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ESPECIAL

500 mil mortos na pandemia: por que poderia ser diferente

Por Mariana Vick, Lucas Gomes, Gabriel Maia, Thiago Quadros e Isabela Cruz
em 19 de jun de 2021

Brasil atinge marca após um ano e três meses da crise que abalou o mundo, mas foi especialmente letal onde isolamento social, realização de testes, uso de máscaras, compra de vacinas e comunicação oficial foram conduzidos de forma desastrosa

O Brasil atingiu 500 mil mortes pela covid-19 após um ano e três meses do início da pior crise sanitária mundial em um século. É o segundo país que mais registrou vidas perdidas na pandemia, decretada oficialmente pela Organização Mundial de Saúde em março de 2020. Isso apesar de ser apenas o sexto país no ranking populacional. É um dos países mais mal avaliados no combate à doença causada pelo novo coronavírus. E essa não é uma avaliação subjetiva. Os números comprovam a tragédia nacional.

Os brasileiros viveram momentos angustiantes até atingirem a marca de meio milhão de óbitos, com pessoas sufocando por falta de oxigênio em hospitais e sucumbindo nas filas de UTIs. Diferentemente de outros países, onde as contaminações explodiram em ondas, o Brasil nunca registrou uma queda significativa de casos e mortes. Viveu apenas momentos menos ou mais intensos, sem nunca controlar a pandemia. Em junho de 2021, por exemplo, enfrenta um novo agravamento da crise. 


Diante de um líder negacionista, o Nexo já mostrou como o cálculo político pautou a condução federal da crise sanitária. Também já mostrou como as atitudes do presidente Jair Bolsonaro e de seu governo se transformaram numa política mortal. Agora, enquanto a CPI da Covid no Senado busca elementos para responsabilizar culpados pelo desastre sanitário nacional, o Nexo aponta o que poderia ter sido feito de diferente neste período que une sentimentos de dor, luto e indignação.

Policial observa morador com máscara num dos pontos de acesso a Hubei

Thomas Peter / Reuters

Isolamento social: uma medida custosa, mas essencial

Com o anúncio de que um novo vírus que acessava o organismo humano pelo sistema respiratório havia sido identificado na China, em dezembro de 2019, a comunidade científica recomendou a adoção do distanciamento social e de restrições de circulação. 

A lógica era simples: reduzir as chances de contágio, que ocorre quando as pessoas ficam próximas e se potencializa em aglomerações. A medida também era uma forma de evitar que um número muito elevado de doentes pressionasse os sistemas de saúde.

Em Hubei, província chinesa onde o vírus foi identificado pela primeira vez, cerca de 56 milhões de pessoas entraram em quarentena em 23 de janeiro de 2020, com bloqueio de aeroportos, trens e rodovias e saídas apenas para atividades essenciais. O governo viria a flexibilizar as restrições pouco mais de dois meses depois.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) também recomendou o distanciamento como medida de saúde pública no início da crise. Quando declarou a covid-19 uma emergência de saúde global, no fim de janeiro de 2020, defendeu essa e ações como o rastreamento de casos para impedir que o vírus se espalhasse. Quando decretou estado de pandemia, em março, reiterou a recomendação.

Por que é importante

Modo de transmissão

Agente que causa a covid-19, o novo coronavírus é transmitido de duas formas: pelo ar e pelo contato de secreções de pessoas contaminadas (como a saliva expelida na fala, no espirro ou na tosse). Com medidas que promovem o distanciamento social, evita-se que as pessoas infectadas espalhem a doença.

Casos sem sintomas

Mas não basta isolar apenas as pessoas que comprovadamente têm covid-19. O novo coronavírus pode ser transmitido mesmo quando alguém infectado não manifesta sintomas — são os chamados assintomáticos ou pré-sintomáticos. Nesse caso, é prudente que ações de prevenção sejam generalizadas.

O que aconteceu no Brasil

Adotado em grande parte dos países à medida que os casos de covid-19 cresceram, o isolamento não fez parte da resposta do governo federal à pandemia. Embora recomendadas pelo Ministério da Saúde no início da crise, medidas de restrição foram desprezadas pelo presidente Jair Bolsonaro, que buscou boicotá-las. 

Desde a chegada da covid-19 ao país, em fevereiro de 2020, Bolsonaro critica o distanciamento social por vê-lo como entrave à economia. Quando governos locais o adotaram, o presidente buscou impedi-los. Defendeu em seu lugar medidas ineficazes contra a covid-19, como o tratamento com cloroquina. Até incluiu o remédio em políticas públicas, gastando dinheiro em algo que comprovadamente não funciona.

