ESPECIAL
O cálculo de uma tragédia
Por Juliana Domingos de Lima
em 29 de ago de 2020
BRASIL
100.000
O Brasil atingiu a marca de 100 mil mortos pelo novo coronavírus em 8 de agosto de 2020. Publicada semanalmente, esta série do ‘Nexo’ em cinco capítulos aborda os aspectos sanitários, econômicos, políticos e sociais de um tempo que mistura cálculo e incerteza
capítulo 4
Brasil sem máscara
As primeiras infecções e mortes pelo novo coronavírus no Brasil, registradas em fevereiro e março, já indicavam a maneira desigual com que a pandemia de covid-19 atingiria a população do país.
O primeiro caso confirmado da doença em território nacional foi de um empresário de 61 anos que havia viajado à Itália. Ele foi atendido no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo – instituição de saúde privada que figura entre as melhores do país – no final de fevereiro, e foi declarado curado em meados de março.
As primeiras mortes pelo novo coronavírus no Brasil, no entanto, ocorreram em um estrato social diferente – um porteiro aposentado de 62 anos, em São Paulo, e uma trabalhadora doméstica de 63 anos, que teve contato com a patroa infectada, no Rio de Janeiro. O primeiro foi atendido em um hospital da rede Sancta Maggiore, voltada aos conveniados da operadora Prevent Senior, enquanto a mulher foi assistida por um hospital municipal de Miguel Pereira (RJ).
Cinco meses depois, com milhões de casos de infecção confirmados e quase 120 mil mortos pela doença, segundo dados do fim de agosto, esse padrão de desigualdade se mantém.
49%
foi a taxa de mortalidade por covid-19 em UTIs públicas entre 1º de março e 18 de agosto, segundo a Associação de Medicina Intensiva Brasileira
28%
foi a taxa de mortalidade pela doença em UTIs privadas nesse mesmo período
O vírus é mais letal para moradores de regiões periféricas ou que vivem em habitações precárias em áreas centrais, segundo estudos focados em grandes capitais brasileiras.
Em São Paulo, cidade com maior número absoluto de mortes no país, os 20 distritos mais pobres acumularam mais que o dobro de mortes pela covid-19 registradas nos 20 mais ricos, de acordo com dados da Secretaria Municipal de Saúde entre março e agosto.
Esses distritos com mais mortes são também aqueles em que a maioria da população é negra e onde a população tem menor renda média e taxa de emprego, segundo a Rede Nossa São Paulo.
Em todo o Brasil, 29% das vítimas fatais da doença até 15 de agosto eram brancas, enquanto 41% eram negras, somando pretos e pardos, de acordo com o Ministério da Saúde. Outros levantamentos apontam para uma proporção de mortes por covid-19 no país ainda mais desigual em termos raciais.
FOTO: Ricardo Moraes/reuters
Agentes funerários levam caixão de vítima da covid-19 em cemitério do Rio de Janeiro
Os dados indicam que as desigualdades da sociedade brasileira – de renda, de raça e territoriais – se fazem presentes no nível de exposição de diferentes parcelas da população à covid-19 e no tratamento recebido, condicionando quem tem maiores chances de contrair a doença e de sobreviver a ela. As condições socioeconômicas de muitos brasileiros não permitem a adoção do isolamento social e dificultam o acesso à saúde.
Foto: Pilar Olivares/Reuters
Mulher de máscara na favela do Vidigal, no Rio
FOTO: ricardo moraes/reuters
Passageiros usam máscara no transporte público do Rio
As disparidades também ficaram evidentes nas respostas de parte da sociedade à pandemia. Houve aqueles que, de um lugar social de privilégio, advogaram pela retomada da atividade econômica em detrimento da proteção dos trabalhadores. Outros tentaram se afirmar como exceção diante de regras sanitárias que devem se aplicar a todos.
Ao mesmo tempo, a crise sensibilizou e motivou ações de solidariedade, campanhas de doação que movimentaram valores recorde e fortes articulações comunitárias entre os mais vulneráveis para responder às lacunas do poder público.
