100 mil mortes no Brasil: o cálculo de uma tragédia

ESPECIAL

O cálculo de uma tragédia

Por Isabela Cruz
em 05 de set de 2020

BRASIL

100.000

O Brasil atingiu a marca de 100 mil mortos pelo novo coronavírus em 8 de agosto de 2020. Publicada semanalmente, esta série do ‘Nexo’ em cinco capítulos aborda os aspectos sanitários, econômicos, políticos e sociais de um tempo que mistura cálculo e incerteza

capítulo 5

Quem se responsabiliza

Alastrado globalmente a partir de Wuhan, na China, o novo coronavírus parou o mundo, mas também movimentou muitas engrenagens sociais e econômicas, a partir dos mais variados cálculos políticos. Enquanto a comunidade científica correu para estabelecer métodos de prevenção e protocolos de tratamento, assim como para encontrar remédios e vacinas contra a covid-19, a classe política teve que definir estratégias do que fazer na saúde e na economia.

Foto: Mike Segar/Reuters

Em primeiro plano, homem caminha sozinho sobre uma faixa de pedestres na Times Square. A rua se estende, sem carros e pessoas, com prédios e mais prédios com telões luminosos e cheios de outdoors digitais

Times Square, em Nova York, vazia

FOTO: POOL New/reuters

Representantes na sala de conferência observam monitores. Teto colorido

REPRESENTANTES DA UNIÃO EUROPEIA, EM BRUXELAS, FAZEM VIDEOCONFERÊNCIA COM EUA

Diante da complexidade de uma das mais graves crises de saúde pública da história contemporânea, a simples dicotomia saúde versus economia não se sustentou. Governos tiveram que rapidamente implementar medidas para a contenção do vírus, garantir recursos para compensar a paralisação econômica e estabelecer prioridades de políticas públicas. E, no meio disso tudo, pensar em como preservar ou aumentar seu capital político para futuras eleições.

O resultado dessa equação variou muito de país para país, e a comparação internacional tem servido como um parâmetro para a avaliação do que foi feito e do que foi negligenciado pelos políticos de cada nação. Na Itália, por exemplo, houve uma onda de ações coletivas para responsabilizar políticos e agentes da área da saúde pela gestão da crise, que, segundo centenas de relatos, teria sido negligente e cruel com os pacientes e suas famílias.

FOTO: Denis Balibouse/reuters

Ghebreyesus em frente a painel da OMS, em fotografia com efeito vermelho

Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, durante coletiva de imprensa em Genebra, na Suíça

A própria OMS (Organização Mundial da Saúde) também foi pressionada a se submeter a uma auditoria independente sobre seus processos de tomada de decisão frente ao surgimento do novo coronavírus na China. A agência é acusada pelos Estados Unidos e outros países de complacência com as autoridades chinesas. O país asiático, por sua vez, foi acusado de negligenciar alertas iniciais de que o mundo estava diante de um dos maiores desafios sanitários do século.  

O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, já anunciou a composição da comissão que realizará o inquérito. Ele também afirmou que a apuração abrangerá não apenas as ações da organização, mas a adesão dos governos nacionais às recomendações da agência.

O cálculo político de presidente e governadores

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, que pretende se candidatar à reeleição em 2022, busca se eximir de qualquer responsabilidade pelo desempenho do país no combate à covid-19. Para isso, estrutura sua narrativa a partir de quatro ideias centrais, que se complementam à medida que a anterior se esgota: 

  1. Negacionismo quanto à gravidade da pandemia, já chamada pelo presidente de “gripezinha”;

  2. Inevitabilidade das mortes e de alastramento do vírus: “é como uma chuva, vai atingir você”;

  3. Pretensa atribuição exclusiva de prefeitos e governadores no enfrentamento da crise sanitária;

  4. A não-necessidade de paralisação econômica, dada a suposta existência da cura para a doença.

A primeira ideia (negacionismo), que ignora a facilidade de transmissão do vírus, sua taxa de mortalidade e mesmo a possibilidade de sequelas mais duradouras da doença, foi colocada em prática diversas vezes. Por exemplo, quando o presidente participou de manifestações políticas, provocou aglomerações com seus passeios por Brasília, apertou as mãos de apoiadores mesmo com a suspeita de estar infectado e se recusou a usar máscara.