“É essa a preocupação que eu tenho. Se a economia afundar, afunda o Brasil. Se afundar a economia, acaba com meu governo. É uma luta de poder”

Jair Bolsonaro, presidente da República, em entrevista em março de 2020

O comportamento de Bolsonaro foi marcado pelo negacionismo da gravidade da covid-19, que o presidente chamou de “gripezinha”. É uma atitude que traz um cálculo político claro: priorizar a economia em vez da saúde da população. Integrantes da CPI da Covid afirmam que Bolsonaro apostou claramente na imunidade de rebanho: deixar a população se contaminar rapidamente para que adquirisse anticorpos. O problema dessa estratégia é que muitas pessoas morrem. O presidente pouco se sensibilizou com a tragédia em curso no país. E manteve o discurso segundo o qual “a vida continua”.

“Tudo agora é pandemia. Tem que acabar com esse negócio. Lamento os mortos, todos nós vamos morrer um dia. Não adianta fugir disso, fugir da realidade, tem que deixar de ser um país de maricas”

Jair Bolsonaro, presidente da República, em evento em novembro de 2020

Adotadas por governos locais em março de 2020, as medidas de restrição ganharam adesão no início da crise, mas perderam fôlego em poucos meses. Empresários e comerciantes mantêm uma pressão constante contra o fechamento de atividades. Nesse contexto, diferentes locais do país vivem um vaivém de medidas que abrem e fecham a economia, conforme varia a pressão da covid-19 sobre os hospitais.

A situação criou um cenário trágico nos hospitais brasileiros. Estados como o Amazonas viveram colapsos seguidos em seus sistemas de saúde. O país viveu em abril de 2021 seu pior mês da pandemia, com quase 68 mil vidas perdidas em 30 dias.

O que poderia ter sido diferente

Especialistas ouvidos pelo Nexo afirmam que o principal erro do governo federal na condução das medidas contra a covid-19 foi não ter assumido a coordenação da resposta nacional à crise. Sem diretrizes para eventuais medidas de isolamento, estados e municípios ficaram à deriva.

“É importante estabelecer comando único para criar essas medidas”, disse ao Nexo Raphael Guimarães, pesquisador do Observatório Covid-19 da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), ligada ao Ministério da Saúde. Ele afirmou que o pacto federativo em torno do SUS (Sistema Único de Saúde) atribui ao governo federal a tarefa de definir as regras em situações como a atual. 

“É preciso a mesma linha de ataque. Não adianta os prefeitos serem favoráveis a medidas restritivas enquanto o presidente estimula aglomeração. [Essa diferença de estratégias] é um desserviço. As pessoas ficam inseguras e confusas sobre qual é a mensagem passada”

Raphael Guimarães, pesquisador do Observatório Covid-19 da Fiocruz, em entrevista ao Nexo

Para conduzir essa tarefa, o governo federal deveria ter também criado um comitê científico para tratar da covid-19 — o que fez apenas em 2021 —, segundo Marcia Castro, professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, nos EUA.

Caso respeitasse o consenso científico sobre epidemias e divulgasse informações corretas sobre a prevenção contra o novo coronavírus, “não teríamos a situação de hoje”, em que “as pessoas decidem seguir ou não as medidas de saúde com base em alianças políticas”. 

Mas que tipo de isolamento o país poderia fazer, considerando suas dimensões continentais? Guimarães afirmou que o governo poderia criar um plano que considerasse as diferenças de região. “Nem todos os lugares adotariam [as medidas] da mesma forma, mas todos poderiam incentivar o distanciamento”, disse.

Para Castro, a prevenção contra a covid-19 também deve considerar as desigualdades. Em um país com mais de 39 milhões de trabalhadores informais, o isolamento deve ser seguido de políticas de transferência de renda, como o auxílio emergencial. O auxílio, porém, deveria ser mais robusto que o atual, segundo a professora.

R$ 600

mensais foi o valor do auxílio emergencial entre abril e agosto de 2020; o valor caiu para R$ 300 entre setembro e dezembro de 2020; o benefício foi interrompido entre janeiro e março de 2021; acabou retomado em abril, com valores que vão de R$ 150 a R$ 375 mensais

“Como fazer isolamento? Primeiro, precisaríamos de um lockdown de verdade, que não foi feito”, disse Castro. Ela citou exceções como Araraquara, no interior paulista, que enfrentou uma alta de casos com lockdown em 2021. “Com isolamento incompleto, as medidas levam muito tempo para gerar efeito. Poderíamos sair mais cedo [da pandemia] com ações bem feitas.”