Acima do todo e da lei
No fim de março, com medidas restritivas de governos já em vigor, alguns empresários se manifestaram contra o fechamento do comércio, argumentando que o prejuízo à economia seria maior do que o impacto na saúde pública. As falas seguiam uma tese defendida também pelo presidente Jair Bolsonaro.
“Você que é funcionário, que talvez esteja em casa numa boa, numa tranquilidade, curtindo um pouco esse home office, esse descanso forçado, você já se deu conta de que, ao invés de estar com medo de pegar esse vírus, você deveria também estar com medo de perder o emprego?”
Alexandre Guerra, sócio da rede Giraffas, em vídeo divulgado em seu perfil do Instagram em 20 de março
“As consequências que nós vamos ter economicamente, no futuro, serão muito maiores do que as pessoas que vão morrer agora com coronavírus. (...) Nós não podemos [parar] por conta de cinco mil ou sete mil pessoas que vão morrer”
Junior Durski, dono das redes de restaurante Madero e Jeronimo, em vídeo divulgado em seu perfil do Instagram em 23 de março
As declarações repercutiram negativamente nas redes sociais, com usuários defendendo o boicote às empresas. Durski se desculpou, dizendo ter sido mal interpretado. Já Alexandre Guerra, filho do dono da rede Giraffas, foi afastado do conselho administrativo. Seu pai afirmou que o posicionamento emitido não representava a empresa.
Em todo o mundo, a pandemia tem sido responsável pela perda de empregos e pela falência de muitos negócios, mas há sinais de que não são os mais ricos que têm arcado com elas.
O estudo Quem paga a conta?, da Oxfam, mostrou que, entre março e junho bilionários da América Latina e Caribe aumentaram suas fortunas mesmo com a crise econômica, enquanto no geral a população perdeu emprego e renda. Segundo a ONG (organização não-governamental), os 42 bilionários do Brasil aumentaram suas fortunas em US$ 34 bilhões no período.
Foto: Ueslei Marcelino/Reuters
Mulher exibe bandeira do Brasil em passeata contra o isolamento social realizada por apoiadores de Jair Bolsonaro
Além das declarações, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro organizaram carreatas e se aglomeraram entre março e abril para pedir o fim do isolamento social e a reabertura do comércio em várias capitais do país, como São Paulo, Rio e Manaus, e também em cidades do interior.
No início de maio, quando o Brasil registrava cerca de sete mil mortes pela doença e a pandemia avançava de forma acelerada, uma fala do presidente da corretora XP, Guilherme Benchimol, ilustrou o fosso social entre as realidades do país – e uma visão de membros das elites em uma das pontas.
“O pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média, classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo”
Guilherme Benchimol, presidente da XP, durante uma transmissão ao vivo do jornal O Estado de S. Paulo em 5 de maio
Na medida em que governos colocaram em vigor medidas como a proibição de aglomerações e a obrigatoriedade do uso de máscaras, o Brasil tem testemunhado também episódios em que indivíduos flagrados desrespeitando as regras se colocam acima da lei.
“Cidadão, não. Engenheiro civil formado, melhor do que você.” A frase dita por uma mulher sem máscara a um fiscal da prefeitura do Rio de Janeiro que verificava o cumprimento do distanciamento social na Barra da Tijuca, no início de julho, se tornou emblemática desse tipo de enfrentamento. Ela se referia ao marido, que foi chamado de “cidadão” pelo fiscal.
Assim como muitas pessoas naquela noite, o casal integrava uma cena que passou a ser comum com a flexibilização do isolamento: muita gente aglomerada em áreas de lazer, às vezes sem usar máscaras. Algo que se repetiu também em bares de outras capitais e em praias de cidades litorâneas, como se a pandemia tivesse acabado.
