‘Temos que usar toda a nossa ciência para distribuir bem-estar’

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Retrato do neurocientista Sidarta Ribeiro

Sidarta Ribeiro

— Neurocientista

14 de ago de 2020

“Temos que usar toda a nossa ciência para distribuir bem-estar”

Sidarta Ribeiro é biólogo, mestre em biofísica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor em comportamento animal pela Universidade Rockefeller, em Nova York, tem pós doutorado em neurofisiologia pela Universidade Duke, na Carolina do Norte. É professor titular de neurociência e vice-diretor do Instituto do Cérebro na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal. Também é diretor da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Em 2019, lançou o livro “O oráculo da noite”, publicado pela Companhia das Letras. Abaixo, confira o podcast com o áudio da entrevista e uma versão condensada da conversa por escrito.

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Como você explicaria a sua área de pesquisa para alguém que não sabe o que você faz?

Todo mundo sonha, embora nem todo mundo se lembre de que sonha toda noite. Eu começaria dizendo que o que eu estudo é o que acontece no cérebro e no corpo das pessoas quando elas estão experimentando um sonho. Tento entender como isso evoluiu, por que evoluiu, que vantagem trouxe para os nossos ancestrais e que importância pode ter para o momento em que a espécie vive.

Por que é importante entender o que se passa na nossa cabeça quando dormimos?

Nós somos herdeiros de uma longuíssima tradição de animais que dormem. Muito longa, muito antiga. Dependendo da definição de sono que a gente utiliza, isso remonta ao início da vida animal. O sonho não. O sonho é uma coisa mais recente, mas ainda sim muito antiga. O sonho está presente nos mamíferos, e portanto há 220 milhões de anos existem sonhadores neste planeta.

São dois processos: um antiquíssimo e outro só muito antigo, e isso tem impacto direto na vida da gente. Isso tem a ver com o quanto a gente aprende, tem a ver com nosso amor, relações sociais, tem a ver com a maneira com que a gente lida com situações adversas, a nossa adaptabilidade à situações que estão sempre mudando.

Qual o maior desafio de comunicar a ciência para as pessoas?

Acho que o maior problema que temos é que o ensino fundamental e médio são ruins. Porque as professoras e professores são muito mal pagos, existe hiper lotação nas salas de aula, existem poucos recursos, falta de estrutura nas famílias. As pessoas têm vidas muito difíceis, pouca harmonia em casa, pouco espaço, pouco livro ou livro nenhum.

Quando vem um vírus como esse, que coloca em xeque o planeta, as pessoas não têm conhecimentos básicos sobre biologia para se proteger. E também não têm conhecimentos básicos de cidadania para entender seus direitos. É absurdo que as pessoas não tenham suporte efetivo do governo para poder fazer o isolamento. É absurdo que o governo não tenha sido capaz de mobilizar a população para fazer o distanciamento social. A situação é muito grave, e as pessoas estão de fato morrendo – sobretudo as pobres, sobretudo negros, negras. É uma calamidade. E isso tudo tem a ver com ciência e com acesso à saúde.

Qual é o estado da pesquisa neurocientífica no Brasil hoje?

O Brasil tem uma tradição em neurociências de muitas décadas. As pessoas que começaram a fazer ciência no Brasil nas áreas biomédicas rapidamente foram em direção ao cérebro, tanto no Rio de Janeiro, como em São Paulo. E depois foram se espalhando por todo o Brasil, em psiquiatria, depois neurologia, depois neurociência, neurobiologia. Temos muitos pesquisadores e pesquisadoras importantes trabalhando no Brasil e no exterior.

A ciência brasileira é uma rede internacional de pesquisadores no planeta. Isso está em risco, porque toda a ciência brasileira está em risco. As coisas já não vinham bem e foram piorando, piorando, piorando e agora é uma situação de calamidade, no momento em que a gente mais precisa da ciência. A ciência está em grande desprestígio, sem condições de reagir, com financiamento em queda, depois de vários anos já de contingenciamento de recursos.

Um exemplo: o FNDCT, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, é um recurso que é recolhido junto ao setor privado para financiar ciência, tecnologia e inovação. Ele está contingenciado em 90% há vários anos, e continua contingenciado mesmo com a gente sob a pandemia. É uma situação muito grave, e a neurociência não é uma exceção.

Reprodução / Instituto do Cérebro - UFRN

O neurocientista Sidarta Ribeiro usa uma camisa branca e calças azul escuro. Ele está sentado, olhando para frente, com um dos braços apontando para frente.

Confraternização do Instituto do Cérebro da UFRN, em 2017

Reprodução / Instituto do Cérebro - UFRN

Seis pessoas sentadas em uma mesa. Duas mulheres e quatro homens. O neurocientista Sidarta Ribeiro está ao centro, usando uma camisa branca, olhando para o lado direito.

Reunião do comitê internacional do Instituto do Cérebro da UFRN, em 2014

Você vê esperança para reverter esse cenário?