Lockdowns curtos e eficazes também podem amenizar os efeitos da pandemia sobre a economia, segundo Guimarães. “Falar que não podemos ter distanciamento por causa da economia é uma falácia”, disse. “Lugares que investiram em prevenção não tiveram a economia tão prejudicada como o Brasil.” 

Outras medidas que o país poderia ter seguido para evitar a repetição de medidas de restrição são a testagem e o rastreamento de casos, segundo Castro. “Poderíamos aumentar os testes, visitar famílias e ter ações ativas para captar o aumento da transmissão. Hoje nossa ação não é ativa: é reativa”, disse.

Unidade drive-thru de teste do novo coronavírus na Coreia do Sul

Kim Kyung Hoon / Reuters

Realização de testes: os dados cruciais para agir

Cientistas recomendam o uso de testes para conter a covid-19 desde que o vírus deixou o foco de Hubei, ainda no início de 2020. Associada ao isolamento social, a testagem em massa foi apontada como uma medida eficaz para descobrir os focos da doença e tomar decisões bem informadas. 

A Coreia do Sul, que registrou os primeiros casos do novo coronavírus em janeiro de 2020, tornou-se exemplo para outros países no início da crise quando conseguiu rastrear focos da covid-19 com uso massivo e continuado de testes, sem isolar regiões inteiras, como fizeram outros países na mesma época.

A OMS também recomenda a testagem — seguida de isolamento das pessoas doentes, rastreamento de seus contatos e quarentenas — desde o início da crise. Cinco dias depois de decretar pandemia, em 11 de março de 2020, o diretor-geral da agência da ONU fez a seguinte declaração:

“Teste, teste, teste. Teste todo caso suspeito. Se for positivo, isole e descubra de quem ele esteve próximo. Não se consegue combater um incêndio com os olhos vendados. Você não consegue parar essa pandemia se não souber quem está infectado”

Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS (Organização Mundial da Saúde), em declaração em 16 de março de 2020

O que aconteceu no Brasil

O Brasil nunca colocou em prática de modo organizado a estratégia indicada pelas agências de saúde. Atrás de vizinhos como Argentina, Chile e Uruguai, o país é um dos lugares que menos fazem testes em comparação com o tamanho de sua população, segundo o site Our World in Data.

Com problemas na importação de insumos para testes do tipo PCR, considerados mais confiáveis, e de logística para analisar as amostras em laboratório, o país teve dificuldade de monitorar a covid-19, e gestores tomaram decisões no escuro sobre medidas como a flexibilização de quarentenas.

6,8 milhões

de testes RT-PCR venceram em um armazém do governo federal em Guarulhos (SP) no fim de 2020; governo atribuiu a responsabilidade a governos estaduais e municipais

Sem estratégia pública de testagem no país, tornou-se comum o uso individual dos testes, que podem ser feitos em farmácias e outros locais, mas pelo custo alto são pouco acessíveis. Como consequência, os números da covid-19 no Brasil são certamente maiores que o registrado, segundo cientistas. 

O que poderia ter sido diferente

“O beabá do controle de doenças infecciosas é testagem, rastreamento e isolamento. É assim que se impede a transmissão. Quando descobrimos que alguém está infectado, evitamos que ele passe a doença. Mas o país não fez esse beabá”, disse ao Nexo Pedro Hallal, epidemiologista e professor da UFPel (Universidade Federal de Pelotas).

Coordenador do estudo Epicovid, que testou moradores de 133 cidades para mapear o contágio do novo coronavírus pelo país, ele afirma que o governo federal não usou a estrutura do SUS para responder à pandemia e “adotou um modelo clínico de enfrentamento”, em vez de observar a população.

“O país se preocupou em abrir mais leitos de hospitais, comprar respiradores, comprar oxigênio — e mesmo assim errou com isso —, garantir que tivesse kit intubação, entre outros. Não nos preocupamos em prevenir a covid-19, evitar a circulação do vírus e impedir que as pessoas ficassem doentes”

Pedro Hallal, epidemiologista e professor da UFPel (Universidade Federal de Pelotas), em entrevista ao Nexo

Pesquisadora do Ieps (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde), Jéssica Remédios afirmou que no caso da testagem também faltou coordenação nacional e planejamento. “Usamos os testes em casos graves e de hospitalização. Com isso, não conseguimos refletir sobre o que fazer para conter a transmissão”, disse ao Nexo

O país também poderia ter investido na busca ativa de casos de covid-19, segundo ela. Programas de atenção básica, como a Estratégia de Saúde da Família, têm agentes comunitários espalhados por todo o país que poderiam ter sido usados para entender a dinâmica da transmissão, principalmente em áreas vulneráveis.