Foto: TV Globo/Reprodução
Casal sem máscara intimidou fiscal da Vigilância Sanitária que fazia inspeção em restaurante no Rio
Foto: SBT Jornalismo/Youtube/Reprodução
O desembargador Eduardo Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao ser abordado por agentes da Guarda Civil em santos
No mesmo mês, o desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, humilhou um guarda civil municipal em Santos, ao ser multado por não utilizar máscara enquanto caminhava numa praia da cidade do litoral paulista. Siqueira telefonou ao secretário de Segurança Pública do município para intimidar o guarda, e rasgou a multa que recebeu.
As duas situações, que foram filmadas e divulgadas, provocaram a indignação de setores da sociedade.
A reação solidária e o vácuo do Estado
Um outro espectro de respostas da sociedade brasileira à crise abrange muitas ações filantrópicas, campanhas de doação e articulações comunitárias que buscam amparar os mais atingidos nesse contexto.
Segundo o “Monitor das Doações Covid-19”, mantido pela Associação Brasileira de Captadores de Recursos, mais de R$ 6 bilhões haviam sido doados como resposta à covid-19 até 26 de agosto, um valor recorde no Brasil. O monitor considera apenas doações anunciadas publicamente e com valores divulgados. Ações como compra de máscaras e equipamentos médicos, que não tiveram os montantes anunciados, não estão incluídas.
A maior parte dos atos registrados se destinou à área de saúde e a maioria das doações foi feita por empresas. Houve também aportes de ONGs, sindicatos, celebridades e empresários. Estes últimos têm saído do anonimato para registrar doações pessoais, numa tentativa de ampliar a filantropia encabeçada pela elite econômica do país.
No âmbito da solidariedade, chama atenção a organização comunitária e a atuação de movimentos sociais no combate à pandemia, determinantes para que seus efeitos não fossem ainda mais severos em territórios vulneráveis e negligenciados pelo poder público.
Foto: Amanda Perobelli/Reuters
Homem recebe cesta básica da ONG Central Única das Favelas na comunidade de Heliópolis, em São Paulo
FOTO: Pilar Olivares/reuters
Voluntário carrega doações destinadas a famílias pobres da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, em meio à pandemia do novo coronavírus
Divulgada no final de junho, a pesquisa “Pandemia na Favela” mostrou que a solidariedade entre moradores de comunidades é maior do que na média da população.
Ela apontou que 63% dos habitantes de comunidades fizeram algum tipo de doação durante a pandemia. Na população geral, esse índice foi de 49%. A pesquisa contou com a participação de mais de três mil moradores de todas as regiões do Brasil e foi feita pelo Data Favela, parceria do Instituto Locomotiva, da Central Única das Favelas e da Favela Holding.
“O legado dessa pandemia é a organização das pessoas para ajudar quem precisa. À medida em que dermos protagonismo à comunidade poderemos alcançar o objetivo de que organizações como a nossa não sejam tão necessárias. As grandes transformações que acontecerão no Brasil, e nas próprias favelas, serão por meio de seus próprios moradores”
Gilson Rodrigues, fundador do G10 das Favelas e líder comunitário de Paraisópolis, em entrevista ao UOL em 28 de julho
A organização comunitária de Paraisópolis, comunidade da zona sul de São Paulo, se tornou referência no combate à pandemia e teve iniciativas replicadas pelo G10 Favelas, bloco que reúne as principais comunidades do país.
Foto: Amanda Perobelli/Reuters
Ambulâncias contratadas pela comunidade de Paraisópolis para atender a população na pandemia
O bairro paulistano contratou ambulâncias e equipes de saúde, comprou testes, criou estruturas para garantir o isolamento, mobilizou voluntários e impulsionou projetos voltados à geração de renda para moradores que perderam suas fontes de sustento durante a pandemia. O resultado foi uma taxa de mortalidade pela covid-19 que, em maio, estava abaixo da média municipal.
No Rio, moradores do Complexo do Alemão criaram o Gabinete de Crise do Alemão, grupo composto por movimentos da comunidade voltado a estruturar ações de combate à pandemia em seu território.