Bolsonaro considerou o desrespeito a medidas de contenção, como o isolamento social, um exercício de liberdade por parte da população. Chegou a dizer que os governadores e prefeitos queriam instalar uma ditadura com suas quarentenas. O mesmo discurso apareceu em relação à futura vacina contra a covid-19. “Ninguém é obrigado a tomar vacina”, disse o presidente, apesar de uma lei aprovada pelo Congresso e sancionada por ele mesmo estabelecer que o poder público pode determinar a realização compulsória da vacinação e de outros tratamentos para o enfrentamento da emergência de saúde pública.

FOTO: Ueslei Marcelino /reuters

Bolsonaro em contra-luz ocupa a parte esquerda do quadro

O presidente Jair Bolsonaro chega à cerimônia de posse de André Mendonça no cargo de ministro da Justiça

A segunda ideia (fatalismo), que desconsidera os resultados melhores de outros países na contenção do vírus, concretizou-se não apenas nas declarações de Bolsonaro, mas também em seus vetos (depois derrubados pelo Congresso) a leis que os parlamentares aprovaram. O presidente foi no caminho contrário em medidas tanto para garantir recursos ao combate da pandemia entre indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais, quanto para tornar obrigatório o uso de máscara em presídios, templos religiosos e outros estabelecimentos.

“E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”

Jair Bolsonaro, presidente da República, ao ser perguntado sobre o número de mortes no país, no dia 28 de abril de 2020

No início de setembro, o país contabilizava cerca de 125 mil mortos, o que o fica atrás apenas dos Estados Unidos em termos de perdas humanas durante a pandemia. O número, segundo o painel da universidade americana Johns Hopkins, é quase o dobro do verificado na Índia, que, com uma população cerca de seis vezes maior do que o Brasil, está em terceiro lugar no ranking da tragédia.

A terceira ideia (impossibilidade de agir), que busca atribuir exclusivamente a governadores e prefeitos a obrigação de resolver a crise sanitária, parte de uma interpretação distorcida de uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Em abril, os ministros definiram que, pela Constituição, estados e municípios têm poder de impor medidas sanitárias que considerarem necessárias em seu território e não podem ser desautorizados pelo governo federal.

A decisão, no entanto, não isentou o governo da responsabilidade de promover políticas nacionais para o enfrentamento da crise sanitária. Na Colômbia e no Paraguai, por exemplo, a coordenação nacional das compras de remédios e equipamentos hospitalares garantiu ganhos de escala e maior transparência às ações do poder público.

Por fim, a quarta ideia (existência da cura), que busca amparar a volta à normalidade, transforma a cloroquina e seu derivado hidroxicloroquina — remédios que não têm o aval de estudos criteriosos para o tratamento da covid-19 — na maior proposta do presidente para o enfrentamento da pandemia na área sanitária.

FOTO: Adriano Machado/reuters

Bolsonaro está no centro da imagem, com outros homens de terno ao seu redor. Ele caminha e olha à frente. Todos estão de máscaras cirúrgicas

Bolsonaro caminha até o Palácio do Planalto após encontro com Dias Toffoli no Supremo, acompanhado de ministros e empresários

A insistência quanto à falta de necessidade de um amplo isolamento social e quanto à salvação trazida pela cloroquina foi responsável pela demissão dos médicos e então ministros Henrique Mandetta e Nelson Teich do Ministério da Saúde. Uma pasta que passou a ser comandada interinamente por um general sem experiência na área, Eduardo Pazuello. A defesa da cloroquina não se limitou a declarações. O remédio passou a ser promovido oficialmente pelo Ministério da Saúde e teve a fabricação pelo Exército ampliada.