“É na atenção básica que estão as ações de vigilância comunitária e epidemiológica. A busca ativa [de casos de covid-19] poderia ter se voltado para profissionais de serviços essenciais que precisavam ser testados regularmente, já que não poderiam se isolar por causa da profissão”

Jéssica Remédios, pesquisadora de políticas públicas do Ieps (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde), em entrevista ao Nexo

Entre 2020 e 2021, o governo federal liberou recursos para a atenção primária, que segundo o Executivo também contribuíram para o enfrentamento da covid-19. Para Remédios, porém, o problema é que não houve diretriz para que os agentes comunitários pudessem se antecipar à doença. 

Casos como o dos 6,8 milhões de testes que encalharam em um armazém em Guarulhos (SP) também mostram incapacidade do governo federal de executar a resposta à pandemia, segundo ela. “Se os testes venceram, é porque o processo [de distribuição] não foi organizado. O governo poderia ter feito isso.”

Pessoas enfileiradas, usando máscaras. No centro está um senhor branco idoso segurando um jornal para se proteger do sol. As pessoas estão esperando, e parecem próximas, aglomeradas

Pilar Olivares / Reuters

Uso de máscaras: uma proteção simples e barata

Considerada uma das medidas mais eficazes para minimizar a transmissão do novo coronavírus, o uso de máscaras não foi unânime entre a comunidade científica no início de 2020, quando não havia consenso sobre as formas de contágio da covid-19 e a eficácia da proteção facial. 

Embora em alguns países a adesão às máscaras tenha sido precoce por hábito cultural e experiência com epidemias anteriores, de janeiro a abril de 2020 entidades como a OMS e o CDC (Centro de Controle de Doenças) dos EUA indicavam o uso da proteção apenas para pessoas infectadas, com sinais de covid-19 ou profissionais de saúde.

O ponto de virada aconteceu no início de abril de 2020, quase um mês depois de a OMS ter declarado pandemia, quando o CDC reconheceu a transmissão por microgotículas no ar — inclusive de pessoas sem sintomas — e passou a recomendar o uso de máscaras para toda a população.

O posicionamento da OMS veio meses depois: no início de junho de 2020, a organização orientou que os países incentivassem o uso de máscaras em público para impedir o avanço da covid-19 e ressaltou que a ação deveria ser combinada com outras medidas de prevenção, como o isolamento social. 

Desde então, a OMS indica que a população use máscaras de pano de três camadas. Com os meses, cientistas criaram campanhas para incentivar o uso generalizado de máscaras profissionais, que têm mais capacidade de filtrar o ar contaminado, mas a agência não atualizou suas recomendações.

Em formato de concha ou “bico de pato”, as máscaras do tipo N95 ou PFF2 (como são chamadas no Brasil) são produzidas de forma industrial e têm certificação. Cientistas apontam que elas são mais eficientes em cenários de alta transmissão. Para a OMS, a adesão generalizada desses itens pode levar à escassez.

O que aconteceu no Brasil

O uso de máscaras se transformou em atitude política. Donald Trump, quando era presidente dos EUA, assim como seus apoiadores, resistia à proteção. O mesmo ocorre no Brasil com Bolsonaro, que questiona seu uso e desinforma a população sobre sua eficácia.

Enquanto o presidente aposta no negacionismo reiterado sobre as máscaras e espalha notícias falsas a respeito do tema, o Ministério da Saúde recomenda o uso da proteção desde abril de 2020. O governo federal, inclusive, sancionou uma lei que torna seu uso obrigatório

Em junho de 2021, Bolsonaro passou a defender uma mudança na legislação, desobrigando pessoas vacinadas ou que já pegaram a covid-19 de usar máscaras em locais públicos. A sugestão confronta a ciência: mesmo quem está nessas condições precisa continuar usando a proteção. 

Na escala estadual, os governos buscam incentivar o uso de máscaras com regras locais, mas a adesão não é alta. Sem acesso a informações, com frequência a população não sabe como usar a proteção da forma correta. Desde o fim de 2020, iniciativas pontuais distribuem máscaras do tipo PFF2 nas cidades.

O que poderia ter sido diferente

Especialistas ouvidos pelo Nexo afirmam que, diferentemente de políticas como o lockdown ou a testagem em massa, a promoção do uso de máscaras é uma medida  barata para o governo federal, que para incentivar a prevenção poderia ter criado campanhas claras de conscientização. 