Claro que sim. A esperança é a última que morre. O Brasil está passando por um momento de grande crise, um momento em que a nossa alma brasileira está em discussão. Nós somos um povo generoso que gosta da cultura, que exige cuidado com os mais vulneráveis? Nós somos um povo que adere à ciência, que adere a princípios éticos? Ou nós somos um povo bandalho, um povo assassino, genocida, que não está nem aí para ninguém? Um povo que só quer tirar vantagem, que só quer se aproveitar? Racista, machista, misógino, anticiência? O que a gente é? Isso que está em jogo. Eu tenho muita esperança no Brasil. O Brasil é um grande país. A gente tem muito a contribuir com o planeta, mas antes precisamos fazer o nosso dever de casa.

Há muitos saberes sobre a consciência e os sonhos que não são da raiz da ciência e que estavam fora da discussão. As neurociências estão começando a colocar isso na panela

A neurociência se popularizou com o público geral nos anos recente. Nós entendemos o que ela é?

Existia um fosso – que existe ainda –  entre a biologia e a psicologia. A biologia está bem conectada com a química, que está muito bem conectada com a física, que está excelentemente bem conectada com a matemática. Nessa direção, temos um bloco bem conectado de saberes cada vez mais interligados. 

Do outro lado, temos a psicologia e depois da psicologia, todas as ciências humanas. A antropologia, a sociologia, até chegar na literatura, chegar à arte. Esses dois grandes campos do saber estavam pouco conectados há uns 30, 40 anos. Hoje eles estão muito mais conectados e essa ponte tem muito a ver com o que hoje se conhece como neurociência.

Mas por que neurociência ou até neurociências? Porque muitos conhecimentos contribuem e convergem para tentar fazer essa ponte entre corpo e mente. Essa é a promessa. As neurociências estão nessa encruzilhada, nesse entroncamento de conhecimentos quantitativos e qualitativos e que estão tentando plasmar um novo entendimento do que é a consciência humana. Mas acho que também temos que ter clareza que o caminho a ser percorrido é muito vasto, tem muita coisa para a gente aprender ainda, até porque toda a psicologia que veio da ciência de raiz europeia e de cultura judaico-cristã é só uma parte do conhecimento, sobretudo sobre a mente.

Quando falamos em consciência, temos que pensar em muito mais profundidade sobre os outros saberes, os saberes tradicionais, seja os saberes do Oriente –  as tradições em torno do Himalaia de conhecimento da mente –, seja os saberes xamânicos, ameríndios, de aborígenes australianos. Tem muitos saberes sobre a consciência e sobre os sonhos que não são da raiz da ciência, e isso esteve totalmente fora da discussão, mas as neurociências estão começando a colocar isso na panela. 

Do meio para o final do século 20, a discussão passou a ser ‘olha, todo conhecimento interessa’. Isso vai muito na linha do filósofo Paul Feyerabend, que falava isso: ‘eu não posso descartar o conhecimento gerado pelos índios hopi ou pelos xavante, porque eu não sei quando ele será útil, nem em qual contexto’. Uma chave que não encaixa na fechadura agora pode servir mais adiante.

As ideias voltam porque o contexto muda. A evolução das ideias é uma coisa complexa, e eu acho que uma perspectiva mais ampla, mais sistêmica, da ciência no século 21 deixa de entender essas disciplinas como todas separadas, entende isso como sendo aspectos de uma mesma realidade.Isso também permite que tenhamos conhecimentos mais profundos sobre o que é estar consciente de se ter uma mente.

Wikimedia Commons

Retrato de Paul Feyerabend olhando para a câmera, sentado em uma poltrona de couro, com o rosto apoiado na mão direita

PAUL FEYERABEND(1924-1994) foi um filósofo da ciência austríaco conhecido por rejeitar a ideia de que regras metodológicas deveriam ser usadas pelos cientistas em todas as ocasiões.

Defensor da ideia do "anarquismo teórico", Feyerabend acreditava que o caráter prescritivo do método científico era uma limitação ao verdadeiro progresso.

Como é um dia de trabalho normal de um cientista que está pesquisando o sono e os sonhos?

No Instituto do Cérebro, o cotidiano mudou muito. Bom, agora na pandemia, mudou para todo mundo. Mas antes, raramente eu estava na bancada. Geralmente eu estou no início, na orientação dos alunos, na geração das ideias, das perguntas. Então, se você perguntar como é meu dia típico, na verdade os dias típicos acabaram, cada dia é de um jeito, cada dia pede uma coisa completamente diferente.

Antes da pandemia eu estava há muito tempo, há uns 10 anos na verdade, entrando num processo que hoje me parece um tanto patológico: o processo de viajar demais, dar palestra demais, em lugares diferentes demais. Na época me parecia uma ótima ideia. Eu achava muito bom, mas depois eu comecei a ver que aquilo tava custando muito caro para minha família, para os meus amigos, para os meus alunos, para o meu laboratório e para a minha vida. E percebi que isso era uma coisa que eu precisava diminuir, mas eu não tava conseguindo diminuir. Há vários anos eu dizia para mim mesmo e para todo mundo que ia diminuir e só aumentava. E aí a pandemia cortou, e hoje eu me considero em rehab.

