NEXO

2019

Especial

A administração do Brasil por Bolsonaro em 7 áreas centrais

Preocupação da população passa pela economia, pelas questões sociais, pela saúde, pela educação, pelo meio ambiente, pela segurança pública e pelo combate à corrupção. O que o governo fez de fato?

2022

Por Isabela Cruz, Marcelo Roubicek e Mariana Vick, 22 de ago de 2022

Preocupação da população passa pela economia, pelas questões sociais, pela saúde, pela educação, pelo meio ambiente, pela segurança pública e pelo combate à corrupção. O que o governo fez de fato?

Por Isabela Cruz, Marcelo Roubicek e Mariana Vick, 22 de ago de 2022

1 Economia
1 Economia
Liberalismo parcial e desrespeito às regras
Liberalismo parcial e desrespeito a regras
O que recebeu

Quando Bolsonaro assumiu o governo em 2019, a economia brasileira enfrentava dificuldades para engrenar depois da recessão que durou de 2014 a 2016. Em 2017 e 2018, o PIB – Produto Interno Bruto, que soma todos os bens e serviços produzidos no país em um intervalo de tempo – havia crescido em ritmo lento: 1,3% e 1,8%, respectivamente.


A economia fraca se refletia em um desemprego alto. Em 2018, a taxa média de desemprego no ano foi de 12,3%. Em paralelo, a informalidade estava crescendo , com o aumento de vagas como motoristas de aplicativos e entregadores. A inflação, por sua vez, estava em patamares baixos, tendo fechado 2018 em 3,75%.


O governo Michel Temer (maio de 2016 a dezembro de 2018) havia apostado em medidas de redução de gastos e reforma econômica – fazendo contraposição aos governos petistas de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2010) e Dilma Rousseff (2011 a 2016).


As principais mudanças tomadas nesse sentido foram a adoção do teto de gastos – regra que limita as despesas da União a um nível pré-determinado, aprovada ainda em 2016 – e a reforma trabalhista de 2017.


A agenda de austeridade era em boa parte movida pelo fato de que as contas públicas brasileiras estavam em mau estado. A partir de 2014, o país começou a registrar deficits primários. Ou seja, as receitas do governo federal estavam superando as despesas, sem considerar o pagamento de juros da dívida pública.




O tamanho dos deficits diminuiu entre 2017 e 2018, mas as contas públicas continuavam no vermelho quando Bolsonaro assumiu.


O que enfrentou
PESSOAS COM MÁSCARAS CARREGAM SACOLAS CHEIAS DE COMPRAS EM RUA CHEIA NO CENTRO DE SÃO PAULO. AMANDA PEROBELLI/REUTERS – 19/06/2020

O maior abalo da área no governo Bolsonaro foi causado pela chegada da pandemia de covid-19 em março de 2020. A crise sanitária global levou à paralisação parcial da economia, com pessoas ficando em casa e empresas parando atividades.




O presidente minimizou a doença e defendeu uma falsa contraposição entre saúde e economia. O discurso adotado equiparava vidas e empregos para justificar a ideia de que o país “não poderia parar”. Nesse processo, culpou prefeitos e governadores que adotaram medidas de restrição à circulação pela crise econômica.


Em 2021, o país também passou por uma grave crise hídrica. A falta de chuvas levou os reservatórios das usinas hidrelétricas a níveis historicamente baixos, gerando risco de apagão.


A melhora das chuvas no final do ano afastou as chances de faltar energia elétrica, mas não impediu um aumento da conta de luz, com acionamento de usinas termelétricas (mais caras e poluentes) e do sistema de bandeiras tarifárias. Isso ajudou a alimentar a inflação.


Em 2022, a eclosão da guerra na Ucrânia também contribuiu para a aceleração dos preços. O conflito levou ao aumento global do barril de petróleo e de outras commodities (bens primários).




No Brasil, isso se traduziu em preços mais altos de alimentos e, principalmente, combustíveis – a Petrobras manteve a política pela qual repassa os movimentos do mercado de petróleo aos consumidores, via preços praticados nas refinarias.


O que fez
JAIR BOLSONARO E MINISTRO DA ECONOMIA, PAULO GUEDES, EM CERIMÔNIA EM BRASÍLIA. UESLEI MARCELINO/REUTERS – 19/11/2019

Bolsonaro foi eleito com a promessa de aprofundar a agenda de reformas e privatizações, tendo como principal defensor dessas pautas o ministro da Economia Paulo Guedes.


Em 2019, o governo conseguiu aprovar a reforma da Previdência, que colocou uma idade mínima para aposentadoria, e mudou os cálculos dos benefícios e das alíquotas de contribuição. A articulação contou com protagonismo de Rodrigo Maia, então presidente da Câmara dos Deputados.


Na área das privatizações, houve poucos avanços nos primeiros anos do mandato. No ano inaugural do governo, três subsidiárias da Petrobras foram vendidas: a TAG (Transportadora Associada de Gás), a Liquigás e a BR Distribuidora – mas a agenda empacou após a chegada da pandemia e pouco avançou em 2020 e 2021. Em 2022, o governo conseguiu repassar ao setor privado a Eletrobras, principal empresa do setor elétrico brasileiro, em um processo de capitalização.


Outras reformas e privatizações, porém, praticamente não andaram. Em 2020, o governo chegou a entregar ao Congresso uma proposta de reforma administrativa, que pouco avançou. No mesmo ano, apresentou a primeira parte de uma reforma tributária, que não avançou. Em 2021, propôs uma reforma do Imposto de Renda, que foi aprovada na Câmara mas travou no Senado.


Boa parte dos avanços na agenda liberal aconteceram via regulações setoriais. Entre os exemplos, estão os marcos legais do gás natural, do saneamento básico e das ferrovias. Nesses projetos, as mudanças nas regras colocaram incentivos para maior participação de empresas privadas nas respectivas áreas.


Outra vitória de Paulo Guedes veio com a autonomia do Banco Central. A nova lei, sancionada em fevereiro de 2021, fixa mandatos para o presidente e diretores da instituição, dificultando a interferência do Executivo. Antes, o governo tinha a possibilidade de demitir a qualquer momento o presidente do BC e seus diretores.


Sob Bolsonaro, os bancos públicos ajudaram a operacionalizar o Pronampe, programa de crédito emergencial para empresas na pandemia. Já o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) manteve a política de redução de empréstimos e de sua carteira de investimentos. Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal também foram usados para programas para agradar as bases bolsonaristas. O presidente da Caixa, Pedro Guimarães, se tornou figura próxima de Bolsonaro por ser chefe do banco responsável pelos principais programas sociais – mas caiu após um escândalo de assédio sexual.


Apesar do discurso da responsabilidade fiscal, o governo não conseguiu tirar as contas públicas do vermelho. Em 2020, Bolsonaro ganhou, via orçamento de guerra e calamidade pública, permissão do Congresso para não cumprir naquele ano regras fiscais, como o teto de gastos. Em março de 2021, o governo articulou e aprovou a PEC Emergencial, que autorizava R$ 44 bilhões por fora do teto, para bancar o novo auxílio emergencial. Pouco tempo depois, em abril de 2021, governo e Congresso entraram em um acordo para passar outras despesas ligadas à pandemia por fora do teto.


No final de 2021, o governo articulou outra mudança no teto, valendo a partir de 2022. A manobra foi aprovada como parte da PEC dos Precatórios, que abriu mais de R$ 100 bilhões no Orçamento do ano da reeleição. Em meados de 2022, o governo conseguiu uma nova autorização para gastar sem respeitar às regras fiscais. O dinheiro será usado para ampliar benefícios sociais e criar de programas voltados para taxistas e caminhoneiros (apoiadores de Bolsonaro).


Essas políticas são parte da estratégia do governo frente à inflação alta, que está acima de 10% desde setembro de 2021. O governo também abriu mão de arrecadação de tributos federais sobre combustíveis, e conseguiu aprovar a redução do ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, principal tributo estadual. A medida sobre o ICMS deu resultados, se refletindo numa queda dos índices de inflação em julho de 2022. Bolsonaro trocou três vezes a chefia da Petrobras, mas sem escolher um substituto que mudasse a política de preços (pelo menos até meados de agosto de 2022).


Além da inflação alta, o governo Bolsonaro ficou marcado pela falta de tração da atividade econômica. Em 2019, o PIB cresceu apenas 1,2%; em 2020, primeiro ano de pandemia, teve queda de 3,9%; em 2021, subiu 4,6%, pouco avançando para além da recuperação das perdas do ano anterior; em 2022, começou o ano com crescimento de 1% no primeiro trimestre, mas com perspectivas de desaceleração no segundo semestre.