O pesquisador da Universidade de Vermont e integrante do Observatório Covid-19 BR Vitor Mori disse ver problemas na forma como o país tratou do tema. “O governo federal nunca fez campanha de incentivo ao uso da máscara, incluindo por que usar, como usar e quais os locais mais perigosos para o contágio”, afirmou ao Nexo.

“[A campanha] disse ‘use máscara’, mas não deu detalhes sobre isso. As pessoas ficaram confusas sobre o uso. Em paralelo, o Executivo criticou as máscaras. Quando há movimentos diversionistas dentro do próprio governo, a mensagem final para o cidadão fica ambígua”

Vitor Mori, pesquisador da Universidade de Vermont e integrante do Observatório Covid-19 BR, em entrevista ao Nexo

Antropóloga e doutoranda em saúde coletiva pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Beatriz Klimeck disse ter visto o mesmo problema dos governos estaduais, que apesar de incentivarem o uso não informaram sobre como usar as máscaras de forma adequada e quais as diferenças entre os produtos. 

Outro erro de comunicação foi não ter informado a população sobre as formas de contágio do coronavírus. “O vírus se transmite pelo ar, por partículas respiratórias chamadas aerossóis”, disse Mori. Enquanto isso, a comunicação ainda dá foco à transmissão por gotículas maiores (como as de saliva) e superfícies. 

Com o avanço da pandemia, o país também poderia ter criado iniciativas para distribuir máscaras de melhor qualidade, segundo Klimeck. Criadora da iniciativa “Qual máscara?” nas redes sociais, ela afirmou que campanhas de distribuição na rua são eficazes para proteger e informar as pessoas.

“O país tem produção forte de EPIs [equipamentos de proteção individual, como máscaras PFF2]. Podemos ter políticas que falem da PFF2 como alternativa e distribuam EPIs para profissionais expostos, como do transporte público e dos supermercados. Fornecer como se fornece camisinha no SUS”

Vitor Mori, pesquisador da Universidade de Vermont e integrante do Observatório Covid-19 BR, em entrevista ao Nexo

Distribuir máscaras de qualidade também não seria caro para o poder público, segundo Klimeck. Hoje máscaras do tipo PFF2 podem ser encontradas por menos de R$ 10 ou de R$ 5 em lojas de varejo do país. Além disso, ela afirma que a indústria nacional não corre risco de desabastecimento. 

Com campanhas que realiza pela iniciativa “Qual Máscara?”, a antropóloga busca “mostrar para o poder público que com o preço de algumas diárias de UTI pode-se distribuir máscaras PFF2 para certa região, e o resultado sai muito melhor”, disse. “Se não podemos ter lockdown, precisamos de máscaras para todo mundo.” 

É importante ressaltar que qualquer máscara é melhor que nenhuma máscara, segundo Mori. “Claro que a máscara de pano foi importante, mas hoje podemos falar em usar produtos de melhor qualidade. E não podemos cobrar apenas da população que usem PFF2, mas buscar políticas de Estado que promovam seu uso.”

Idosa abaixa manga de suéter para receber vacina, em frente a letreiro de centro de vacinação do NHS

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Compra de vacinas: a prioridade para sair da crise

Com o aumento da preocupação em torno da pandemia, governos, empresas e universidades iniciaram um esforço global a partir de março de 2020 para desenvolver uma vacina que combatesse o novo coronavírus, da mesma forma que outros imunizantes enfraqueceram doenças virais no passado. 

O esforço levou à maior corrida por vacinas da história, dada a urgência e a escala da pandemia. Enquanto, em 2020, o tempo médio para a criação de uma vacina era de 15 anos, e projeções otimistas indicavam que a distribuição de doses contra a covid-19 levaria um ano e meio, as primeiras vacinas saíram em meses. 


A Pfizer e a BioNTech foram as primeiras farmacêuticas a concluir, em novembro, os testes de eficácia de sua vacina. Em seguida, empresas como AstraZeneca, Moderna e Sinovac também publicaram estudos  bem-sucedidos. Em dezembro, o Reino Unido foi o primeiro país a iniciar uma ampla campanha de vacinação.

A OMS defendeu, em abril de 2020, que os países deveriam se esforçar para desenvolver ferramentas de combate ao novo coronavírus — ou seja, as vacinas — em tempo, escala e acesso recordes, “para salvar milhões de vidas, poupar trilhões de dólares e retornar ao mundo uma sensação de ‘normalidade’”. 