“Ele [o presidente Bolsonaro] quer ter um medicamento para as pessoas sentirem confiança, para retomar a economia”

Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, em entrevista ao jornal Correio Braziliense, publicada em 15 de maio de 2020

No âmbito econômico, houve amparo à população por meio do auxílio emergencial, apesar da hesitação do governo. Segundo analistas, o benefício a trabalhadores informais e autônomos de baixa renda, cujo valor de R$ 600 foi definido pelo Congresso, foi essencial para dar assistência aos mais pobres. E acabou se transformando em um dos grandes responsáveis pela recuperação da popularidade de Bolsonaro. Depois, o governo anunciou a extensão do pagamento do auxílio até o fim de 2020, num valor menor, de R$ 300. Os benefícios sociais entraram então no radar do Palácio do Planalto com vistas à reeleição em 2022.

Nos estados, que viam de perto a falta de leitos nos hospitais e o aumento exponencial do número de mortes, a tendência dos governadores nos primeiros meses da pandemia foi seguir as orientações da OMS em defesa do isolamento social e decretar o fechamento provisório das atividades consideradas não essenciais. 

No Ceará, Camilo Santana (PT) decretou lockdown, esquema mais restritivo de circulação, na capital, Fortaleza. No estado de São Paulo, João Doria (PSDB) determinou o fechamento do comércio, mas não interferiu nos deslocamentos. No geral, as ações dos governadores foram bem avaliadas pela maior parte da população, e os políticos viram sua popularidade crescer nas primeiras semanas das quarentenas.

Muitos aproveitaram a oportunidade para se mostrarem ao eleitorado como contrapontos à falta de liderança e ao anticientificismo do presidente da República. Doria, que tem pretensões presidenciais, passou a antagonizar com Bolsonaro, mesmo tendo sido eleito na onda de extrema direita que levou Bolsonaro ao Palácio do Planalto.

Mas a implementação das quarentenas encontrou obstáculos. A começar pela resistência de lideranças religiosas e de empresários, que buscavam, inclusive judicialmente, licenças para não precisarem cumprir a quarentena. Apoiadores do presidente também fizeram protestos contra as medidas de isolamento social.

FOTO: Amanda Perobelli/reuters

Homens e mulheres, ajoelhados, fazem oração. Mulher segura a bandeira do Brasil

Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro protestam contra as medidas sanitárias decretadas em São Paulo

Outra dificuldade de implementação do distanciamento social, essa não resolvida, foi a própria estrutura socioeconômica do país. Exercendo trabalhos que não permitem a atuação remota (o chamado home office) e dividindo habitações com várias outras pessoas, grande parte da população brasileira não conseguiu aderir à política de isolamento social definida pelos governadores e prefeitos.

Em maio, os governadores começaram a relaxar as medidas de distanciamento social, mesmo com o problema sanitário ainda descontrolado — no geral, estabilizado num nível muito alto de mortes. Foi uma vitória de setores empresariais que, apoiados pelo governo federal, pressionaram pela retomada das atividades econômicas.

Agravando o descontrole das contaminações, diversos prefeitos passaram a autorizar a reabertura econômica mesmo sem os critérios estabelecidos pelos planos estaduais de retomada. Em São Paulo, por exemplo, o Ministério Público estadual acionou judicialmente dezenas de prefeitos por causa da antecipação do relaxamento.

“Mandei fazer o decreto, que no dia 9 [de julho] [o comércio] abre, morra quem morrer

Fernando Gomes (PTC), prefeito de Itabuna, na Bahia, em vídeo

Também em São Paulo, prefeitos fazem cálculos políticos para a volta às aulas presenciais. Com a proximidade das eleições municipais, que acontecem em novembro de 2020, eles têm realizado pesquisas de opinião para saber como o eleitorado avalia a retomada.

Cálculos feitos, quem responde pelo resultado?

As primeiras consequências políticas diante das estratégias adotadas durante a pandemia podem chegar nas eleições municipais. Os cargos de governadores e o de presidente estarão em disputa somente em 2022, mas a associação a essas lideranças costuma ser fator importante para o sucesso ou a derrota dos candidatos às prefeituras e câmaras de vereadores.

No campo jurídico, por sua vez, há tentativas de responsabilização. Desde o início da pandemia, diversos pedidos chegaram à Procuradoria-Geral da República, comandada por Augusto Aras, para que Bolsonaro fosse investigado e processado judicialmente, por ações e omissões relativas à crise, em prejuízo da saúde pública.