Enquanto isso, o desemprego bateu recordes na pandemia, mas recuou em 2022, baseado principalmente na geração de empregos de baixa remuneração.


2 Questão social
2 Questão social
Ação social errática e volta da fome
Ação social errática e volta da fome
O que recebeu

Nos anos que antecederam a chegada de Bolsonaro à Presidência, houve uma piora nos indicadores sociais no Brasil. Houve, por exemplo, um aumento continuado da desigualdade de renda no país entre 2015 e 2019.


Esse fenômeno é explicado, em boa parte, pela recessão brasileira de 2014 a 2016, que levou a um forte aumento do desemprego e a uma piora do nível de renda, sobretudo entre os mais pobres.


Ao mesmo tempo, houve uma corrosão do valor pago pelo Bolsa Família, principal programa social à época. O número de beneficiários também estacionou.


A pobreza aumentou em todos os anos entre 2015 e 2017, atingindo quase 30% da população brasileira, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).


A fome também cresceu. Segundo pesquisa do FGV Social (Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas), a proporção da população em insegurança alimentar – famílias em que, em algum momento nos últimos 12 meses, faltou dinheiro para alimentar a si mesmo ou a outros familiares – subiu de 17% em 2014 para 30% em 2019.


O que enfrentou
12,1 milhões
foi o número de
pessoas que perderam
o emprego entre
março e agosto de
2020, segundo o IBGE
HOMEM SEGURA OSSO DE ANIMAL EM PROTESTO DO MTST NA BOLSA DE VALORES. AMANDA PEROBELLI/REUTERS – 23/09/2021

Se os indicadores sociais já haviam registrado piora na segunda metade da década de 2010, a chegada da pandemia de covid-19, em 2020, aprofundou ainda mais os problemas. Milhões de pessoas perderam seus empregos. Num primeiro momento, os mais afetados foram os trabalhadores informais.

12,1 milhões foi o número de pessoas que perderam o emprego entre março e agosto de 2020, segundo o IBGE

Boa parte dessas pessoas saiu do mercado de trabalho. Ou seja, não voltou imediatamente a procurar oportunidades – seja por temor de contágio ou por baixa expectativa de conseguir um emprego.


A partir da segunda metade de 2020, outro problema se somou a esse quadro: a aceleração inflacionária. No segundo semestre daquele ano, os alimentos aceleraram com força. Carne e arroz estavam entre os bens com as maiores variações.


Em 2021, a crise hídrica prejudicou a produção de alimentos como café e açúcar e levou a um aumento considerável na conta de luz – contribuindo ainda mais para a inflação. E já naquele ano, a alta de commodities e a recuperação do mercado de petróleo também começavam a pesar sobre os preços no Brasil.


Houve uma explosão ainda mais forte desses preços a partir do início de 2022, com a eclosão da guerra na Ucrânia. Preços de combustíveis, alimentos e gás de botijão aceleraram ainda mais, piorando a situação já frágil de boa parte da população. A crise social teve como símbolo a fila para obter restos de ossos em frigoríficos.


O que fez

A principal política pública durante o mandato de Bolsonaro foi o auxílio emergencial. O benefício foi articulado pelo Congresso em março de 2020, enquanto o governo hesitava em aumentar gastos.


Por cinco meses, entre abril e agosto de 2020, o auxílio emergencial pagou parcelas de R$ 600 mensais a 68 milhões de brasileiros. Em setembro, o valor caiu pela metade e o programa teve seu alcance reduzido.


Foi o maior programa de transferência de renda da história brasileira. O auxílio emergencial também gerou um efeito de redução temporária da pobreza e da desigualdade no país. Houve um “efeito anestesia” durante 2020: enquanto a desigualdade de renda do trabalho aumentou, a desigualdade de todas as rendas, que considera benefícios sociais, caiu. Além do auxílio, o governo criou um programa que permitia a redução da jornada e suspensão de contratos de trabalho, com compensação da União – a ideia era impedir um número ainda maior de demissões na crise.


Mas, em 31 de dezembro de 2020, os programas foram encerrados, sem reposição imediata ou período de transição. O governo afirmou que não via indícios de continuidade da crise sanitária em 2021 e, por isso, decidiu descontinuar as políticas emergenciais ligadas à pandemia. O país voltou às regras fiscais anteriores à pandemia e ao Bolsa Família como principal programa de apoio à população.


A crise sanitária não só persistiu como entrou em seu pior momento. No primeiro semestre de 2021, ainda com a vacinação avançando pouco, o país teve o pico de mortes ligadas à covid. E a crise social também se aprofundou: o desemprego bateu recorde histórico.


Sob pressão para retomar os programas de apoio financeiro, o governo articulou a PEC Emergencial como forma de driblar as regras fiscais e garantir o retorno do auxílio. O programa voltou em abril, após três meses de hiato, com valores e alcance menores.


Mesmo com o novo auxílio, a pobreza e a fome explodiram. No final de 2020, 19 milhões de pessoas passavam fome no país; no início de 2022, esse número era de 33 milhões, segundo dados da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional). A pobreza também subiu com força, chegando a quase 63 milhões de pessoas, segundo o FGV Social.




O governo havia anunciado em junho de 2020 um programa para substituir o Bolsa Família e suceder o auxílio emergencial. Mas, sem conseguir encaixar o programa no Orçamento de 2021, o Renda Brasil – rebatizado posteriormente de Renda Cidadã – não saiu do papel. As negociações continuaram em 2021, e no segundo semestre, Bolsonaro anunciou o Auxílio Brasil. O Bolsa Família e o auxílio emergencial foram encerrados em outubro.


O Auxílio Brasil começou a ser pago em novembro de 2021. No mês seguinte, Bolsonaro determinou um pagamento mínimo de R$ 400 mensais, independentemente do tamanho da família – desenho criticado por especialistas em políticas públicas. O programa atinge cerca de 18 milhões de famílias – mas não resolveu o problema das filas, que marcou a gestão do Bolsa Família sob Bolsonaro antes da criação do auxílio emergencial.


Com o pacote das bondades de julho de 2022, Bolsonaro expandiu o Auxílio Brasil para R$ 600 e criou benefícios para caminhoneiros e taxistas – as medidas valem somente até o final do ano.


Para além dos benefícios sociais, o mandato de Bolsonaro foi também um momento de estagnação do salário mínimo. O único ano com ganho real no reajuste foi 2019, quando o aumento superou a inflação em apenas 1,14%. Nos outros anos, o reajuste ficou na margem da inflação.




A fome em alta fez o Brasil conviver com cenas fortes, como aquelas em que pessoas faziam fila para conseguir ossos e restos de carne. Nas grandes cidades, população de rua aumentou consideravelmente.


3 Saúde
3 Saúde
Ministério de farda e negação da ciência
Ministério de farda e negação da ciência
O que recebeu

Bolsonaro assumiu o governo com o campo da saúde já intensamente permeado por debates ideológicos. Desde o governo petista de Dilma Rousseff (2011-2016), o cenário era de crescente participação da bancada evangélica e de outros grupos conservadores na formulação de políticas públicas relacionadas às drogas e à saúde das mulheres e da população LGBTI+.


A insatisfação do Conselho Federal de Medicina e outras entidades médicas brasileiras com a contratação de profissionais cubanos pelo governo Dilma, por meio do programa Mais Médicos, também impulsionava o discurso de rejeição à esquerda que elegeu Bolsonaro.


As críticas ao formato da parceria feita com o governo cubano, por meio da Opas (Organização Pan-americana de Saúde), foram uma das principais bandeiras eleitorais bolsonaristas para a saúde. Logo após a vitória de Bolsonaro em 2018, o governo de Cuba reclamou de declarações “ameaçadoras e depreciativas” do presidente e anunciou a retirada dos médicos cubanos do país.


No, o governo Temer, foram feitas mudanças estruturais na área da saúde pública. A começar pelo fato de que o teto de gastos aprovado durante seu governo, no final de 2016, já comprimia o orçamento do SUS (Sistema Único de Saúde).


Além disso, o então ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP-PR), editou em 2017 uma nova Política Nacional de Atenção Básica, que abriu caminho para o enxugamento das equipes do SUS.