A declaração foi publicada em texto de lançamento de uma plataforma de cooperação global para acelerar a criação de imunizantes e remédios contra a covid-19. Meses depois, em setembro, a agência da ONU criou a Covax, iniciativa para garantir a distribuição equânime das vacinas que estavam em desenvolvimento.

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vacinas foram aprovadas no consórcio Covax: Pfizer/BioNTech, AstraZeneca/Oxford, Janssen, Moderna, Sinopharm e Coronavac; milhões de doses foram enviadas aos países por meio de iniciativa da OMS

O que aconteceu no Brasil

O país, apesar do histórico exitoso de vacinação graças à estrutura do SUS (Sistema Único de Saúde) e ao Programa Nacional de Imunizações, perdeu a oportunidade de ser um os pioneiros na imunização da covid-19 por problemas como o negacionismo e atrasos na compra das vacinas disponíveis, segundo especialistas.

O presidente politizou a imunização em momentos em que questionou a eficácia das vacinas e em que se opôs ao uso de produtos como a Coronavac, desenvolvida por uma farmacêutica chinesa e fabricada pelo Instituto Butantan, do estado de São Paulo, governado por seu adversário político, João Doria (PSDB).

“Lá no contrato da Pfizer, está bem claro: ‘nós [a Pfizer] não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral’. Se você virar um jacaré, é problema seu”

Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, em declaração dada em evento na Bahia em dezembro de 2020

Em dezembro de 2020, quando o Reino Unido começou a imunizar sua população, o governo federal havia comprado vacinas de apenas um laboratório, a AstraZeneca, apesar de ter recebido repetidas ofertas de outras empresas. Imunizantes como a Coronavac e a Pfizer, hoje usados no país, foram comprados apenas em 2021. 

Com a aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) das primeiras vacinas, a campanha de imunização nacional contra a covid-19 começou em 17 de janeiro de 2021. Sem doses o bastante para uma campanha robusta, a vacinação tem sido marcada pelo ritmo lento e por falhas no planejamento da aplicação.

29,21%

da população brasileira foi vacinada com a primeira dose até 18 de junho de 2021, segundo consórcio de veículos de imprensa; proporção de vacinados com duas doses é de 11,41%

O que poderia ser diferente

Para o virologista Flávio Guimarães da Fonseca, não há como o governo alegar que deixou de negociar vacinas com mais antecedência por causa da incerteza que o desenvolvimento das vacinas apresentava. Fonseca é presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, professor do Departamento de Microbiologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e membro do Centro de Tecnologia em Vacinas da universidade.

Ao Nexo ele destacou que, ao contrário de vírus como o HIV e o da dengue, o novo coronavírus surgiu como um vírus único, sem múltiplos sorotipos (o que existem são variantes, que representam variações menos significativas). Além disso, o novo coronavírus não apresenta complicadores da gravidade do HIV, por exemplo, que se multiplica dentro das próprias células do sistema imunológico. 

“É por isso que já no início da pandemia previsões de virologistas e imunologistas davam conta de que o desenvolvimento de uma vacina para a covid-19 não seria particularmente desafiador, como é o desenvolvimento de vacinas para outras viroses”, afirmou Fonseca. “E as previsões se confirmaram. Antes de agosto de 2020, testes clínicos bem sucedidos de laboratórios de ponta, como a Pfizer, a AstraZeneca, a Janssen, já indicavam que a geração de uma vacina eficaz viria logo”, continuou.

Amanda Perobelli / Reuters

Imagem mostra o governador João Doria exibindo uma caixa da vacina Coronanav e fazendo um sinal de positivo com o dedo

O governador de São Paulo, João Doria, recebe carregamento da Coronavac no aeroporto de Guarulhos, na Grande São Paulo

Também em relação à negociação de compra das vacinas, Elize Massard, professora da FGV (Fundação Getulio Vargas) de São Paulo e pesquisadora de políticas de saúde, destacou ao Nexo que, se o Ministério da Saúde tivesse sinalizado mais cedo a intenção de compra da Coronavac, o acordo feito entre o Instituto Butantan e a farmacêutica chinesa Sinovac “teria sido feito em outro patamar”. “Se a empresa que está transferindo tecnologia tivesse uma garantia maior dessa compra, mudam os termos do acordo”, afirmou Massard. 