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”

Constituição Federal, artigo 196

As primeiras manifestações destacavam o incentivo e a participação do presidente em protestos, assim como seus passeios por Brasília, apesar da proibição de aglomerações decretada pelo governo local. Partidos de oposição, que assinaram algumas das petições, acusavam o presidente de crimes como expor a vida e a saúde de outras pessoas a perigo, infringir medida sanitária destinada a impedir a propagação de doença contagiosa e incitar outras pessoas a cometerem esses crimes.

“Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente: pena – detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave”

Código Penal, artigo 132

“Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: pena – detenção, de um mês a um ano, e multa”

Código Penal, artigo 268

“Incitar, publicamente, a prática de crime: pena – detenção, de três a seis meses, ou multa”

Código Penal, artigo 286

“Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal: pena – detenção, de três meses a um ano, e multa”

Código Penal, artigo 319

Mas os primeiros pedidos acabaram arquivados. O vice-procurador-geral da República, Humberto Jaques de Medeiros, considerou que os protestos políticos – dos quais Bolsonaro participou – não haviam sido proibidos pelo decreto do governo brasiliense que determinou as quarentenas. Também disse que a configuração do crime de perigo para a vida ou a saúde alheia “depende fundamentalmente da prova de que o autor do fato está infectado”, e que esse não era o caso de Bolsonaro nos meses iniciais da pandemia. À época, o presidente havia tido contato com pessoas infectadas, mas se recusava a apresentar publicamente seus testes para a covid-19. 

FOTO: Adriano Machado/reuters

O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores na porta do Palácio do Planalto em manifestação

O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores na porta do Palácio do Planalto em manifestação

Depois disso, outros pedidos contra Bolsonaro foram apresentados à Procuradoria-Geral da República. As petições ressaltam a continuidade da atitude negacionista do presidente e os efeitos disso sobre o comportamento da população. “Sem dúvida alguma, o comportamento do presidente Jair Messias Bolsonaro [...] coloca em risco a vida da população, uma vez que frustra os esforços das autoridades de saúde para conscientizar a população sobre os riscos da pandemia e a necessidade de se proteger”, diz, por exemplo, uma notícia-crime do PSOL.

Augusto Aras considera que o discurso de Bolsonaro sobre a gravidade da pandemia e a necessidade das medidas sanitárias é protegido pelo direito de liberdade de expressão. No final de março, depois que o presidente fez um discurso televisivo contra o isolamento social, Aras descartou a possibilidade de atuação do Ministério Público contra o negacionismo presidencial. “Os chefes dos Poderes Executivos em todas as esferas (federal, estadual e municipal) não subordinam suas opiniões a organismos externos, principalmente considerada a dinâmica do avanço da epidemia de doença nova”, disse o procurador-geral. 

Além do âmbito penal, as ações do presidente também estão sendo questionadas na esfera cível. Uma das ações pede investigações do Ministério Público Federal contra decisões como a demissão de dois ministros da Saúde em meio à pandemia, para fazer prevalecer estratégias anticientíficas de combate à crise sanitária. Uma outra busca a condenação de Bolsonaro por improbidade administrativa, pela ordem para que o Exército aumentasse a produção da cloroquina, sem haver comprovação científica da eficácia do remédio para o tratamento da covid-19. Essa tende a ser rejeitada, porque o Supremo entende que a Lei de Improbidade não se aplica a agentes políticos que podem sofrer impeachment, como é o caso do presidente.

“O presidente da República tem o dever pessoal de coordenar, em último grau, as autoridades a ele subordinadas nas ações de proteção da saúde da população, ações essas que são um dever da União para garantir os direitos sociais à saúde, nos termos da Constituição. Atitudes ou omissões intencionais e comprovadas do presidente podem levar à sua responsabilização”

Carlos Ari Sundfeld, professor de direito administrativo da FGV Direito SP, ao Nexo, em 10 de julho de 2020

No âmbito político-jurídico, relacionado a crimes de responsabilidade (que são diferentes dos crimes comuns que constam no Código Penal), a Câmara dos Deputados recebeu cerca de 50 pedidos de impeachment contra o presidente até meados de agosto. Apenas um foi apreciado e acabou arquivado. Do total, 20 se referem total ou parcialmente à pandemia. Entre os motivos para a destituição, os pedidos afirmam que o presidente cometeu crimes de racismo por “práticas genocidas” do governo durante a pandemia, desrespeitou as diretrizes científicas para o enfrentamento da crise sanitária, escondeu o número total de mortes e estimulou “erro no comportamento da população” quanto ao combate ao novo coronavírus. Também falam da postura “indecorosa” e “irresponsável” de Bolsonaro perante a emergência de saúde pública. 

