdeu o emprego ou simplesmente estava com medo de perder. O número praticamente dobrou de 6 milhões para 12 milhões entre 2014 e 2018.
A crise política tornou-se aguda. Dilma Rousseff foi deposta da Presidência no final de agosto, e a economia brasileira seguiu em recessão até o fim de 2016. Foi o ano em que a economia atingiu o fundo do poço e aprofundou-se a crise no mercado de trabalho. Faltava trabalho para cada vez mais brasileiros.
O número de desocupados deu outro grande salto (36%) e a precarização dos ocupados continuava. Foi também um ano marcado por demissões. O número de ocupados, no total, diminuiu 2,15% - ou seja, quase 1,5 milhão de pessoas a menos trabalhando. Diminuiu também o número de trabalhadores empregados no setor privado, principalmente os formais.
Em 2016, aumentou significativamente o número de brasileiros que diziam estar trabalhando menos horas do que gostariam para garantir seu sustento. É o bico, o trabalho que gera pouca renda. O número dos chamados subocupados por insuficiência de horas saíu de 4 milhões para 5,2 milhões de brasileiros - chegou a 7 milhões no fim de 2018.
Com mais um ano de crise, o desalento voltou a subir, saindo de 2,7 milhões de pessoas para 3,9 milhões. O desalento é parte do que o IBGE chama de “subutilização da força de trabalho”, que é o número de brasileiros que poderia estar trabalhando se a economia oferecesse vagas adequadas. Esse grupo, que cresceu na crise, é formado pelos desocupados, os desalentados, os que trabalham horas insuficientes e aqueles que querem trabalhar, mas não estão aptos a assumir um emprego na semana da entrevista.
Esse conceito é utilizado pelo IBGE para medir quantos postos de trabalho adequados faltam no Brasil; quantas pessoas gostariam de trabalhar, ou trabalhar mais, e não conseguem. No trimestre terminado em janeiro, eram cerca de 19 milhões de brasileiros subutilizados - somando as quatro categorias. No fim do ano, a Pnad contou 24,3 milhões.
O desalentado gostaria de trabalhar, pode assumir, mas desistiu de procurar, não tem esperanças de encontrar. É um tipo de pessoa cujo problema fica à margem da taxa de desocupação. Durante os cinco anos dos gráficos, o número de pessoas nessa situação triplicou, de 1,6 milhão para 4,7 milhões. À medida que a situação da economia for melhorando, essas pessoas tendem a fazer a taxa de desemprego subir ao voltarem a procurar trabalho.
A crise terminou, oficialmente, no último trimestre de 2016 e, a partir daí, a economia brasileira voltou a crescer. O governo de Michel Temer, vice que participou da articulação do impeachment e substituiu Dilma Rousseff, contava com maior apoio de empresários e investidores. A retomada da economia, porém, foi muito mais lenta do que a queda. No mercado de trabalho, o quadro parou de piorar.
Durante o ano, influenciada também por efeitos sazonais, a taxa de desemprego tocou o ponto mais alto da série histórica. No fim do primeiro trimestre eram 13,7% de taxa e mais de 14 milhões de pessoas desempregadas. O saldo de 2017, no entanto, foi neutro.
O número de desocupados não aumentou pela primeira vez em quatro anos: eram 12,3 milhões no final de 2017, ligeiramente menor que no fim do ano anterior. O que sustentou a pequena queda na taxa de desocupação foi o aumento de pessoas ocupadas. Mal ocupadas.
A informalidade cresceu 5% durante o ano de 2017 enquanto o número de brasileiros trabalhando formalmente recuou 1%. No fim de 2017, 37,4 milhões de brasileiros trabalhavam sem carteira assinada ou sem CNPJ para os próprios negócios - 2 milhões a mais que no ano anterior.
Cresceu também o número de empregadores. No caso desse período, eram principalmente pequenos empregadores com iniciativas de pequeno porte, parecidas com as dos "conta própria". Um indício está no rendimento médio da categoria, que caiu durante o ano com a entrada de mais gente.
Entre o início de 2016 e o fim de 2018, o número de trabalhadores formais no Brasil caiu de 54,1 milhões para 52,2 milhões. Os informais aumentaram de 35,3 milhões para 38,2 milhões. E 2017 foi o ano em que esse movimento foi mais claro. A classificação de trabalho informal, para todas as modalidades, não consta oficialmente na Pnad. O Nexo considerou trabalhadores informais aqueles empregados sem carteira assinada, além de empregadores ou “conta própria” que trabalham sem registro no CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica). Até o final de 2015, o IBGE não perguntava a empregadores e “conta própria” se eles tinham ou não CNPJ, por isso não é possível traçar a evolução durante todo o período.