De volta ao Congresso, Ricardo Barros, que viria a ser líder do governo Bolsonaro na Câmara, foi um dos parlamentares que capitanearam a criação, no final de 2018, de uma frente parlamentar que promoveu uma mudança de rumo da política federal para a saúde mental. Retomou-se a aposta em hospitais psiquiátricos para o tratamento de pacientes com transtornos psicológicos e dependentes químicos. Marcadas em décadas anteriores por ineficácia nos tratamento e maus tratos, essas instituições eram alvo de uma política que, desde o governo Fernando Henrique Cardoso, pretendia substituí-las pelo atendimento ambulatorial multidisciplinar.


O que enfrentou
Manifestante usa máscara com o rosto do presidente Jair Bolsonaro durante protesto em São Paulo. Carla Carniel/Reuters – 02/10/2021

Maior crise sanitária global desde a gripe espanhola, que aconteceu um século antes, a pandemia de covid-19 escancarou as prioridades e os métodos de gestão de todos os governos pelo mundo.


No Brasil, o cenário emergencial mostrou um governo federal alheio à ciência e ao sofrimento humano, preocupado em transferir responsabilidades e engajado em promover desinformação para justificar os maus resultados da gestão. Imerso em teorias conspiratórias, o governo brasileiro virou pária na OMS, a Organização Mundial da Saúde.


Bolsonaro abriu mão de seu papel de coordenação nacional, num cenário em que brasileiros morreram à espera de leitos, oxigênio hospitalar e kits intubação, enquanto havia vagas e equipamentos em outras regiões. De forma mentirosa, o presidente passou a pandemia se dizendo impedido de atuar pelo Supremo Tribunal Federal.


O tribunal, na verdade, apenas impediu o presidente de derrubar medidas sanitárias de governadores e prefeitos, já que a Constituição atribui a eles também deveres sobre a saúde pública.


Além do Supremo, as iniciativas da sociedade civil, a pressão de governadores e prefeitos, a resistência técnica da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e as informações e investigações da imprensa também serviram de contenção ao negacionismo do governo federal, que por muitos momentos sonegou dados sobre a situação da pandemia no país.


A resistência ao presidente veio também de dentro do Ministério da Saúde, inclusive por parte dos servidores. Mas Bolsonaro demitiu os ministros que se opuseram a ele.


Caíram assim Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. A pasta acabou repleta de militares em postos-chave. E o comando do ministério foi entregue a um general à época na ativa, Eduardo Pazuello, que se submeteu fielmente ao presidente.


Investigado pela crise da falta de oxigênio hospitalar em Manaus, que matou pessoas por asfixia, Pazuello acabou demitido e substituído pelo médico Marcelo Queiroga, que tampouco fez questão de autonomia para gerir a Saúde. O Conselho Federal de Medicina se mostrou complacente com o negacionismo.




Nesse cenário, o número de mortes no país sobre o tamanho total da população colocou o Brasil entre os países de pior desempenho no enfrentamento à pandemia. Em 2021, a CPI da Covid no Senado investigou as ações e omissões do governo federal por trás dessa situação.


Num relatório que pediu investigações e processos judiciais contra 77 pessoas, incluindo ex-ministros, ministros, parlamentares e empresários, além de duas empresas, os senadores atribuíram nove crimes a Bolsonaro. O documento mostrou a atuação de um gabinete paralelo no Ministério da Saúde e evidências de corrupção nas negociações de compra de vacinas.


O que fez
EDUARDO PAZZUELLO, COMO GENERAL DA ATIVA, ASSUMIU O MINISTÉRIO DA SAÚDE DURANTE A PANDEMIA. DIVULGAÇÃO
EDUARDO PAZUELLO, GENERAL DE DIVISÃO QUE SE TORNOU TITULAR INTERINO DO MINISTÉRIO DA SAÚDE. DIVULGAÇÃO

O governo Bolsonaro alterou o modelo de financiamento da rede de atenção primária do SUS (toda a rede pública de consultas de rotina ou de encaminhamento). Iniciado em 2020, o Programa Previne Brasil estabeleceu que o repasse de verbas federais aos municípios, antes feito conforme o tamanho populacional total de cada cidade, passasse a depender do perfil socioeconômico de usuários cadastrados e de indicadores locais de saúde.


Segundo o governo, a medida torna a distribuição de recursos mais justa e eficiente. Críticos apontam que os novos critérios se traduziram, na prática, numa política de desfinanciamento do sistema e de redução de sua abrangência.


Ainda no campo da atenção básica à saúde, o governo Bolsonaro lançou em agosto de 2019, para substituir o Mais Médicos, o programa Médicos pelo Brasil. O projeto inclui plano de carreira para os profissionais e necessidade de validação dos diplomas de médicos estrangeiros, diferentemente do projeto anterior. Mas a ideia demorou a sair do papel, e o governo teve de manter o Mais Médicos em funcionamento. Quase três anos depois, em abril de 2022, o Médicos pelo Brasil fez suas primeiras contratações.


Quanto à política federal para a saúde mental de pessoas com transtornos psicológicos ou dependentes químicas, Bolsonaro aprofundou o modelo do governo Temer, baseado em internações, e multiplicou os repasses de verbas públicas às comunidades terapêuticas — centros privados para reabilitação frequentemente dirigidos por grupos religiosos. Especialistas na área apontam que essas comunidades frequentemente não seguem protocolos científicos de tratamento, nem passam pelo controle devido.


No campo dos direitos reprodutivos, o governo escolheu se distanciar das principais democracias do mundo e atender a reivindicações de grupos políticos conservadores e religiosos. Esforços foram empreendidos para que determinados termos, como “gênero” e “violência obstétrica”, fossem abandonados, inclusive em documentos internacionais. Debates sobre temas como saúde da população LGBTI+ e educação sexual nas escolas foram interditados, e as manifestações do governo sobre o direito ao aborto, previsto em lei para situações específicas, passaram a ser objeto de ressalvas ideológicas e entraves.


Enquanto isso, áreas em que o Brasil já foi modelo internacional foram desarticuladas. Após o rebaixamento da estrutura voltada especificamente à aids e outras doenças sexualmente transmissíveis dentro do Ministério da Saúde, a pasta se desorganizou e deixou o SUS sem testes para a realização de testes de HIV (vírus causador da aids). As campanhas de informação sobre a doença praticamente acabaram em 2021.


A Saúde também foi afetada por decisões de outras áreas do governo. A omissão do Ministério do Meio Ambiente no combate aos milhares de garimpeiros que ocuparam a Amazônia deixou comunidades indígenas expostas ao mercúrio usado pelos criminosos, uma substância que contamina rios e animais. O Ministério da Agricultura, por sua vez, liberou o uso no país de dezenas de agrotóxicos proibidos na União Europeia.


Na pandemia, essa distância em relação à comunidade internacional e à ciência se ampliou. Enquanto as políticas públicas de distanciamento social e lockdowns se espalharam pelas democracias do mundo, Bolsonaro escolheu defender que “o Brasil não pode parar” e apostar num “tratamento precoce” com medicamentos já existentes, como cloroquina e azitromicina, para enfrentar a emergência sanitária.


nos primeiros meses da crise global, cientistas das instituições mais respeitadas do mundo afirmaram que esses medicamentos não se comprovaram eficazes contra a covid-19. Mas Bolsonaro insistiu em difundi-los e defendê-los, depois de ter investido milhões de reais na fabricação e na distribuição desses remédios. O Ministério da Saúde chegou a criar um aplicativo, o TrateCov, para recomendar que brasileiros tomassem os medicamentos indiscriminadamente, apesar de eles terem efeitos colaterais graves.


Limitando-se a fazer repasses de verbas aos estados e municípios (e mesmo assim com atraso) e deixando com governadores e prefeitos o ônus eleitoral de decretar medidas restritivas, Bolsonaro levou sua política de negacionismo e menosprezo à tragédia humana até o último grau. Promoveu aglomerações com milhares de pessoas e desincentivou o uso de máscara contra a covid-19, inclusive em momentos de colapso da rede hospitalar.


O anticientificismo do governo federal se estendeu à vacinação. Em meio a rivalidades políticas, Bolsonaro jogou contra o desenvolvimento dos imunizantes em laboratórios estaduais e se esforçou em levantar contra as vacinas uma série de suspeitas sem conexão com a realidade. O assédio presidencial contra técnicos da Anvisa foi parte desse processo, assim como a negligência em negociar a reserva de doses com grandes laboratórios, enquanto se privilegiavam intermediadores suspeitos. Isso atrasou a vacinação em massa no Brasil em meses, num período em que estavam morrendo milhares de pessoas por dia, assim como atrasou a retomada econômica do país.