Ela também apontou falhas na execução da campanha de imunização. “A organização da fila de prioridades de vacina da população prioritária no Brasil não segue critérios epidemiológicos. O PNI [Programa Nacional de Imunizações] mudou três ou quatro vezes e acabou excluindo a população carcerária do grupo prioritário, por exemplo. "Nossas cadeias são superlotadas, e os presos não têm como manter o distanciamento social. Era muito importante vacinar essa população", disse Massard.

Amanda Perobelli / Reuters

Imagem mostra mulher à esquerda, de máscara, recebendo vacina de profissional de saúde, à direita, que usa avental branco, touca e máscara. Ao fundo, fora de foco, três crianças aguardam sentadas

Vacinação de professores contra a covid-19 em escola no Rio Grande do sul

Sobre a possibilidade de o Brasil ter desenvolvido uma vacina nacional mais rapidamente, Flávio Fonseca falou da falta de estrutura dos laboratórios brasileiros, e destacou a necessidade de investimento de longo prazo na ciência brasileira. “A ciência vem sofrendo cortes há anos e anos. Até houve inserção de recursos pelo Ministério de Ciência e Tecnologia na pandemia, mas os laboratórios estavam com a infraestrutura defasada”, disse o virologista. 

Fonseca também comparou a capacidade de investimento do Ministério de Ciência e Tecnologia com o tamanho do financiamento que laboratórios estrangeiros recebem. “A UFMG [que tem um dos projetos de vacina mais avançados atualmente no Brasil, junto com universidades como USP e UFRJ] recebeu do ministério aproximadamente R$ 4 milhões, que é um valor bastante substancial, mas não chega a US$ 1 milhão, sendo que tudo o que gastamos é importado. A Moderna, que é uma pequena empresa americana, recebeu US$ 500 milhões. A ciência é cara, não é mágica.”

Imagem mostra Bolsonaro rodeado de jornalistas que seguram microfones em sua direção; presidente usa máscara, mas ela está abaixada na altura do queixo

Alan Santos / PR

Comunicação oficial: as informações que salvam vidas

Com o conhecimento acumulado de diversas outras crises sanitárias já vivenciadas no mundo, desde o início da pandemia especialistas em saúde pública e órgãos como a OMS alertavam os governos para as diretrizes já estabelecidas pelo que se chama na academia de “literatura de comunicação de risco”. Trata-se de métodos para engajar a população no enfrentamento a situações emergenciais, de forma que as ações do poder público se somem a medidas individuais de gerenciamento de risco. 

O guia da OMS sobre comunicação de riscos em emergências de saúde pública estabelece, entre outras diretrizes, que o poder público deve avisar a população do problema precocemente, prezar pela transparência, reconhecer as incertezas que tiver e informar clara e oportunamente que medidas podem ser tomadas individual e coletivamente. Os governos também devem ouvir as populações mais afetadas, divulgar as informações em plataformas variadas e manter constante avaliação sobre o impacto dos programas de comunicação e a adesão social às recomendações passadas.

O que aconteceu no Brasil

No Brasil, a comunicação oficial sobre a pandemia é marcada por iniciativas do governo federal para esconder dados ou distorcê-los. É marcada também por iniciativas que deram vazão ao negacionismo presidencial, como a recomendação oficial de remédios ineficazes e também iniciativas como a peça publicitária da Secretaria de Comunicação Social do governo contra o isolamento social, sob o slogan “O Brasil não pode parar”. A peça, lançada em março de 2020, foi barrada pela Justiça e apagada das redes sociais pela secretaria.

Desde abril de 2020, uma medida provisória garantia R$ 52 milhões de créditos extraordinários para campanhas oficiais com “o objetivo de informar à população e minimizar os impactos decorrentes da proliferação da doença”, segundo a justificativa do texto. Mas a Secretaria de Comunicação Social usou o dinheiro para campanhas de enaltecimento das ações realizadas pelo governo, como a compra de equipamentos e o pagamento do auxílio emergencial. 

Há ainda um esforço para abrandar o fracasso do país no enfrentamento à pandemia. Em vez do número de mortos, por exemplo, as comunicações oficiais nas redes sociais destacam o número de infectados que sobreviveram.

A transparência de dados oficiais também ficou em xeque. As informações sobre covid-19 compiladas pelo Ministério da Saúde sofreram dois apagões em 2020. Na primeira vez, em junho daquele ano, o portal da pasta retirou números consolidados de mortos e infectados por covid-19, mantendo apenas as informações das últimas 24 horas. Após uma ordem do Supremo, os dados foram restabelecidos. Em novembro, às vésperas das eleições municipais, houve outro apagão. O ministério atribuiu o episódio a um ataque hacker.