Arrecadação e distribuição de cestas básicas e kits de higiene, apoio financeiro aos mais vulneráveis, canal informativo no WhatsApp, carro de som com dicas de prevenção são iniciativas implementadas por moradores de favelas de cidades como Recife, Belo Horizonte, São Luís e outras para fortalecer o enfrentamento da pandemia e tentar suprir a ausência do Estado.
As reações da sociedade brasileira
sob análise
O Nexo entrevistou dois sociólogos a respeito da desigualdade que estrutura a sociedade brasileira, do comportamento de diferentes setores diante da pandemia e sobre aquilo que o atual momento pode deixar de legado para as dinâmicas da sociedade.
Mariana Miggiolaro Chaguri é professora do Departamento de Sociologia da Unicamp
Pedro Ferreira de Souza é sociólogo e pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)
Como a desigualdade brasileira se traduziu no comportamento da sociedade durante a pandemia?
Mariana Miggiolaro Chaguri O comportamento da sociedade foi muito norteado pelo modo como o governo federal, em particular, encaminhou ou não encaminhou o enfrentamento à pandemia. Como o governo não conseguiu unificar a sociedade, dar diretrizes claras para o mercado, nem organizar de uma maneira mais efetiva as diferentes frentes de atuação do Estado, o que aconteceu é que o ônus do isolamento social e do próprio adoecimento foi completamente individualizado. Aí é claro que as desigualdades afloraram, se tornaram radicais.
Numa sociedade tão desigual quanto a brasileira, o Estado, em particular o governo federal joga um papel muito crucial. Como ele se omitiu, renunciou às suas responsabilidades de coordenar uma resposta séria, efetiva, duradoura aos efeitos sociais, econômicos e políticos de uma pandemia dessa magnitude, a sociedade passou a responder a partir dos seus próprios elementos. E cada um faz isso a partir do seu lugar, do lugar onde mora, do seu trabalho, da sua renda, da sua raça, da sua configuração de gênero e assim por diante. A gente está um pouco tentado a dizer que a sociedade brasileira se comportou de modo individualista, mas eu acho que é importante pensar que ela foi empurrada por um Estado omisso, por um governo federal omisso, a se fechar dentro de casa e a lidar com as possibilidades que ela tinha, com os recursos que ela tinha.
Pedro Ferreira de Souza A pobreza e a desigualdade tinham saído um pouco do debate público nos últimos anos, desde o auge da crise em 2014, 2015. A pandemia deu uma escancarada em tudo isso, na diferença de condições das pessoas para enfrentá-la. Ficou óbvio que o simples ato de ficar em casa e se isolar é muito mais difícil para uma parte gigante da população, que não tem uma moradia confortável, que não tem renda para poder fazer isso. Acho que o auxílio emergencial foi uma resposta que até impressiona. Uma iniciativa do Congresso que era completamente impensável em outro contexto – nunca o Brasil deu R$600 por adulto, um valor incrivelmente superior a qualquer programa.
Ele mudou completamente o debate sobre o que vai acontecer em termos de proteção social. Tem uma pressão muito maior agora para a gente ter uma política maior e mais generosa, no sentido de ter um escopo de número de famílias, de pessoas, muito maior do que a gente tinha e dar valores maiores também. E isso é uma resposta justamente à desigualdade e a essa característica de o Brasil de ter um setor informal gigante.
Como avalia o comportamento da elite econômica nacional nesse período, na sua relação com a população mais pobre?
Mariana Miggiolaro Chaguri As elites, tal qual o governo federal, faltaram ao encontro, também renunciaram de algum modo a um papel histórico de liderança de um processo social bastante importante. Ainda que a gente tenha tido ações no campo da filantropia, e que esse ativismo empresarial seja realmente muito significativo num momento como esse, do ponto de vista da pressão econômica e política que essas elites poderiam ter feito para cobrar uma atuação do governo federal, isso não foi feito.
Neste momento histórico, a sociedade brasileira está enfrentando uma dificuldade muito grande de estabelecer um acordo coletivo de reconhecimento da comunidade nacional. No limite, parece se tratar de uma sociedade que no meio de uma pandemia não teve muita capacidade de se reconhecer simbolicamente, como parte de um mesmo problema. É como se ficasse muito claro na sociedade brasileira que, se todos nós estamos na mesma tempestade, para usar uma figura que ficou comum, os barcos são muito diferentes, são completamente desiguais entre si.