Por todas essas escolhas da gestão Bolsonaro, estudos de sanitaristas, alguns levados a organismos internacionais, registram que a política sanitária do governo federal para a pandemia foi criminosa ao promover entre a população a chamada “imunidade de rebanho” (promoção da imunidade pela contaminação direta pelo vírus), ignorando a quantidade de mortes que esse tipo de estratégia causa e as sequelas que a doença pode deixar aos sobreviventes. Até hoje, o presidente se orgulha de não ter se vacinado. Em meados de agosto de 2022, o país acumula mais de 682 mil mortes por covid-19.


4 Educação
4 Educação
A guerra cultural e o intervencionismo
A guerra cultural e intervencionismo
O que recebeu

Em 2016, pouco depois de Temer ter assumido definitivamente a Presidência, o Ministério da Educação e o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) divulgaram os resultados do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) daquele ano, mostrando que a educação brasileira registrava avanços, mas a passos mais lentos que o esperado.


Do 1º ao 5º ano do ensino fundamental, a meta de desempenho de 5,2 pontos colocada pelo MEC para a Prova Brasil (avaliação usada para o Ideb) foi superada, batendo 5,5 pontos. Do 6º ao 9º ano, a nota ficou 0,2 ponto abaixo do objetivo, alcançando 4,5 pontos. O pior desempenho foi no ensino médio, que registrou 3,7 pontos, o mesmo resultado de 2011.


A divulgação desses dados levou o então ministro da Educação de Temer, José Mendonça Filho, a querer implementar mudanças para a etapa de ensino. Para isso, o governo publicou em 2016 a medida provisória 746, instituindo o Novo Ensino Médio, com aumento da carga horária mínima de aulas e o fim da obrigatoriedade de algumas disciplinas.


O projeto, que no ano seguinte se tornaria lei, desagradou a estudantes na época. Em 2016, alunos secundaristas e de universidades federais ocuparam instituições de ensino contra a MP e a PEC do Teto, que prometia congelar as despesas públicas — incluindo para educação — por 20 anos.


Nas universidades, os recursos para financiamento de pesquisa já haviam começado a cair. No governo Temer, agências como a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, vinculado ao Ministério da Ciência) tiveram, somados, uma redução real de cerca de R$ 4 bilhões em seus orçamentos entre 2015 e 2016.


Apesar da rejeição, Temer conseguiu aprovar essa e outras propostas — entre elas, a Base Nacional Curricular Comum de 2018. Essas políticas, porém, demorariam para ser implementadas e não registraram resultados até o fim do governo. No Ideb de 2018, apenas a primeira etapa do ensino fundamental (1º ao 5º ano) avançou em relação à prova de dois anos antes, por exemplo.


O que enfrentou

39 milhões de estudantes, ou 82% do total, deixaram de frequentar a escola em março de 2020 por causa da pandemia; em julho, todos haviam tido as aulas presenciais suspensas


17% dos conteúdos de matemática foram apreendidos no ensino remoto no Brasil, em comparação com o que ocorreria nas aulas presenciais, segundo a pesquisa


38% dos conteúdos de língua portuguesa foram apreendidos no ensino remoto no Brasil, em comparação com o que ocorreria nas aulas presenciais, segundo a pesquisa


Com a pandemia de covid-19, no segundo ano do governo Bolsonaro, os indicadores de educação pioraram ainda mais em relação a como estavam antes. A crise sanitária levou ao fechamento de escolas por mais de um ano. Fora do ambiente escolar, a aprendizagem de crianças e adolescentes retrocedeu.

39 milhões de estudantes, ou 82% do total, deixaram de frequentar a escola em março de 2020 por causa da pandemia; em julho, todos haviam tido as aulas presenciais suspensas

Em 2020, 74% dos estudantes das redes públicas de ensino estavam participando de algum tipo de atividade escolar não presencial, segundo pesquisa Datafolha. Apesar de mais de 80% deles terem dito estar fazendo atividades propostas pelos professores, uma parte relatou dificuldades como falta de acesso à internet (23%) e problemas para compreender o conteúdo (20%).


Ainda não há dados sobre o desempenho dos estudantes brasileiros no Ideb desde 2020. Estudo do Insper com o Instituto Unibanco mostrou, no entanto, que no ensino remoto eles aprenderam menos do que aprenderiam nas aulas presenciais:

17% dos conteúdos de matemática foram apreendidos no ensino remoto no Brasil, em comparação com o que ocorreria nas aulas presenciais, segundo a pesquisa
38% dos conteúdos de língua portuguesa foram apreendidos no ensino remoto no Brasil, em comparação com o que ocorreria nas aulas presenciais, segundo a pesquisa

Outro problema agravado pelo fechamento de escolas foi a evasão. Em 2021, estudo do movimento Todos pela Educação a partir de dados da Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostrou que a taxa de crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos matriculados nas escolas era de 96,2% — menor percentual desde 2012. Em 2019, esse índice era de 98%.


Fora das escolas, a suspensão do ensino presencial durante a pandemia impactou famílias (principalmente mulheres) que se viram obrigadas a deixar o mercado de trabalho por não ter quem supervisionar as crianças. O quadro também agravou a insegurança alimentar de jovens que dependiam da merenda escolar. Com essas pressões, na maioria dos estados as escolas voltaram a abrir em meados de 2021.


A piora nos indicadores na educação também chegou ao Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). A primeira edição do exame na pandemia foi marcada por 51,5% de abstenções. Na edição seguinte, o Enem teve 3,4 milhões de inscritos, o menor número desde 2005. A adesão foi ligeiramente maior em 2022.




Nas universidades, o Censo da Educação Superior divulgado em 2022 mostrou que, dois anos antes, houve pela primeira vez em três décadas uma retração no número de matrículas nas instituições federais, junto com quedas também nas instituições de ensino estaduais e municipais. Enquanto isso, o total de matrículas em cursos privados feitos a distância teve um boom.


O que fez

Bolsonaro foi eleito em 2018 com um discurso moralizante para a educação. Na campanha eleitoral, disse querer “expurgar a ideologia de Paulo Freire” e eliminar o que considerava “doutrinação de esquerda” nas escolas. Com mensagem semelhante ao do movimento Escola Sem Partido, também atacou a suposta disseminação de “ideologias de gênero” em sala de aula.


Em 2019, com o então ministro Abraham Weintraub, enfrentou sua primeira grande crise na área. Em abril daquele ano, Weintraub disse que o MEC cortaria recursos de universidades federais que não apresentassem “desempenho acadêmico esperado” e estivessem promovendo “balbúrdia” em seus campos, citando a UnB (Universidade de Brasília), a UFF (Universidade Federal Fluminense) e a UFBA (Universidade Federal da Bahia), que estão entre as melhores do país.


O bloqueio anunciado na dotação orçamentária das três universidades atingiu as chamadas despesas discricionárias, para gastos como água, luz, limpeza, entre outros. A declaração de Weintraub repercutiu mal no meio acadêmico. Com isso, o ministro recuou das acusações de “balbúrdia” e decidiu estender o corte para todas as universidades federais do país, alegando escassez de recursos.


A decisão do governo provocou uma onda de protestos e paralisações no ensino superior em 2019. Professores e estudantes acusaram o governo de querer censurar e fazer “controle ideológico” das universidades, o que é inconstitucional. Apesar disso, o governo manteve o bloqueio.




Em quase quatro anos, Bolsonaro também tentou interferir nas instituições de ensino superior cortando recursos de agências como Capes e CNPq — tendência vista desde Temer —, nomeando reitores de universidades não apoiados pela comunidade universitária e mudando regras para avaliar e financiar cursos de pós-graduação. Essas medidas, no entanto, sofreram forte retaliação, e avançaram menos do que o governo esperava.


O discurso contrário à suposta “doutrinação” na educação brasileira perdeu força na pandemia, que impôs problemas como a perda de aprendizagem de crianças e adolescentes durante o fechamento de escolas. Bolsonaro sempre foi contrário à suspensão das aulas presenciais, assim como foi contra todo tipo de restrição contra a covid-19. Por decisão dos estados e municípios, que são responsáveis pela educação básica, porém, as instituições de ensino ficaram fechadas por meses.


Para especialistas, o governo federal fez pouco em 2020 e 2021 para amenizar os efeitos da pandemia sobre os estudantes. Apesar de não ser responsável direto pelas turmas de educação infantil, ensino fundamental e ensino médio, o MEC poderia ter criado orientações e articulado apoio financeiro para estados e municípios, segundo eles. Apenas dois anos depois dessas cobranças o governo lançou uma política digital para tentar ajudar as redes de ensino no processo de recuperação de aprendizagem.