O ano de 2018 trouxe os primeiros sinais de retomada do mercado de trabalho. A recuperação, no entanto, ainda era precária, fraca e lenta. O número de desocupados caiu em relação ao ano anterior, atingiu o mesmo patamar que tinha no fim de 2016, praticamente o dobro do que tinha antes da crise.
O ano foi o primeiro sob vigência das novas regras trabalhistas, aprovadas pelo governo de Michel Temer em 2017. A ideia básica da reforma defendida pelo governo era a flexibilização das relações de trabalho, diminuindo burocracias para a contratação e demissão formal dos empregados. Apesar de o governo, à época, ter prometido a geração de empregos com a medida, o impacto ainda não aconteceu significativamente.
Em 2018 se consolidou também o movimento de migração dos trabalhadores para o setor de comércio e serviços - o que mais emprega e que, em média, paga salários menores e exige menos qualificação. A indústria, que aqui engloba construção civil, por outro lado, acumulou perdas de 12% no número de trabalhadores desde 2014.
A taxa de desemprego caiu, fechou 2018 em 11,6%, pouco abaixo do ano anterior. Mas o patamar ainda é alto e os dados mostram que a precarização dos postos de trabalho continua.
O desalento cresceu menos em 2018, mas segue avançando - são quatro anos seguidos. O mesmo se pode dizer sobre a informalidade, que cresceu proporcionalmente mais que os trabalhadores formais. A subocupação também não parou de aumentar, o que indica que as pessoas não conseguem trabalhar o número de horas que gostariam.
No fim do ano, mesmo com a tímida reação, o país ainda tinha 12,2 milhões de desocupados. Juntando os desocupados, os desalentados, os que não podem assumir e os que trabalham horas insuficientes, faltava emprego adequado para 27 milhões de brasileiros - mais que o dobro da população da cidade de São Paulo, mais que toda a população de Minas Gerais.
No fim de 2018, quase metade da população ocupada no Brasil estava trabalhando nos setores de comércio e serviços. Mais do que isso, o setor foi onde o número de ocupados mais cresceu, mesmo durante a crise, saltou de 39,7 para 43 milhões. Esse dado é uma junção de quatro categorias oficiais do IBGE, leva em conta pessoas que trabalham com informação, serviços imobiliários e financeiros, hotelaria, restaurantes e transporte, por exemplo. Esse setor é importante na economia brasileira e passou a empregar mais gente durante a crise. Postos de trabalho mais próximos ao consumidor final exigem menos qualificação e pagam salários mais baixos.
Todos os dados até aqui apresentados são um retrato da realidade nacional média. Esses dados escondem diferenças, às vezes profundas, que existem entre os trabalhadores brasileiros. A crise afeta de maneira distinta as pessoas dependendo de uma série de fatores como gênero, cor, idade e local em que elas vivem e trabalham.
Os números mostram que não ter experiência é uma barreira para se conseguir um emprego. Essa dificuldade histórica foi acentuada durante a crise. Foram os jovens os principais afetados pelo desemprego.
A taxa mais alta é a de jovens entre 14 e 17 anos, mas ela é menos significativa porque, como ainda estão em idade escolar, são poucos os que nessa idade trabalham ou procuram emprego. No fim de 2018, por exemplo, dos 12,7 milhões de jovens que o Brasil tinha nessa faixa etária, só 2,4 milhões estavam na força de trabalho.
A situação mais dramática é a de jovens entre 18 e 24 anos. Nessa faixa etária, já é grande o contingente de pessoas que procura emprego - muitas vezes, sem conseguir. A taxa de desocupação entre esses jovens, com pouca ou nenhuma experiência, é mais que o dobro da taxa geral.
No auge do problema, no primeiro trimestre de 2017, de quase 23 milhões de jovens nessa faixa etária no país, apenas cerca de 7 milhões não trabalhavam nem procuravam. Dos 16 milhões que já faziam parte da força de trabalho, 4,3 milhões estavam desempregados - uma taxa de desocupação de 27,3%. Ou seja, mais que um em cada quatro estava sem trabalho.
Os estados, que têm características na economia bastante diferentes entre si, também apresentam taxas de desocupação distintas. Entre 2014 e 2018, a menor taxa foi registrada no último trimestre de 2014, quando Santa Catarina tinha apenas 2,7% de desempregados. De outro lado, há estados que, durante todo o período, tiveram taxas superiores a 10%. O ponto mais alto da série foi registrado no Amapá no primeiro trimestre de 2018, quando a taxa de desocupação chegou a 21,5%.
