especial-decada

2.
Vida conectada
e vigiada

Em 17 de Dez de 2019

Onde estávamos em 2010

Os smartphones se popularizavam, mas os 300 milhões de aparelhos vendidos ainda correspondiam a menos de um quinto do total dos dispositivos comercializados no mundo. O hábito de usar aplicativos começava a se espalhar. A Apple registrava o slogan “Tem um app para isso” (There’s an app for that), numa referência bem-humorada às 250 mil opções disponíveis na App Store. O iPhone chegava à sua quarta encarnação com uma novidade: uma câmera frontal que permitia ao usuário tirar uma foto de si mesmo com qualidade. Instagram e Netflix tinha acabado de estrear. Os vazamentos de documentos secretos via Wikileaks constrangiam governos e a internet era comemorada como uma forma de fortalecer a democracia. A revista The Economist, porém, já fazia alertas sobre como o monitoramento do uso individual da rede poderia chegar “a um ponto crítico”. A publicação reportava que políticos iriam logo discutir legislação que deixaria os consumidores mais cientes a respeito de que tipo de dados pessoais estavam sendo coletados. Uma das novas tendências era a coleta de informações sobre hábitos de usuários na internet que depois seriam usados para direcionar publicidade específica. O Facebook consolidava sua força e tinha sua história contada no filme “A Rede Social”. Seu fundador, Mark Zuckerberg, passava a partir dali a figurar na lista da revista Time entre as 100 pessoas mais ricas e influentes do mundo. No Brasil, o Orkut seria desbancado em 2011 pelo Facebook como rede social preferida.

Onde estamos em 2019

A distinção entre online e offline praticamente desapareceu. Metade da população mundial está conectada. No Brasil, 67% dela. Mais de 1,5 bilhão de smartphones foram vendidos em 2019. Nos EUA, 96% do tempo no celular é gasto, em média, com dez aplicativos. No Brasil, 80% se dedicam a apenas dois apps. A promessa da internet libertadora se transformou numa navegação direcionada e controlada. Praticamente todos os aspectos da vida, dos relacionamentos à mobilidade, da comunicação à alimentação, podem ser administrados por meio da tela à mão. Aplicativos como Tinder mudaram o jeito de flertar. Outros, como Uber e Rappi, mexeram na economia. Como definiu o filósofo Alain de Botton, em 2014, “o desafio constante dos encontros modernos é provar que você é mais interessante que o smartphone do outro”. Contradições emergiram: a praticidade do app é sustentada por um exército de trabalhadores precarizados; a rede social que dá oportunidades a vozes minoritárias também abriga o discurso de ódio. Os percursos digitais alimentam algoritmos, as programações artificialmente inteligentes que aprendem para oferecer opções e diretrizes. Os dados direcionam de um jeito cada vez mais preciso a publicidade. Mas não só: à revelia de seus proprietários, dados pessoais também vão para as mãos de campanhas políticas e governos. O ex-agente Edward Snowden expôs a vigilância em massa de agências de inteligência americanas, facilitado por empresas como Google e Facebook. Países tentam regular o uso de dados. No Brasil, o Marco Civil da Internet estabeleceu parâmetros na área.


Para onde vamos até 2029

Silvana Bahia e Gabriela Agustini, diretoras do Olabi, organização social com foco na democratização das tecnologias

Estima-se que o impacto da automação nas formas de trabalho e nas relações sociais nos próximos anos deve ser grande em países como o Brasil, tradicional consumidor (e não produtor) de tecnologia. Segundo o relatório "O futuro do emprego no Brasil", do Laboratório do Futuro, 60% do trabalho realizado no país sofrerá mudanças e as populações mais vulneráveis serão as mais afetadas.

O que percebemos cada vez mais é que a visão otimista que marcou a cena tecnológica décadas passadas, com a democratização da internet e o potencial de distribuição de poderes, vai dando espaço para um olhar mais crítico. A evolução tecnológica trouxe avanços em diversas áreas, mas não foi capaz de contribuir para a redução das desigualdades sociais.

Reconhecimento facial, algoritmos racistas, concentração de dados, vigilância, monopólios são algumas faces preocupantes do atual contexto tecnológico. Seremos capaz de lidar com ele?

Para tentar reduzir os danos dessa realidade precisamos acima de tudo incentivar o pensamento crítico. Estimular que boas perguntas sejam feitas sobre o futuro, sobre as plataformas tecnológicas e até mesmo sobre os nossos modos de vida.