Fora as medidas para a pandemia, nos últimos anos o governo tentou implementar outras políticas para a educação, como a expansão de escolas militares, um novo programa de educação especial e a regulamentação do homeschooling, que está em discussão no Congresso. Esses projetos, porém, pouco avançaram até agora.


De 2019 a julho de 2022, o MEC teve cinco ministros: Ricardo Vélez, de janeiro a abril de 2019; Abraham Weintraub, que ficou na pasta até junho de 2020; Carlos Alberto Decotelli, que ficou cinco dias no cargo; Milton Ribeiro, que foi ministro até março de 2022; e Victor Godoy, que assumiu no lugar de Ribeiro.


Em duas dessas gestões — Vélez e Ribeiro — houve suspeitas de tentativa de interferência no Enem. Em 2019, o Inep criou uma comissão para fiscalizar as questões do exame, cujo trabalho nunca foi divulgado. Em 2021, funcionários do órgão afirmaram que o governo os havia obrigado a refazer a prova, o que o MEC negou.


A principal crise da pasta, porém, ocorreu depois. Em 2022, reportagens do jornal O Estado de S. Paulo mostraram que pastores sem cargo no governo comandaram um “gabinete paralelo” no MEC na gestão de Ribeiro, com controle de verbas do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) destinadas às prefeituras. Segundo áudio revelado pelo jornal Folha de S.Paulo, Ribeiro disse que priorizava a liberação de recursos para municípios indicados pelos pastores, a pedido de Bolsonaro.


A repercussão do caso resultou na saída de Ribeiro do cargo e, mais tarde, em sua prisão preventiva (pouco depois, ele foi solto). Bolsonaro inicialmente defendeu o ex-ministro, mas negou participação no esquema. Ribeiro é suspeito dos crimes de corrupção passiva, prevaricação, advocacia administrativa e tráfico de influência em sua gestão no MEC.


5 Meio ambiente
5 Meio ambiente
Desmonte burocrático e destruição da
floresta
Desmonte burocrático e destruição da floresta
O que recebeu

2 foi a quantidade de terras indígenas que o governo Michel Temer demarcou entre 2016 e 2018; teria sido o menor número da história da Nova República se Jair Bolsonaro, que não demarcou terra nenhuma, não tivesse assumido depois

Quando Bolsonaro assumiu o poder, em janeiro de 2019, fazia dois meses que o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), órgão do governo federal que monitora o desmatamento na Amazônia, havia divulgado o dado mais recente até então sobre a supressão da floresta: entre agosto de 2017 e julho de 2018, 7.900 km² haviam sido derrubados.






O patamar era o mais alto desde 2008. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, fatores como a seca, que potencializa queimadas feitas na Amazônia, haviam influenciado o aumento do desmate. Para ambientalistas, medidas de Temer como a sanção do Programa Nacional de Regularização Fundiária — apelidado então de “MP da Grilagem” — em 2017, por, também haviam estimulado a abertura de novas áreas na Amazônia. Segundo eles, flexibilizando as regras para regularizar terras que poderiam ter sido invadidas de forma ilegal, o governo “premiou” o desmatamento.


Considerada uma das mais polêmicas medidas de Temer, a MP da regularização fundiária fez parte de um conjunto robusto de mudanças que o governo federal promoveu nas políticas ambientais de 2016 a 2018. Além dela, Temer anulou terras indígenas, propôs reduzir unidades de conservação e mudou as normas para licenciamento ambiental, entre outras medidas.

2 foi a quantidade de terras indígenas que o governo Michel Temer demarcou entre 2016 e 2018; teria sido o menor número da história da Nova República se Jair Bolsonaro, que não demarcou terra nenhuma, não tivesse assumido depois

Em 2017, a reputação do então presidente o fazia correr o risco de se tornar “o pior em termos de desempenho socioambiental” da história do Brasil, segundo o então secretário executivo da rede de ONGs Observatório do Clima, Carlos Rittl. Mais tarde, essa descrição também seria usada para Jair Bolsonaro.


No Planalto desde 2016, o ex-vice-presidente de Dilma Rousseff assumiu o cargo já no contexto de aumento do desmatamento — tendência observada desde 2013 — e redução da criação de terras indígenas e unidades de conservação. Com Temer, que havia aprofundado a relação do governo com grupos interessados em mudar a legislação ambiental, como a Frente Parlamentar Agropecuária, esses problemas se agravaram.


O que enfrentou

3 vezes foi quanto os incêndios na Amazônia em 2019 aumentaram em relação ao ano anterior, segundo dados analisados em pesquisa publicada na revista científica Global Change Biology no mesmo ano; o número foi o maior desde 2010


233 pessoas morreram por causa de chuvas de volume inédito na cidade de Petrópolis (RJ) em 2022

Com a chegada de Bolsonaro ao Planalto, os dados de desmatamento na Amazônia, que já apresentavam tendência de subida, deram um salto ainda mais alto. Números preliminares do sistema Deter, do Inpe, que monitora a região por meio de satélite, mostraram nos primeiros meses de 2019 números cada vez maiores de derrubada de floresta, superando governos anteriores.

3 vezes foi quanto os incêndios na Amazônia em 2019 aumentaram em relação ao ano anterior, segundo dados analisados em pesquisa publicada na revista científica Global Change Biology no mesmo ano; o número foi o maior desde 2010

Em junho de 2019, por exemplo, o Deter registrou 920,21 km² de desmate, número maior que o do mesmo mês em 2018 e 2017. Em três meses — abril, maio e junho —, o desmatamento havia crescido 24,8% em relação ao mesmo período no ano anterior. Esses dados, por serem preliminares, seriam revistos no fim do ano — quando o Inpe faz um balanço anual do desmatamento usando outro sistema, o Prodes —, mas antecipavam o diagnóstico de crescimento da atividade.


Minimizado por Bolsonaro no início do governo, o avanço sobre a Amazônia se transformou em uma crise com repercussão dentro e fora do país no meio do ano. Em agosto de 2019, fazendeiros de Novo Progresso (PA) iniciaram uma onda de queimadas nas florestas do entorno em um episódio que ficou conhecido como “dia do fogo”.


Outros focos de queimadas causadas pela ação humana surgiram na Amazônia na época. Em quase toda estação seca da região, entre os meses de julho e setembro, a floresta registra queimadas feitas após desmatamentos ou para fins agrícolas. Em 2019, porém, esses números foram muito maiores que em anos anteriores.


Na época, os governos da Noruega e da Alemanha pararam de financiar o Fundo Amazônia — que patrocinava ações de preservação na floresta — após a divulgação dos dados de desmatamento. Países como a França travaram um acordo entre União Europeia e Mercosul por causa da política ambiental, que Bolsonaro parecia não querer mudar.


O país seguiu registrando altos números de desmatamento em 2020 e 2021. No primeiro ano da pandemia de covid-19, a redução da fiscalização na Amazônia contribuiu para agravar esse quadro. Houve aumento de invasões de florestas públicas e terras indígenas, que ficaram vulneráveis à violência de grupos como garimpeiros. Em 2022, ano eleitoral, números preliminares do Inpe e de organizações da sociedade civil continuam registrando alta do desmatamento




Fora da Amazônia, o Pantanal perdeu 28% de sua vegetação nativa por causa de uma onda de incêndios em 2020. Milhões de animais morreram em decorrência do fogo. Segundo investigação da Polícia Federal, a sucessão de queimadas que perderam o controle foi iniciada por poucos fazendeiros da região.


O país registrou outros tipos de problema durante esses anos. Entre eles, estão o rompimento de uma barragem de rejeitos em Brumadinho, em 2019, o vazamento de manchas de petróleo no litoral do Nordeste no mesmo ano e a ocorrência de chuvas e inundações severas em estados como Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo entre 2019 e 2022, que deixou centenas de mortos.

233 pessoas morreram por causa de chuvas de volume inédito na cidade de Petrópolis (RJ) em 2022
O que fez
Ricardo Salles com carga de madeira ilegal apreendida pela Polícia Federal Reprodução/Twitter

20 mil garimpeiros atuam hoje de forma ilegal dentro da terra indígena Yanomami, segundo estimativa de lideranças indígenas locais

Ricardo Salles com carga de madeira ilegal apreendida pela Polícia Federal Reprodução/Twitter

O governo Bolsonaro foi marcado pelo desmonte de políticas públicas da área ambiental. Apesar do crescimento do desmatamento desde o início de seu mandato, o presidente descontinuou medidas que contribuíam para o controle da atividade e tirou poderes e recursos de órgão ligados ao Ministério do Meio Ambiente, como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).