FOTO: Adriano Machado/reuters

Rodrigo Maia de frente e Jair Bolsonaro de costaso

Rodrigo Maia e Jair Bolsonaro, na cerimônia de posse do ministro do Desenvolvimento Regional

Mas é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), quem decide se colocará a abertura de processo de impeachment em votação no plenário ou não. E, para ele, não havia motivos que justificassem a destituição de Bolsonaro. “O presidente Bolsonaro sabe, que desses [pedidos] que estão colocados, eu não vejo nenhum tipo de crime atribuído ao presidente”, disse Maia em entrevista ao programa Roda Vida, no início de agosto. 

No âmbito internacional, Bolsonaro é alvo de quatro representações no TPI (Tribunal Penal Internacional), organização internacional que julga crimes que toda a comunidade internacional está interessada que sejam punidos, tamanha é a gravidade deles.

Três dessas representações se referem às ações e omissões do presidente brasileiro diante da pandemia e o acusam de crimes contra a humanidade. A mais recente também o acusa de genocídio e reporta ao tribunal, entre outros fatos, os vetos de Bolsonaro à lei sobre o enfrentamento da covid-19 em comunidades indígenas. Os vetos acabaram derrubados pelo Congresso

“Há uma hipótese cada vez mais forte de que a ação de Bolsonaro de inviabilizar políticas públicas de proteção de indígenas constitui genocídio. Portanto ele pode ser responsabilizado individualmente tanto internamente, por crimes de responsabilidade ou por crimes comuns, quanto internacionalmente

Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), ao Nexo, em 10 de julho de 2020

Cabe à procuradoria do TPI decidir se os fatos relatados merecem um exame preliminar (que costuma levar de um a dois anos), o primeiro passo de um longo processo que pode resultar em uma denúncia. Depois, para que o tribunal aceite abrir um processo, é necessário que fique comprovada a inação da Justiça nacional, seja por falta de vontade política ou por incapacidade de investigar e julgar o caso. Também é preciso que os países entreguem os réus à corte.

Para Sylvia Steiner, que foi juíza do TPI, a acusação de genocídio contra a população indígena tem mais chances de motivar um processo no tribunal do que aquelas que se referem à gestão geral do presidente no enfrentamento à pandemia e buscam condená-lo por crime contra a humanidade. Ainda assim, Steiner diz não acreditar que uma denúncia formal venha de fato a ocorrer, pois o tribunal, que recebe centenas de pedidos por ano, tem privilegiado casos de conflitos armados ou ataques violentos. 

Nos âmbitos estadual e municipal, multiplicam-se as investigações que apuram suspeitas de corrupção e outros crimes nos contratos emergenciais. São pessoas que, segundo as suspeitas, aproveitaram-se do estado de calamidade para cometer crimes. No Rio de Janeiro, corre processo de impeachment contra o governador, em razão das contratações da pandemia. Também no Rio de Janeiro e no Pará, as lideranças estaduais já sofrem algum tipo de restrição judicial por conta das investigações sobre suas administrações. Ainda há suspeitas de irregularidades nos estados de Roraima, Bahia, São Paulo, Santa Catarina e no Distrito Federal.

FOTO: Pilar Olivares/reuters

Wilson Witzel, ao púlpito com microfones, gesticula enquanto fala. Ao lado, pilastra do Palácio das Laranjeiras

Wilson Witzel (PSC) fala à imprensa, no dia em que foi afastado do governo do estado pelo Superior Tribunal de Justiça

O governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), foi afastado do cargo no dia 28 de agosto e denunciado por corrupção e lavagem de dinheiro. Ele é acusado de liderar um esquema de desvios em contratos do estado, inclusive na área da saúde. Witzel nega irregularidades e afirma estar sendo perseguido pela Procuradoria-Geral da República, por ser atualmente desafeto de Bolsonaro. No Pará, Helder Barbalho (MDB) teve seus bens bloqueados. Sua administração é investigada por supostas fraudes na compra de ventiladores pulmonares.