O efeito mais sistêmico da desigualdade na sociedade brasileira é de fato essa capacidade que a gente vai perdendo de se reconhecer como igual. Me parece que as elites renunciaram ao seu papel neste momento histórico inclusive porque deixaram de se reconhecer como parte da comunidade nacional, se voltaram para fora, à salvaguarda dos seus negócios, para não enfrentar o problema político fundamental que está colocado na sociedade brasileira. Mas principalmente para se desobrigar de lutar pela pactuação que permita minimamente que nós nos reconheçamos como parte da mesma comunidade nacional, da mesma sociedade.
Pedro Ferreira de Souza Tem um componente eterno, pelo menos da experiência cotidiana, que é o medo do caos. E a desigualdade é um fator muito importante para esse medo das classes mais altas no Brasil ser tão forte, esse medo da situação sair do controle, de haver revoltas. No fundo é a questão de como manter a ordem num país que é extremamente desigual. É uma ordem sempre muito precária no Brasil, muito violenta, como a gente sabe.
Foram respostas complicadas. Não estou querendo demonizar ninguém – setores amplos também tiveram uma visão mais solidária, muita gente apoiou o auxílio [emergencial], não só por medo mas também por entender a necessidade. Às vezes as mesmas pessoas têm mais de uma dessas respostas, você pode ter medo do caos e também pode ter solidariedade.
No fim das contas, talvez o saldo final tenha sido que essa vertente da elite que queria reabrir porque estava com medo de ter prejuízo acabou um pouco desmoralizada, vários empresários acabaram sendo muito criticados por falarem esse tipo de coisa e eu acho que prevaleceu uma visão de que realmente é preciso manter a coesão social de alguma forma, e é muito difícil fazer isso num país com esse grau de desigualdade. Se isso vai gerar de fato um movimento para reformas redistributivas eu não sei, e na verdade, francamente, eu diria que não. Mas pelo menos nesse momento prevaleceu o bom senso em como reagir a essa crise, com o auxílio. No mínimo, ele ajudou a evitar esse colapso que todo mundo temia.
A solidariedade apareceu na sociedade brasileira durante a pandemia? Tem sido diferente de outros momentos históricos nacionais?
Mariana Miggiolaro Chaguri A solidariedade aparece, como sempre apareceu em outros momentos históricos da sociedade brasileira. Mas se a solidariedade face a face, entre indivíduos e entre famílias se deu, se esse cuidado em termos de uma comunidade menor se fez presente ou até se expressou também na filantropia, o ponto é que em termos de uma dinâmica mais ampla da sociedade, de proteção social, ela não aconteceu.
Aquele vídeo célebre do casal que tem um entrevero com um fiscal da vigilância sanitária no Rio de Janeiro, no qual a mulher diz “cidadão não, engenheiro civil formado”, mostra o tamanho do desafio para alcançar uma solidariedade social na sociedade brasileira, que seja ampla e sólida o suficiente para incidir contra as bases da desigualdade. É complicado a gente falar de solidariedade social quando, num momento de pandemia, de profunda fragilidade da vida social, da vida coletiva, de profunda incerteza, setores da sociedade investem contra o princípio de cidadania. Eles a recusam, dizem “eu não quero ser tratado como um cidadão”, o que quer dizer “eu quero ser tratado desigualmente”, eu estou acima da cidadania porque eu tenho um título.
Estamos falando de uma desigualdade que é tão profunda e tão radical que de fato desumaniza, quebra as bases próprias de reconhecimento que a sociedade pode ter de si própria, o que significa que todo e qualquer laço de solidariedade vai ser sempre muito baseado ou no voluntarismo ou na ideia de que você tem que fazer o bem ao próximo imediato, àquele que você reconhece como digno de merecer este seu ato de solidariedade. Essa solidariedade desinteressada, que existe quase como princípio de organização da sociedade, de reconhecimento de todos no pacto da cidadania, deixa de fazer sentido, ela não é funcional na sociedade brasileira nesse momento.