Em 2019, quando o Inpe começou a divulgar os dados de desmatamento na Amazônia no novo governo, Bolsonaro sugeriu que os números não eram verdadeiros. O ministro do Meio Ambiente na época, Ricardo Salles, anunciou planos de querer montar um novo sistema de monitoramento da floresta. Mais tarde, o então ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, demitiu o então diretor do Inpe, Ricardo Galvão, a pedido do presidente.


Para responder à pressão nacional e internacional pela redução do desmatamento, o governo federal enviou operações militares à Amazônia entre 2019 e 2022. Em 2020, criou o Conselho da Amazônia, que ficaria sob o comando do vice-presidente e general da reserva Hamilton Mourão. Apesar de terem recebido centenas de milhões de reais, as iniciativas tiveram pouco efeito prático, e o desmate não diminuiu.


De 2004 a 2012, quando o desmatamento na Amazônia caiu mais de 80%, a principal política do governo federal era o PPCDam (Plano de Controle do Desmatamento na Amazônia Legal), que unia órgãos como o Inpe, o Ibama e a Polícia Federal. Em 2020, organizações ambientalistas foram ao Supremo denunciar que o governo havia paralisado o programa. Em 2022, a ministra Cármen Lúcia ordenou que Bolsonaro o retomasse junto com outras políticas ambientais descontinuadas nos últimos anos.


Bolsonaro foi eleito com um discurso abertamente contrário ao trabalho de órgãos como o Ibama, o ICMBio e a Funai (Fundação Nacional do Índio). Em quase quatro anos de mandato, fez ataques reiterados a seus fiscais e transformou parte significativa de seus trabalhos ao aprovar medidas como o decreto de 2019 que reduziu a aplicação de multas ambientais. No início do governo, Bolsonaro tentou mais de uma vez tirar da Funai a competência de demarcar terras indígenas, passando-as para o Ministério da Agricultura — o Congresso e o Supremo, o pararam.


Enquanto tomava essas medidas, o governo se aproximava das alas mais radicais do agronegócio — representada por figuras como Nabhan Garcia, secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura — e de grupos como garimpeiros com atuação ilegal em terras indígenas como a terra Yanomami (RR), a maior do Brasil.

20 mil garimpeiros atuam hoje de forma ilegal dentro da terra indígena Yanomami, segundo estimativa de lideranças indígenas locais

Em 2020, pouco depois de ter sido declarada a pandemia de covid-19, o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi gravado em uma reunião do governo dando uma declaração que se tornaria o emblema da política ambiental de Bolsonaro. Para ele, era preciso aproveitar o foco da imprensa na crise sanitária para “passar a boiada”, referindo-se à flexibilização de normas que não exigissem aprovação do Congresso.


Em 2021, a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) enviou ao Tribunal Penal Internacional, em Haia, uma denúncia contra Bolsonaro pelos crimes de genocídio e ecocídio por atos e omissões praticadas pelo governo contra os povos indígenas na pandemia. Em 2019, o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos e a Comissão Arns haviam apresentado denúncia semelhante. Ambas estão sob análise.


Pressionado dentro e fora do país para mudar a maneira como conduz a política ambiental, Bolsonaro sempre minimizou as críticas. Em 2019, em seu primeiro discurso na Assembleia Geral da ONU, em meio à crise do “dia do fogo”, o presidente disse que o Brasil é um dos países que mais protegem o meio ambiente no mundo e atribuiu as críticas estrangeiras a tentativas de interferência na soberania do Brasil.


Fora do Executivo, o governo apoiou projetos no Congresso que propõem a liberação da mineração em terras indígenas e mudanças nas regras de licenciamento ambiental e de regularização fundiária na Amazônia. No Supremo, representada pelo presidente da Funai Marcelo Xavier, a base bolsonarista defende o marco temporal, tese jurídica segundo a qual o direito de comunidades indígenas à terra só deve ser garantido se ficar comprovado que em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, a área estava ocupada ou sob reivindicação. Todas essas propostas estão paradas.


Ricardo Salles assumiu o Ministério do Meio Ambiente em janeiro de 2019 e o deixou em 2021, em um momento em que era investigado sob suspeita de participar de um esquema de facilitação de contrabando de madeira. Em seu lugar, assumiu Joaquim Leite, egresso da Sociedade Rural Brasileira (assim como Salles), que está no governo até hoje.


Mais discreto que Salles, Leite não criou tantas crises quanto o antecessor, mas os números do desmatamento seguem crescendo em sua gestão. Em 2021, na COP26 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), o governo apresentou uma proposta enganosa de redução de gases de efeito estufa e segurou dados de desmatamento divulgados pelo Inpe, buscando evitar desgastes no encontro.


6 Segurança Pública
6 Gestão Pública
Estímulo ao confronto e aumento das
armas
Estímulo ao confronto e aumento das armas
O que recebeu

Após um período marcado pelo agravamento dos conflitos entre facções criminosas que se interiorizaram pelo país e fizeram violentas rebeliões nos presídios, o Brasil de 2018 registrou pela primeira vez desde 2015 um recuo no número de homicídios anuais. Já o número de mortos pelas polícias aumentou, chegando a 6.220 casos, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.


Naquele ano, o Congresso aprovou uma lei que instituiu o Susp, Sistema Único de Segurança Pública, para integrar as forças de segurança federais, estaduais e municipais. A ideia era estabelecer uma nova estrutura de governança, a partir da padronização de procedimentos, do compartilhamento de informações e da publicação de dados estatísticos.


Sob o governo de Michel Temer, que instituiu um ministério dedicado exclusivamente ao tema da segurança pública, o sistema de financiamento da segurança nos estados e municípios foi incrementado, com a criação de um fundo alimentado por recursos arrecadados pelas loterias da Caixa Econômica Federal. As áreas de cultura e esporte também ganharam acesso a essas verbas.


Além disso, Temer, realizou uma intervenção federal sobre a segurança pública do Rio de Janeiro em 2018, o que impulsionou o retorno das Forças Armadas à arena política. A ação foi comandada pelo general Walter Braga Netto, que em 2020 se tornou ministro do governo bolsonarista. Nas eleições de 2022, ele é o vice de Bolsonaro na disputa presidencial.


No campo da política, em contrapartida, a violência se agravou, 2018 foi um ano marcado pelo assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), um crime não esclarecido até hoje, e pela facada contra Jair Bolsonaro, então candidato à Presidência pelo PSL. A caravana de Luiz Inácio Lula da Silva, à época o candidato petista ao Palácio do Planalto, também foi atacada, com tiros, mas ninguém foi atingido.


O que enfrentou
Policiais militares de São Paulo, durante protesto contra Bolsonaro, no centro da capital Mariana Greif/Reuters – 03/07/2021

Ao formar seu governo, Bolsonaro reuniu as áreas da Justiça e da Segurança Pública num único Ministério. Desde então, a pasta teve duas trocas de comando, a primeira delas de grande impacto político.


Ex-juiz da Lava Jato, Sergio Moro deixou o comando do Ministério da Justiça e Segurança Pública em 2020 acusando o presidente de tentar interferir na Polícia Federal para proteger parentes e aliados. Nos anos seguintes, Bolsonaro fez uma série de mudanças na diretoria-geral e em outros cargos de chefia da corporação, especialmente em lugares que investigavam casos de seu interesse pessoal.


Ao longo do mandato, o Supremo Tribunal Federal, numa ação relatada pelo ministro Luís Roberto Barroso, atendeu às demandas de partidos e cobrou atuação do governo federal para garantir a segurança de povos indígenas. A corte também determinou, numa ação relatada pelo ministro Edson Fachin, que as polícias do Rio de Janeiro estavam proibidas de realizarem operações policiais em comunidades durante a pandemia de covid-19, para não colocarem a população confinada em risco. Apenas casos excepcionais de intervenção seriam admitidos. Nos dois processos, porém, as ordens do Supremo foram desrespeitadas em alguma medida.


Ao julgar em definitivo a ação sobre as comunidades fluminenses, o Supremo determinou que os policiais do estado devem usar câmeras de filmagem em seus uniformes. A medida foi implantada em anos recentes também em Rondônia, Santa Catarina e São Paulo, onde os números de confrontos e de mortes provocadas pela polícia desabaram.