O julgamento da história

“A história lá na frente vai nos julgar”. Quem disse a frase foi o próprio presidente Jair Bolsonaro, durante a posse de Nelson Teich no Ministério da Saúde, em 17 de abril. O Nexo levou o tema a dois estudiosos da história brasileira:

  • Gilberto Hochman é doutor em ciência política, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, da Fiocruz, e autor de “The Sanitation of Brazil: Nation, State, and Public Health, 1889-1930”

  • André Mota é doutor em história econômica, professor da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) e coordenador do Museu Histórico da faculdade

Historicamente, governantes brasileiros costumam ser punidos jurídica ou politicamente por suas atitudes durante crises sanitárias?

Gilberto Hochman Historicamente, não há casos de punição jurídica. No campo político, eleitoral, tampouco, porque a saúde pública nunca esteve muito forte na agenda brasileira até pelo menos os anos 1980. Só então, na discussão da redemocratização do país, da Constituição de 1988, do SUS (Sistema Único de Saúde), a saúde ganhou um status de tema central, na política brasileira.

Na Primeira República, durante a pandemia da gripe espanhola [1918-1919], por exemplo, houve processos semelhantes [aos atuais], de negação da pandemia e atraso na condução da resposta. Mas eleições eram marcadas pelo voto de cabresto, pelo forte controle sobre o eleitorado. Além disso, a participação popular era muito baixa, uma vez que analfabetos não podiam votar. Então fica difícil considerar punições [a maus gestores] nessas experiências eleitorais. Quem caía em desgraça eram os funcionários da saúde pública. Oswaldo Cruz teve enorme prestígio, conquistado na luta contra as epidemias no Rio de Janeiro, mas Carlos Seidl, por exemplo, um médico renomado, perdeu o posto por conta da resposta à gripe espanhola. 

É interessante pensar como políticos sobrevivem, e o desprestígio fica com aqueles que tentaram combater, ainda que de forma errática ou ineficiente, o problema sanitário. 

No período democrático seguinte [1945-1964], após o Estado Novo [ditadura de Getúlio Vargas], a saúde pública nunca foi exatamente um tema central para o processo eleitoral. Apenas Juscelino Kubitschek, único médico que foi presidente da República no Brasil, lançou em 1955 um programa de saúde, com atenção especial às endemias rurais, ao interior do Brasil, e às novas questões sanitárias que emergiam com o processo de industrialização e urbanização dos anos 1950.

O governo militar, por sua vez, empreendeu uma campanha importante contra a varíola, erradicando a doença no Brasil entre 1966 e 1973. Mas em tempos de imensa repressão política e censura, isso foi muito pouco discutido e divulgado. Por outro lado, entre 1971 e 1974, houve a eclosão de uma epidemia de meningite meningocócica. No entanto, por se tratar de um regime militar, não houve punição pelo fracasso e pela inação do governo em relação à meningite. Ao contrário, houve censura à imprensa. Isso só foi começar a ser bem noticiado a partir de 1964, já no governo [Ernesto] Geisel.

André Mota Historicamente, não [há punições]. As crises sanitárias são sempre movidas por forças científicas, políticas, sociais e culturais, num nível de complexidade que sempre deixa de responsabilizar pessoalmente governantes sobre ações que poderiam ter sido feitas e não foram realizadas a contento. 

Durante a epidemia de meningite nos anos de 1970, por exemplo, as autoridades políticas proibiram que fossem divulgados os dados sobre a epidemia, deixando que muitos morressem sem informação sobre o que estava acontecendo. E não houve uma responsabilização direta sobre isso, mesmo porque a Constituição da época não atribuía ao Estado nenhuma responsabilidade na questão da saúde. Isso muda só com a Constituição de 1988 e a criação do SUS [Sistema Único de Saúde]. Ou seja, mesmo havendo quase sempre uma pressão política diante das calamidades, essa responsabilização nunca se deu historicamente.