Pedro Ferreira de Souza Houve muitas iniciativas, não só das elites mas também das camadas mais pobres da população. Nas favelas e comunidades houve muito esforço de organização e redistribuição. Numa pandemia, é claro que isso deve ter sido muito aguçado em relação a outros momentos. Eu não me lembro de nada que tenha causado uma comoção tão grande – talvez algumas campanhas contra a fome, já há 30, 40 anos atrás, em momentos de seca específicos.
Acho que houve uma reação que era até esperada, considerando o tamanho do problema e do choque que a gente passou. Evidentemente, eu sou muito cético quanto à possibilidade de simplesmente uma solidariedade privada levar a gente muito longe. Para pessoas em situação desesperadora, é óbvio que não importa de onde está vindo a ajuda, importa que ela chegue. Mas pensando do ponto de vista de política pública, o mais relevante é como catalisar essa solidariedade em um movimento mais amplo, que permita políticas que tentem resolver o problema de forma mais permanente. E pra isso é preciso ter não só esses movimentos iniciais de solidariedade, mas uma organização maior, com poder de pressão no próprio Parlamento.
Acho que existem embriões disso. Dá pra ser um pouquinho otimista no sentido de que tem vários movimentos organizados, principalmente de camadas populares, camadas intermediárias, de vários tipos, tentando pressionar o Congresso e o governo para termos algumas reformas, algumas mudanças que possam se tornar mais permanentes para a população.
A pandemia tem o potencial de mudar as relações sociais entre as várias realidades brasileiras?
Mariana Miggiolaro Chaguri Sim, mas não sei se positiva ou negativamente neste momento. Não sei se vai ser uma relação na qual a desigualdade é ainda mais aprofundada, na medida em que a crise econômica se acentua. A dinâmica e a lógica de interação entre as diversas realidades da desigualdade brasileira pode se tornar ainda mais distante, o abismo social ainda maior.
Em termos estruturais, é possível, portanto, que as diferentes realidades brasileiras se desconectem ainda mais. Que as elites se desconectem das classes médias e que as classes médias se desconectem das camadas mais empobrecidas da população. Então a gente pode vir a ter um quadro onde os dois extremos estão muito desconectados: uma elite que vai se reproduzir e ganhar dinheiro de qualquer maneira, e uma camada da população absolutamente empobrecida, participando muito pouco das instâncias decisivas da reprodução econômica e que também vai se desconectar da dinâmica geral da sociedade.
Talvez o efeito mais imediato e de curto prazo da pandemia seja aprofundar os abismos da desigualdade brasileira, entre as classes e outras formas de desigualdade, os efeitos perversos da desigualdade racial, de gênero, na medida em que penalizações adicionais vão sendo impostas às mulheres, aos negros, aos indígenas e assim por diante.
Pedro Ferreira de Souza Não acredito nisso. Acho que ela pode ter um efeito temporário que pode até ser grande, tem muita gente que de fato está compadecida. Assim como historicamente fizeram algumas outras catástrofes, como guerras, uma pandemia reforça o sentimento coletivo, de que estamos todos juntos, no mesmo barco, o que acontece com o outro me afeta e vice-versa. Mas a tendência é que com o tempo isso vá se dissipando.
Por isso que, se alguns ímpetos e desejos de reforma e de mudança não forem institucionalizados, não virarem programas, projetos, leis, a tendência é isso sumir. Não tenho nenhuma dúvida disso, ainda mais num país como o Brasil, que é muito desigual. Tem um lado dessa desigualdade que é que, em geral, não se convive com pessoas de renda ou de classe muito diferente, ou se convive só como patrão e empregado. A gente tem uma carência de espaços em comum nesse sentido. Então a tendência é desaparecer mesmo. É perder de vista, voltar ao normal.