Talvez, um dos caminhos esteja próximo ao que o historiador Yuval Noah Harari citou em sua recente vinda ao Brasil. Para ele, a melhor forma de "combater" a realidade em que os algoritmos preveem nosso comportamento para nos vender produtos é termos mais conhecimento sobre nós mesmos e nossos desejos do que estes algoritmos podem conseguir. Ou seja, ao olhar para dentro, é questionar o mundo e, ao se posicionar, podemos criar um futuro com mais autonomia.

Uma coisa é certa: criar um futuro inclusivo, para todos, exige atenção constante e resistência. Se não queremos viver em um futuro ainda mais concentrado e desigual, precisamos começar diversificando quem produz as tecnologias e estratégias que pautam o futuro.

Mariana Valente, diretora da InternetLab, centro de pesquisa de direito e tecnologia

O ano de 2010 marcou o início da Primavera Árabe, e, com ela, guerras de interpretação sobre o significado da internet e das mídias sociais. Em 2009, Andrew Sullivan escreveu o famigerado “A revolução vai ser tuitada”: em Teerã, uma geração que “queria liberdade, estava cansada de mentiras, gosta da vida e conhece a esperança” estava resistindo pelo Twitter. Críticos notaram seu cyber-otimismo mal colocado, já atrasado, incapaz de compreender as nuances e contradições que comentadores mais astutos já identificavam havia alguns anos. Na versão mais famosa, o bielorusso Evgeny Morozov pontuava que as redes sociais são ferramentas cuja eficácia está ligada à potência da organização de redes de ativistas e movimentos sociais que as utilizam. Mais: as comunicações entre ativistas rebeldes deixam rastros que são facilmente utilizáveis pela repressão.

Entrando no Brasil em 2020, o otimismo radiante com o papel das mídias sociais nas sociedades e nas democracias têm seu espaço, mas agora entre apoiadores convictos do bolsonarismo. Em comum entre eles, Andrew Sullivan e uma parte da militância progressista, está um irremediável tecnocentrismo que ajuda pouco a entender as conexões entre tecnologia, política, sociedade e economia.

É redutor, não porque não haja motivos para se preocupar com a degradação e manipulação da esfera pública (há), mas porque a compreensão do impacto da internet e das tecnologias digitais sobre a vida em 2020 exige ir além de entender o resultado eleitoral de 2018. Há pesquisas competentes reconstruindo a sua formação até comunidades apoiadoras de Olavo de Carvalho no Orkut em 2005 (ou seja, não começou ontem).

Mas as transformações em uma sociedade em que quase 70% das pessoas usa internet nos celulares é mais profunda. O caráter e a constância das relações pessoais é impactado pelos grupos de WhatsApp, noções de privado são atualizadas com stories do café da manhã no Instagram, memes do mês passado já estão velhos. Dados coletados por entes públicos e privados são cruzados por tecnologias digitais para identificar quem deve ser incluído e excluído de programas sociais, e o policiamento preditivo, ou seja, usar dados para buscar identificar áreas ou sujeitos “mais propensos” a cometer crimes, já é realidade em muitos países – com vícios de causalidade e afetando desproporcionalmente as populações de sempre. Algoritmos aprendem com comportamentos de usuários e reforçam preconceitos, perpetuando noções discriminatórias em resultados de busca (já procurou “mulher bonita” e “mulher feia” no Google?). Novas lideranças surgem no Twitter, e há influenciadores de YouTube mais conhecidos que apresentadores de TV. Seu relógio inteligente sabe que você está grávida antes de você mesma, e provavelmente mais gente. Empresas de internet se misturam com negócios offline, e impactam o mundo do trabalho em diferentes frentes. Algumas se tornaram as empresas mais valiosas do mundo. O caráter global do seu serviço faz com que políticas sobre internet elaboradas por algumas grandes economias sejam na prática exportadas para todo o resto do mundo, o que não é nada banal para se pensar sobre democracia, soberania e regulação. Mídias periféricas baseadas na internet tratam de temas que não chegam nos grandes jornais. Formas contemporâneas de censura são invisíveis (viram o bloqueio do site com informações sobre aborto e saúde reprodutiva?), e falar desse tema tem levado a ataques virtuais cujos efeitos costumam ser bastante ignorados pelas autoridades.

Nesta próxima década, o debate sobre o papel da internet nas nossas sociedades e democracias vai muito além de cyber-otimismos e cyber-pessimismos. E exige a atenção de pessoas da política, da academia, das engenharias e da sociedade civil, com abertura para compreensão e compromisso inarredável com valores públicos.