Também marcaram os anos da gestão Bolsonaro os episódios de quebra da lógica de hierarquia e disciplina que deve vigorar nas instituições policiais, sem que houvesse recriminação por parte do presidente. Foi o caso, por exemplo, do motim em 2020 da Polícia Militar do Ceará, desafiando o então governador Camilo Santana (PT). Também houve tensão na PM da Bahia em 2021. Em setembro daquele ano, houve intensa mobilização em diversos estados para impedir que policiais da ativa aderissem às manifestações bolsonaristas de pauta golpista realizadas no Dia da Independência.


O que fez
Manifestantes protestam em apoio ao presidente Jair Bolsonaro e sua política armamentista. Adriano Machado/Reuters – 09/07/2021

O Ministério da Justiça e Segurança Pública teve destaque no primeiro ano do governo Bolsonaro. Criou a Seopi (Secretaria de Operações Policiais Integradas), organizou a transferência de lideranças presas de facções criminosas para presídios federais e propôs um “pacote anticrime”, com mudanças na legislação penal. O texto aprovado pelo Congresso sofreu várias modificações pelos parlamentares, mas manteve pontos do projeto original, como o endurecimento do cumprimento de penas.


Um dos pontos do pacote barrados no Congresso pretendia blindar policiais de responderem criminalmente ao ferir ou matar alguém, alargando as situações “excludentes de ilicitude” já previstas na lei. Ao longo de todo o mandato, Bolsonaro reforçou que o cumprimento de protocolos pelas polícias não é uma preocupação dele. No Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, lançado já na gestão do ministro Anderson Torres, não havia metas relacionadas a mortes pela polícia, que bateram recordes em anos recentes.


Apesar do discurso favorável aos policiais, o governo Bolsonaro não deu andamento à implantação do Susp, aprovado na gestão anterior com o apoio das polícias. A estratégia de combate à criminalidade adotada foi escolher 5 dos mais de 5.000 municípios brasileiros para implementar o programa piloto Em Frente Brasil — que garantiria às prefeituras agentes da Força de Segurança Nacional, verbas e assistência de diversos ministérios — e depois expandir o projeto para as 120 cidades mais violentas do país. Mas o programa não vingou, terminando sem resultados consistentes.


Dessa forma, a maior política pública de Bolsonaro para a segurança foi a de ampliar o acesso da população a armas de fogo, o que era até então fortemente limitado pelo Estatuto do Desarmamento, uma lei de 2003. Sem força no Congresso para revogar o Estatuto, o governo federal promoveu uma política armamentista por meio de decretos e portarias que, na prática, subverteram a lei.


Sob as novas regras, que ampliaram a quantidade de armas e munições por pessoa, assim como o acesso a modelos antes restritos a forças de segurança, os registros de armas no Exército (caso dos CACs, os colecionadores, atiradores e caçadores) e na Polícia Federal (caso de civis que compram armas para defesa pessoal) dispararam, junto com o valor de ações de fabricantes de armas, uma indústria de forte influência no governo.


A política armamentista sequer foi acompanhada de melhorias nos sistemas de licença e de rastreio dos equipamentos. Os riscos dessa falta de controle ficaram evidentes nos casos revelados pela imprensa de compra legalizada de arsenais de fuzis em benefício de organizações criminosas. Por esse e outros motivos, a eficácia de se armar a população como estratégia de segurança pública é amplamente rejeitada em pesquisas que avaliaram esse tipo de política mundo afora.






Em 2021, o número de homicídios no país retomou a tendência de queda que começou em 2018, mas foi suspensa em 2020, e chegou ao menor patamar da série histórica registrada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública desde 2007. Foram 41,1 mil mortes, 7% a menos do que em 2020. Os números são do Monitor da Violência, um projeto do Fórum junto com o portal G1 e a Universidade de São Paulo. Para especialistas em segurança pública, o mérito pela melhora é de políticas públicas estaduais e do modelo de repasses federais estabelecido durante o governo Temer, e não das ações do atual governo federal.




Na Amazônia, a política ambiental e indigenista do governo Bolsonaro, que desmontou órgãos de controle especializados e militarizou a atuação federal na região, repercutiu sobre a segurança pública. O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips no Vale do Javari (AM), em junho de 2022, virou emblema da falta de controle do governo federal sobre aquele território, como admitiu o presidente.


Profissionais que atuam na área há décadas afirmam que ela ficou mais perigosa nos anos recentes, com a sobreposição entre tráfico de drogas internacional e atividades ilegais envolvendo pesca, caça, exploração madeireira, garimpo e grilagem. Em 2021, 29 pessoas foram mortas na Amazônia Legal, região que respondeu por mais da metade dos conflitos no campo registrados no Brasil naquele ano. Os dados são da Comissão Pastoral da Terra e também mostram que a violência rural aumentou sob o governo Bolsonaro, na comparação com as gestões de presidentes anteriores.


O clima de violência política também se aprofundou, em meio a teorias conspiratórias e discursos de ódio alimentados inclusive por autoridades do governo federal e seus aliados. Insuflados por Bolsonaro a atacarem instituições democráticas, apoiadores do presidente organizaram diversas manifestações em que pediam por um golpe militar. Fogos de artifício foram disparados em 2020 contra a sede do Supremo Tribunal Federal.


Em 2022, um líder do PT em Foz do Iguaçu (PR) foi assassinado por um homem que se apresentava como bolsonarista. Guarda municipal, a vítima reagiu antes de morrer e também atirou no bolsonarista, que sobreviveu. Diante da escalada de tensões e de uma população que chega às novas eleições presidenciais muito mais armada, instituições consideram a possibilidade de ataques caso Bolsonaro saia derrotado nas urnas.


O presidente já ameaçou não aceitar o resultado eleitoral, e há dúvidas entre analistas quanto a uma adesão de segmentos das Forças Armadas e das polícias à empreitada golpista. O ministro da Defesa, general da reserva Paulo Sérgio Nogueira, já deu mostras de que está com Bolsonaro. As polícias não aderiram às manifestações bolsonaristas do dia 7 de setembro de 2021, como se temia, mas alguns policiais já demonstraram estar dispostos a usar seus cargos para perseguir adversários políticos.


7 Corrupção
7 Corrupção
Discurso para um lado e prática para
outro
Discurso para um lado e prática para outro
O que recebeu

Maior operação de combate à corrupção da história nacional, a Lava Jato, iniciada em 2014, chegou ao início do governo Bolsonaro já com pouca força, depois de anos sendo uma das principais forças sobre a política brasileira. O juiz que se tornou símbolo da operação, Sergio Moro, tinha largado a magistratura para virar ministro da Justiça do vencedor daquelas eleições, Bolsonaro.


Após o impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT), viabilizado em 2016 pela onda antipetista alimentada pela Lava Jato, os impactos eleitorais da operação sobre os principais partidos brasileiros, e a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), algo que impulsionava o apoio às investigações, a classe política em geral ficou menos interessada na bandeira anticorrupção.


Em 2017, duas denúncias de corrupção apresentadas pela Procuradoria-Geral da República contra o então presidente Michel Temer (MDB) foram barradas pela Câmara. Temer também havia rompido com a tradição petista de indicar para o comando da Procuradoria-Geral da República o primeiro colocado da lista tríplice montada por votação dos procuradores, como foi feito por Lula, nos dois governos, e por Dilma.


Órgão de cúpula do Ministério Público Federal, a Procuradoria-Geral é a responsável por abrir investigações e processar criminalmente tanto o presidente e seus ministros quanto senadores e deputados federais. O respeito do Palácio do Planalto à indicação da instituição de um nome para comandá-la vinha sendo até então um instrumento de garantia da autonomia do Ministério Público.


No Ministério Público do Rio de Janeiro, avançavam as investigações sobre desvios de verbas na Assembleia Legislativa fluminense, atingindo o recém-eleito senador Flávio Bolsonaro, atualmente no PL. Filho de Jair Bolsonaro, Flávio passou a ser suspeito de comandar um esquema de rachadinha nos três mandatos que teve como deputado estadual. Também foi descoberto um cheque suspeito do ex-assessor de Flávio, o ex-PM Fabrício Queiroz, para Michelle Bolsonaro, casada com Jair. Há indícios de que a família Bolsonaro foi avisada da investigação e blindada do escândalo antes das eleições.


O que enfrentou
Aras em uma sessão da Comissão de Constituição de Justiça no Senado em setembro de 2019 Adriano Machado/Reuters

As investigações contra Flávio Bolsonaro avançaram. Em 2020, Queiroz foi preso, numa operação policial que o encontrou numa casa de Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro. O filho do presidente e seu ex-assessor foram denunciados pelo Ministério Público do Rio por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Mas o caso acabou enterrado em 2021, entre outros motivos porque os tribunais superiores consideraram que as provas contra Flávio foram obtidas ilegalmente.