Em março de 2021, quando o país atingiu a marca de 300 mil mortos por covid-19, a pasta alterou as regras para registro de pacientes em seu banco de dados. O procedimento ficou mais complicado, o que atrasou os registros, levando à diminuição artificial do número de óbitos em alguns estados. Sob pressão, o governo recuou. 

Em seu site, o Ministério da Saúde deu vazão ao negacionismo de Bolsonaro no que se refere à cloroquina e ao chamado tratamento precoce. A pasta publicou uma nota que destaca a autonomia dos médicos para adotarem o remédio ineficaz no tratamento de seus pacientes. O ministério também divulgou o TrateCov em janeiro de 2021, um aplicativo do governo que indicava o medicamento até para bebês.

À comunicação oficial se soma o comportamento de Bolsonaro. O presidente minimizou e desdenhou a gravidade da pandemia, aglomerou pessoas em eventos oficiais pelo Brasil, sabotou o isolamento social em nome da economia, questionou sem base científica o uso de máscaras, defendeu e financiou medicamentos sem eficácia de forma reiterada, desestimulou e atrasou a vacinação da população. O presidente teve, inclusive, postagens deletadas por plataformas como Twitter, Facebook e Google, no âmbito da política dessas empresas de impedirem a propagação de fake news sobre o novo coronavírus. 

O exemplo de adesão à campanha de vacinação pelas autoridades do governo federal também não ocorreu. Bolsonaro afirma que não tomou o imunizante e, depois de falar várias vezes que não iria se vacinar, passou a dizer que “será o último” da fila. Uma gravação de uma reunião ministerial também mostra o general da reserva Luiz Eduardo Ramos, da Casa Civil, afirmando aos colegas que se vacinou escondido do presidente.

O que poderia ser diferente

“Pode parecer que não houve campanha de comunicação sobre a pandemia, por negligência do governo. Mas na verdade houve. Só que uma campanha equivocada, fruto de uma escolha por incentivar a contaminação e com isso tentar conseguir [naturalmente] uma imunidade de rebanho”, disse ao Nexo a jornalista de saúde e cientista social Mariana Varella, diretora-chefe do Portal Drauzio Varella, a partir da insistência de Bolsonaro em aparecer publicamente sem máscara e contestar com frequência a segurança e a eficácia das vacinas. 

Para Varella, o Ministério da Saúde tinha capacidade para fazer uma campanha de comunicação bem sucedida na contenção da pandemia, mas desperdiçou a experiência de seus quadros técnicos em campanhas anteriores, como as de dengue e febre amarela. 

“O Ministério da Saúde sempre foi uma das pastas mais acessíveis à imprensa, em diferentes governos. Também era uma referência para médicos, que acreditavam no órgão para obter diretrizes e protocolos. E tudo isso se perdeu na pandemia, é uma reclamação geral", disse ela. "Passamos a não ter acesso a números, a procurar o ministério, e eles não retornarem ligações, emails”, afirmou.

Sobre os governos locais, Varella disse que houve bons exemplos de comunicação, “como o da gestão de Edinho Silva [PT] em Araraquara, a de Alexandre Kalil [PSD] em Belo Horizonte e a de Flávio Dino [PCdoB] no Maranhão”. Mas também criticou momentos em que existiu demora na divulgação de informações pelas gestões estaduais, como quando João Doria hesitou em publicar os dados sobre a eficácia da Coronavac. “Ainda assim, se não fosse a pressão sobre Bolsonaro e a produção do Instituto Butantan, estaríamos muito mais atrasados em relação à vacinação”, afirmou. 

Para a cientista política Raquel Recuero, professora da UFPel (Universidade Federal de Pelotas) e coordenadora do Laboratório Midiars (Laboratório de Mídias, Discurso e Análise de Redes Sociais) da universidade, o governo federal também errou ao não reconhecer erros publicamente e ao receber todas as críticas, mesmo que puramente técnicas, como “oposição política”. Ao Nexo ela destacou que o Brasil sairá da pandemia como “exemplo do que não fazer em relação à comunicação sobre saúde”. 

“Tudo isso proporcionou um campo excepcionalmente fértil para o espalhamento da desinformação”, afirmou Recuero. Nesse sentido, Varella destacou que imprensa “ficou sozinha” no papel de combater a desinformação e orientar sobre medidas de prevenção e o estágio da pandemia no país. “A imprensa não pôde dividir essa função com outros órgãos, como o Ministério da Saúde. Claro que estamos todos cansados de más notícias. Mas infelizmente não podemos fugir da tragédia que está acontecendo.” 

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