Como um estudioso do tema que está vivendo esse momento, que aspectos considera imprescindíveis às futuras interpretações historiográficas sobre a pandemia e a responsabilidade dos governantes?

Gilberto Hochman Podemos falar de três questões que marcam esse período e que certamente são e serão motivos de análise de cientistas sociais e historiadores. A primeira é o tema do negacionismo e do descrédito da ciência. É um tema importante nos estudos sociais da ciência. Vemos uma onda global de negacionismo, de antivacinismo, de negação da mudança climática. Então um papel importante dos historiadores e cientistas sociais para pensarem essa pandemia será, e já tem sido, o de analisar os interesses que estão por trás das teorias negacionistas e anticientificistas, dos “mercadores da dúvida”, como diz a historiadora americana Naomi Oreskes.  

Outra questão para ser pensada mais adiante envolve a questão federativa, o papel do governo federal na articulação de respostas a emergências sanitárias e a manutenção do Sistema Único de Saúde, que é um virtuoso mecanismo integrador do país. Na epidemia de 1918-1919, de gripe espanhola, a questão central era que os estados, os entes federativos, à exceção de São Paulo, não tinham capacidade de produzir políticas e ações emergenciais. E foi a ação do governo federal, ainda que tardiamente, que permitiu uma resposta, nos limites dos conhecimentos técnico-científicos da época, à epidemia no Brasil. 

Em 2020, os sinais parecem ser invertidos. Na completa ausência de ação vigorosa, coordenada e consistente do governo federal no combate à covid-19, na quase ausência de política do Executivo (além do negacionismo quanto à ciência, há também uma negação da política pública), são os entes subnacionais, os estados e municípios, que buscaram responder, de maneira mais cooperativa, a esse problema. Os dilemas de coordenação, de interdependência sanitária na resposta a uma pandemia são recolocados para o sistema político como um todo. 

A terceira questão nessa agenda de reflexão é a coordenação global. O nacionalismo exacerbado em alguns países tem dado base a um ataque ao multilateralismo e a uma tentativa de se erodir a credibilidade das organizações internacionais, como a OMS [Organização Mundial da Saúde]. Mas são essas as únicas estruturas que, apesar das falhas e dos problemas financeiros e políticos, são capazes de, numa emergência global, coordenar globalmente ações, informações e recursos entre países de rendas desiguais. Em maio de 2020, por exemplo, comemoramos os 40 anos da erradicação no mundo da varíola, doença que matou milhões ao longo de séculos. Isso aconteceu sob a coordenação da OMS, pela via da vacina. 

André Mota A responsabilização histórica não pode ser apenas social, como se a população devesse ser culpabilizada — ideia que se constrói quando falamos em grupos ou comportamentos de risco. Nesse sentido, um eixo de interpretação fundamental é o da vulnerabilidade no campo da saúde. A vulnerabilidade de grupos sociais traduz a própria ideia de cidadania presente na sociedade àquele momento. 

Para isso, é necessário que se compreendam as instâncias individuais e sociais, mas sobretudo as programática-institucionais do enfrentamento à epidemia. Afinal, é a dimensão política que desenha o caminho em que as crises sanitárias caminham, especialmente no que se refere às camadas mais vulneráveis da população. 

Nesse sentido, a responsabilização deve se dar em vários âmbitos, mas não pode excluir a avaliação das ações governamentais. Isto é, deve analisar que ações os governantes tomaram no sentido de minimizar ao máximo possível os riscos que atingem a população, tanto em termos de saúde quanto em termos de assistência social, trabalho, etc. A realidade está, mais uma vez, a nos chamar a atenção para a importância do comportamento de governantes frente a momentos que exigem verdadeiras lideranças de Estado. Caberá à sociedade construir novos parâmetros de compreensão e responsabilização. Se o fará, não sabemos ao certo.

Produzido por Isabela Cruz

Arte por Guilherme Falcão

Desenvolvimento por Thiago Quadros

©2020 Nexo Jornal