O próprio presidente passou a figurar entre as suspeitas de rachadinha, após reportagens do portal UOL mostrarem indícios de que se tratava de um esquema familiar. Uma série de transações imobiliárias de Jair Bolsonaro, suas ex-esposas e seus filhos agravam essas suspeitas como indícios de lavagem de dinheiro. Todos negam irregularidades. De fora da política, o filho mais novo do presidente, Jair Renan, também passou a ser investigado por suspeitas envolvendo tráfico de influência dentro do governo. Ele também nega irregularidades.


Os ministérios de Bolsonaro também viraram alvo de investigações sobre corrupção. A Polícia Federal passou a investigar o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles por suspeitas de que ele colaborava com esquemas de contrabando de madeira ilegal retirada da Amazônia. A CPI da Covid no Senado também trouxe à tona diversos indicativos de que as compras de vacinas contra a covid pelo Ministério da Saúde, sob o comando do então general da ativa Eduardo Pazuello, envolveram negociações de propina. Salles e Pazuello defendem a regularidade de suas gestões.


Em 2022, as suspeitas de corrupção chegaram ao Ministério da Educação, onde pastores evangélicos sem cargo oficial estariam condicionando o acesso de prefeitos a verbas do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) para o pagamento de propina. Em junho, o ex-ministro Milton Ribeiro, também pastor, chegou a ser preso, mas foi liberado no dia seguinte. Registros de conversas de Ribeiro e de visitas ao Palácio do Planalto indicam que Bolsonaro pode ter tido envolvimento no esquema e tentado blindar o ex-ministro da Polícia Federal. Ambos negam qualquer crime. Além do FNDE, outras partes da máquina pública entregues por Bolsonaro ao comando de partidos do centrão, como a estatal de obras Codevasf, também viraram alvo de investigações.


Fora do governo, a Lava Jato foi desarticulada dentro do Ministério Público e algumas importantes condenações relacionadas à operação foram anuladas por irregularidades processuais, entre as quais a concentração indevida de processos em Curitiba e a quebra do dever de imparcialidade pelo então juiz Sergio Moro. Já o Congresso aprovou em 2019 a Lei do Abuso de Autoridade, que impôs freios à atuação dos investigadores, e em 2021, afrouxou a Lei de Improbidade Administrativa, estabelecendo maiores exigências para que um gestor público seja condenado por irregularidades. As mudanças na Lei de Improbidade foram sancionadas, sem vetos, por Bolsonaro.


O que fez
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), cumprimenta o presidente Jair Bolsonaro (PL), durante convenção do PP. Ao centro, Ciro Nogueira (PP-PI), ministro da Casa Civil. Adriano Machado/Reuters – 27/07/2022

Apesar de adotar um discurso moralizante contra a corrupção e de ter lançado um Plano Anticorrupção no final de 2020, Bolsonaro optou por desestruturar a infraestrutura nacional de combate a esse tipo de crime, o que inclui medidas contra órgãos de controle, contra a autonomia de investigações e contra a transparência pública.


Houve apenas alguns avanços normativos, no final do terceiro ano de mandato, para a proteção de servidores que denunciam irregularidades e para a publicação das agendas de autoridades. Projeto para a regulamentação do lobby também foi apresentado pelo governo federal, mas não passou no Congresso ainda. Um sistema de integridade para os órgãos federais também foi objeto de decreto.


Os avanços foram atropelados pelos retrocessos. Na Polícia Federal, por exemplo, o presidente promoveu uma série de trocas de diretores-gerais e de outros cargos de chefia, em contextos nos quais investigações da corporação poderiam afetar os interesses pessoais do presidente, de sua família ou de aliados próximos.


Essa interferência, aliás, foi a razão alegada por Sergio Moro, ex-juiz da Lava Jato, para deixar o governo em abril de 2020. Um inquérito para investigar as acusações feitas por Moro foi aberto no Supremo Tribunal Federal, mas a própria Polícia Federal informou à corte que suas investigações não revelaram atuação ilícita de Bolsonaro. A Procuradoria-Geral da República tampouco vê ilegalidade nas trocas dentro da Polícia Federal.


Para o comando da Procuradoria-Geral da República, Bolsonaro ignorou as sugestões da lista tríplice feita pela instituição e escolheu Augusto Aras, que teve o aval do Senado para ser conduzido ao cargo em 2019 e reconduzido em 2021, a partir da promessa de que não pretendia “criminalizar a política”. Diante de expectativas alimentadas por Bolsonaro de que poderia ser indicado por ele a uma vaga no Supremo Tribunal Federal, Aras se demonstrou totalmente alinhado aos interesses do presidente.


Bolsonaro acabou indicando para a corte máxima do país o então desembargador Kassio Nunes Marques e depois seu ex-ministro da Justiça e ex-advogado-geral da União, André Mendonça. Dentro do Supremo, os dois têm dado diferentes demonstrações de que atuam para proteger os interesses do presidente.


Embora tenha recebido dezenas de comunicações de crimes que teriam sido cometidos pelo chefe do Executivo, o procurador-geral nunca pediu ao tribunal a abertura de uma ação contra Bolsonaro. Nem mesmo o relatório produzido pela CPI da Covid no Senado, com centenas de páginas de documentação, teve desdobramentos contra a cúpula governista. Aras também escolheu acabar com o modelo de forças-tarefas que ganhou força com a Operação Lava Jato, ao argumento de que esses grupos, entre outros problemas, tinham autonomia excessiva dentro do Ministério Público, atuando à margem de controles.


Outros órgãos de controle, cujas atividades são fundamentais para a detecção de corrupção e outros ilícitos, também foram enfraquecidos, seja pela perda de funções ou pelo esvaziamento de recurso, seja pelo assédio do governo à autonomia de seus servidores. O assédio institucional aconteceu, por exemplo, com o Ibama (Instituto do Meio Ambiente), que fiscaliza crimes ambientais, como aqueles dos quais o ex-ministro Ricardo Salles é suspeito. Aconteceu também com o Coaf e a Receita Federal, após esses órgãos terem apontado indícios de irregularidades nas transações financeiras do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do presidente. Nem as mais altas cortes do país, como o Supremo Tribunal Federal e o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), escaparam do assédio presidencial.


A transparência pública também sofreu forte recuo na gestão Bolsonaro, impedindo uma avaliação sobre a regularidade da atuação governamental. Isso aconteceu tanto pela operação de “gabinetes paralelos”, caso da Saúde e da Educação, quanto pelo uso abusivo que a Presidência e seus ministérios fizeram da legislação para manter sob sigilo as mais variadas informações de interesse da sociedade, como compras públicas e agendas de autoridades. Tudo isso com a complacência da CGU (Controladoria-Geral da União), que é submetida à Presidência.


Outro foco histórico de corrupção no Brasil diz respeito à relação Executivo-Legislativo. No governo Bolsonaro, essa relação sofreu uma mudança estrutural, deixando blindadas do controle público dezenas de bilhões de reais, um volume de recursos muito maior do que qualquer esquema de corrupção já descoberto. Trata-se do que ficou conhecido como “orçamento secreto”, um esquema pelo qual o Congresso, sobretudo o chamado centrão, se aproveita da falta de regulamentação de uma rubrica antes diminuta, as emendas do relator, para operar fatia orçamentária superior a de ministérios, sem a transparência devida.


Isso acontece com o aval do governo federal, que é o responsável pela liberação dos recursos e costuma fazer isso às vésperas de votações importantes no Congresso, privilegiando parlamentares fiéis ao Executivo. Em troca de sustentação parlamentar, inclusive para evitar o encaminhamento dos tantos pedidos de impeachment apresentados à Câmara, o presidente e seus ministros abrem mão de organizarem políticas públicas estruturadas nacionalmente, enquanto o dinheiro público é distribuído por municípios pelo país sem critérios técnicos e conforme interesses individuais (e eleitorais) de deputados e senadores.


Sobram indícios de corrupção na alocação dessas verbas, liberadas para municípios minúsculos, em benefício de prefeituras aliadas (ou mesmo comandadas por parentes dos parlamentares) e de empresas contratadas para a oferta de produtos ou serviços (por vezes dirigidas por pessoas vinculadas a parlamentares). Reportagens de diversos veículos, inauguradas pelo jornal O Estado de S. Paulo, revelam indicativos de que parlamentares cobram a devolução de parte das verbas para seus próprios bolsos, enquanto prefeitos camuflam o esquema em compras superfaturadas e dados fraudados.