Apesar da diferença de patamar entre os estados, a maioria deles foi afetada pela crise de maneira parecida. A tendência de crescimento da desocupação em 2015 e 2016 seguida de estagnação e pequena diminuição em 2017 e 2018 é praticamente geral.
Pessoas negras têm, historicamente, rendimento médio menor no mercado de trabalho brasileiro e têm mais chances de ficarem desempregadas. Desde o início da divulgação da Pnad Contínua, a taxa para esse grupo é acima da geral.
No primeiro trimestre de 2017, a taxa de desocupação de pessoas autodeclaradas de cor preta atingiu 16,9%. No mesmo momento, a taxa geral era de 13,7% e a das pessoas autodeclaradas brancas era de 10,9%. Mais do que isso, a diferença aumentou no pior momento da crise. A distância média entre a taxa do grupo de cor branca e de cor preta em 2014 foi de 3,1 pontos percentuais. Entre 2016 e 2018 o intervalo médio foi de 5,24 pontos percentuais.
A taxa de desemprego entre as mulheres, historicamente, é maior que a dos homens. Durante a crise, a taxa para o sexo feminino chegou a 15,8% enquanto a dos homens teve seu pico em 12,1%, ambas no primeiro trimestre de 2017.
Diferentemente do que aconteceu no recorte de cor/raça, a crise não aprofundou a distância entre os gêneros - o patamar de desigualdade foi mantido. A situação piorou para ambos, mas, proporcionalmente, a distância chegou até a ser levemente reduzida em alguns momentos. A taxa das mulheres, durante o ano de 2014 era 43% maior que a dos homens. Em 2017 e 2018 o índice foi cerca de 30% maior. Uma possível explicação para esse fenômeno é o fato de mulheres terem entrado no mercado de trabalho em muitos casos para amortecer a queda na renda de famílias em que o homem ficou desempregado.
Pessoas observam anúncios de vagas de emprego na região central de São Paulo
Paulo Whitaker / Reuters
Os efeitos e consequências desse período de crise no mercado de trabalho brasileiro serão medidos nos próximos anos. Abaixo, dois economistas, Naércio Menezes e Clemente Lúcio, fazem prognósticos sobre a retomada na área.
Naercio Menezes Filho doutor em economia e coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper
O crescimento da economia nos anos 2000, até 2013, foi muito baseado em serviços, com aumento de demanda de mão de obra menos qualificada. O que aconteceu, basicamente, foi um círculo virtuoso para os menos qualificados com aumentos seguidos de salário mínimo, aumento de consumo e isso aumentou o emprego nesses próprios setores.
Isso fez o desemprego cair muito, a renda aumentou, os filhos puderam parar de participar do mercado de trabalho, ficaram só estudando como sempre aconteceu com os filhos das famílias mais ricas. É difícil avaliar o quadro de pleno emprego como artificial, é um fato econômico. A crise atinge justamente esse setor. O consumo vinha aumentando, o endividamento vinha aumentando, a crise pegou em cheio esse setor e essas pessoas.
Para o futuro, há algumas questões. A primeira é que falta dinamismo à economia brasileira. Nos setores mais avançados tecnologicamente, gasta-se muito pouco em inovação. Se não houver uma mudança que traga mais concorrência, dificilmente vai haver crescimento do emprego com mais qualificação.
Outra possibilidade é aumentar a renda e o consumo dos menos qualificados, como foi naquela época. Lá foi o aumento forte do salário mínimo. Mas na situação atual, com inadimplência muito alta, consumo tímido, não há perspectiva de aumento de renda. Os investimentos do governo também estão caindo. Por aí também não deve vir.
A terceira é a possibilidade de uma mudança de expectativas, via reformas, se fizer com que os empresários acreditem que a economia vai melhorar e comecem a investir e gerar um crescimento econômico com redução do desemprego. Para que os empresários contratem no setor formal, precisam acreditar que vai haver um aumento de demanda pelos seus produtos. É difícil que isso aconteça no curto prazo.
A reforma trabalhista não parece ter gerado os frutos que se esperava. Ela teve efeitos nos processos trabalhistas, mas não houve redução do desemprego. Acho que justamente por falta de demanda.
Clemente Ganz Lúcio sociólogo e diretor técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos)
Aquele quadro foi resultado de uma dinâmica econômica que vinha lá de 2003, 2004, quando o Brasil faz mudanças na política econômica, aproveita o boom de exportações. Isso fortalece uma dinâmica que foi induzida pelo aumento da massa de salários, valorização de aposentadorias e salário mínimo. Aumenta a renda e dá a chance de as pessoas consumirem mais. Melhora o poder de compra das famílias.