A [cientista política] Marta Arretche fala muito bem que a gente está num momento que talvez seja uma oportunidade única no sentido de uma boa vontade maior da população. Então talvez seja um momento único para tentar conseguir alguns avanços que podem realmente melhorar o país. Normalmente eu sou muito pessimista, tendo sempre a achar que vai tudo ficar como está, até porque é muito difícil mudar a desigualdade, dar um salto. Esse alto grau de desigualdade do Brasil vai ser muito difícil de ser revertido mesmo no médio e longo prazo. Aludindo ao que a Marta falou, a gente está num momento chave porque talvez seja o momento em que a gente consiga dar um salto.
Além de agravar a desigualdade, a pandemia pode acelerar discussões que já acontecem fora do Brasil como, por exemplo, a taxação de grandes fortunas?
Mariana Miggiolaro Chaguri Acho que esse é o centro do debate político e econômico brasileiro hoje: como é que a gente vai lidar com o efeito mais importante da pandemia do ponto de vista do financiamento do Estado, que é a crise fiscal. Estamos em um momento de profundo esgarçamento da relação entre sociedade e Estado, em que o governo federal investe fortemente contra as bases da sociedade, contra a capacidade que a sociedade tem de se organizar, de estabelecer seus pactos próprios, de participar.
As instâncias de participação foram sendo muito fechadas e tudo isso cobra um preço quando a gente precisa fazer um grande debate como esse, que é um debate de pactuação nacional, da relação entre Estado, sociedade e mercado. Com isso, qualquer tipo de debate, como por exemplo da taxação de grandes fortunas, vai ficando um pouco interditado, um pouco confuso e é difícil qualquer agenda avançar.
Como a gente não tem pacto social nenhum neste momento, parece que qualquer forma de debate mais sustentado, amplo e racional sobre como é que nós vamos financiar o Estado e promover o investimento social no curto, médio e longo prazo está completamente travado, obscurecido por outras questões. E não é só que o governo federal não parece ter um plano, mas nenhum ator neste momento – seja a sociedade civil organizada, seja a elite, atores de mercado ou os próprios governos –, têm condições ou legitimidade para encaminhar o conflito, de oferecer uma saída que seja considerada legítima pelos outros atores em cena. Talvez este seja o dilema da crise brasileira.
Pedro Ferreira de Souza Do ponto de vista da desigualdade, o que a pandemia pode ter acelerado muito – no médio prazo, pelo menos – é algum movimento de expansão da proteção social para uma fatia bem maior da população e, se tudo der certo, que ela seja financiada pelo menos parcialmente por uma reforma tributária, que também torne os impostos mais progressivos.
O Bolsa Família sempre foi um programa excelente, mas já havia uma discussão de que ele poderia transferir mais dinheiro. Veio o auxílio emergencial, que explodiu a transferência de renda, e agora é evidente que a gente não pode voltar ao que era antes, que não faz sentido voltar e que a gente precisa de mais. Essa é uma discussão que foi super acelerada e que eu acho que não vai acabar no médio prazo. O governo vai propor alguma coisa que caiba no orçamento, mas provavelmente vai haver uma pressão para continuar a falar sobre isso e continuar expandindo no médio prazo. A discussão da transferência de renda ganhou um escopo muito maior, no sentido de que a gente tem que atender mais gente e dar mais dinheiro.
E, como isso também vai exigir recursos, a discussão de reforma tributária fica mais evidente. São dois lados que estão mais maduros, porque também a pandemia não faz nada surgir do zero, ela acaba amadurecendo coisas que já estavam sendo discutidas em algum grau. As mudanças no imposto de renda também amadureceram muito graças à pandemia, mais do que o tributo para grandes fortunas, que é uma coisa complicada porque não é fácil avaliar o valor do patrimônio das pessoas e não há muitas experiências internacionais encorajadoras. Por isso, acho que o imposto de renda acaba sendo o próximo da fila.
O que já publicamos
Produzido por Juliana Domingos de Lima
Arte por Guilherme Falcão
Desenvolvimento por Thiago Quadros
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