Por outro lado, o governo começa, principalmente a partir de 2008 e 2009, a fazer investimentos estruturais, com PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), Minha Casa Minha Vida, mecanismos que expandem a economia, que geram emprego. São baixos salários contratados com carteira assinada, o que é um começo de combate às grandes desigualdades. Em alguns setores, como na construção civil, com demanda alta, esses salários começam inclusive a crescer. Do nosso ponto de vista, é uma dinâmica virtuosa. Isso é interrompido em 2013, 2014, com uma nova fase da crise internacional, com o esgotamento da capacidade de o Estado sustentar esse tipo de crescimento.
O mercado de trabalho tinha uma dinâmica virtuosa, gerava emprego com proteção social, formal. Ainda que empregos com baixa remuneração. Se a economia continuasse a crescer, a desigualdade seria progressivamente atenuada. Com investimento forte, valorização da base salarial, investimento em educação e com um processo de reindustrialização do país. A desindustrialização tem graves consequências sobre a qualidade do emprego. Uma economia como a brasileira precisa de uma forte indústria transformadora.
O que acontece agora não é uma recuperação do emprego, é da ocupação, com forte impacto do trabalhador por conta própria. A crise econômica gera esse tipo de precarização. Com a reforma trabalhista, ao sair da crise, as empresas poderão fazer uma reestruturação já considerando que estão amparadas pela nova legislação para constituir uma força de trabalho mais flexível. Gradativamente vai aparecer jornada em tempo parcial, contrato intermitente, pessoa jurídica.
Indo por esse caminho, a chance de repetirmos 2014 é nenhuma. Eu não vejo chance de o Brasil oferecer para os 105 milhões de brasileiros que estão no mundo do trabalho aquela perspectiva de um processo de melhora de postos de trabalho com salário. A fragilidade da nossa economia indica o crescimento das ocupações precárias e uma perspectiva de aumento da desigualdade entre os trabalhadores.
Nós temos a chance de ter a metade de baixo da força de trabalho cada vez mais precarizada, mas também poderemos perder postos de trabalho mais qualificados para o exterior.
E para além dos efeitos gerais na economia, a crise afetou profundamente trajetórias particulares, com impacto psicossociais. A psicológa Belinda Mandelbaum analisa esse aspecto abaixo.
Belinda Piltcher Haber Mandelbaum Doutora em psicologia social e coordenadora do Laboratório de Estudos da Família do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da USP
A perda imediata é a material, as pessoas sofrem, se preocupam. Isso é um transtorno para o indivíduo e para a família, que depende desse salário. Muitas vezes, esse salário já era pouco para todas as necessidades. Isso aumenta o nível de tensão, os conflitos, há uma tendência de se culpabilizar a pessoa que perdeu o emprego. O desempregado passa a ser violentado duplamente, na demissão e em casa.
Nós vivemos uma ideia de que cada indivíduo é responsável por dar conta de si mesmo e da família no mundo do trabalho, de que cabe a cada um desenvolver as competências necessárias para estar no mundo do trabalho. Logo, se a pessoa não está no mercado é porque não é competente o suficiente, a pessoa falhou. É como se o desemprego fosse um problema do desempregado, não há uma consciência social mais ampla de que o desemprego é parte da estrutura de funcionamento da sociedade em que a gente vive.
A perda do emprego é um grande ataque à nossa identidade, como pessoas. O trabalho é um organizador da nossa identidade, da nossa vida cotidiana. A semana é quando a gente trabalha, o fim de semana é o descanso. A perda do emprego traz uma desorganização disso, não se sabe mais quando é segunda, quando é domingo.
O trabalho é importante para a autoestima. Com o tempo, o desemprego desencadeia uma série de processos, quadros depressivos. Desalento é um bom nome, se perde o ânimo, a esperança, a pessoa se retrai para dentro de casa. As pessoas não querem aparecer, se sentem envergonhadas, é um fenômeno recorrente.
Há a questão do sentido do trabalho para cada um, além do provimento da casa, há um sentido de realização pessoal. Em um quadro como o atual, a gente nem pode falar em realização pessoal porque quem está em busca de emprego, hoje, está em busca de qualquer coisa.
A minha experiência é que esse tipo de ocupação não dá o conforto psicológico necessário para as pessoas, há muita ansiedade. Quem não tem estabilidade não pode ter projeto de futuro.
Vendedor carrega sua banca de frutas em São Paulo
Nacho Doce / Reuters
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