O sonho virou uma espécie de farol para o futuro, probabilístico. E isso é algo que nos deu muita vantagem

Você diz que os sonhos são ‘verdadeiros oráculos probabilísticos’. Que ideia é essa?

Na antiguidade, os sonhos eram centrais para a gestão do Estado e para a gestão da vida das pessoas. Isso está extremamente bem documentado, em toda etnografia antropológica. O sonho foi central para nossa espécie com certeza, desde que temos registro histórico disso. 

Portanto, é muito razoável imaginar que essa importância não começou subitamente há 4.500 anos quando inventaram a escrita, essa importância é anterior. A gente tem que entender a consciência humana como vinda de um contínuo de consciências de outras espécies. Então, dentro desse contexto, se a gente olhar há 4.500 anos, temos sonhos que falam sobre o futuro, então os sonhos têm uma característica de oráculo, de previsão de futuro. 

Quais sonhos? Alguns sonhos. Outros, não. Muitos têm a ver com o passado. Isso era sabido na Grécia, em Roma, era sabido pelos xavantes, pelos munduruku, sabido pelos yanomami, era um fato. Isso começa a mudar eu diria em torno de 1500, quando a ciência e o capitalismo começam a evoluir. 

A ciência e o capitalismo crescem imbricados, entrelaçados. E a ciência foi aumentando. A produtividade aumentou, o acúmulo de capital também. Isso tudo permitiu mais investimentos em ciência. É uma relação muito virtuosa, no sentido de que um alimenta o outro, mas também uma relação de um ciclo vicioso de geração de – por falta de palavra melhor – externalidades. A ciência ajudou o capitalismo, o colonialismo, o mercantilismo e o escravismo. A ciência foi propulsora de tudo isso. É uma contradição que a ciência carrega. Hoje eu acho que essa contradição está aparecendo e ela vai ter que ser resolvida.

Esse oráculo remonta há 200 milhões de anos. Então, o que que ele é biologicamente? Que mecanismo pode gerar isso? Essa é a conjectura central do livro “O oráculo da noite”: [a partir dos sonhos, termos] a possibilidade de encadear memórias e gerar uma história complexa, e então simular comportamentos complexos, e as consequências disso. 

O sonho então virou uma espécie de farol para o futuro. Probabilístico. E isso é algo que nos deu muita vantagem. O sono e os sonhos têm tudo a ver com a inteligência, com a criatividade, com a capacidade de formar memórias e com a capacidade de esquecer o que precisa ser esquecido, porque tudo isso está junto.

Reprodução / Capoeira Brasil Natal

Um grupo de seis homens sentados. Três deles estão de costas. Eles usam trajes brancos e estão acompanhados de instrumentos de capoeira. O neurocientista Sidarta Ribeiro está ao centro.

EVENTO DO GRUPO DE CAPOEIRA BRASIL NATAL, EM 2017

Você consegue desligar a mente do seu trabalho?

Passei dos 15 até os 49 anos – até mais ou menos março de 2020 – num movimento muito ligado para o futuro, de produção, de geração de ideias, geração de coisas, de livros, de artigos, de falas. Eu também sou da capoeira, ainda bem. 

Se deixasse, a ciência ia me engolir e me levava. A capoeira me conectou na vida. Os filhos me conectaram na vida, e aí, na pandemia eu entrei em profunda crise com esse jeito de viver. E eu estou em rehab, estou vivendo o amor, vivendo com amor e cuidando da vida, fazendo as coisas com muita intensidade.

Passei muito tempo comendo comida fria, pulando refeição. Hoje eu estou voltando ao prazer que eu tinha de ler um livro com muita calma, de fazer as coisas com calma, diminuir, saber dizer não para os convites do mundo. Porque essa fornalha capitalista de aumento de produtividade para todo mundo – seja você um empregado numa fábrica no sul da China, seja você um produtor de cinema – ainda vai matar a todas e todos. A gente tem que sair dessa.

Eu acho que a gente está vivendo um momento glorioso da espécie humana. A gente tem a chance de ficar aqui por mais uns mil anos, se a gente realmente fizer uma transcendência cultural. Atualizar esse software de 2.000 anos atrás chamado Cristianismo. Entender esse negócio de amar os outros como a si mesmo e realmente botar isso para rodar, e usar toda a ciência que a gente tem para distribuir bem-estar.

Para ter bem-estar você não precisa ter 1 bilhão de dólares, nem 1 milhão, nem mil. Basta ter comida, teto, alimentação, esporte, cultura, ciência e sobretudo amor. E saúde, né? Se a gente entender isso profundamente, a gente faz um salto. Se a gente não entender isso, não vamos durar.

Se deixasse, a ciência ia me engolir e me levava. A capoeira me conectou na vida

O que é um dia perfeito para você?

Hoje? Estar com as pessoas que eu mais amo, com meus filhos bem pertinho de mim, com muita música, com comida vegana e capoeira. E livro. E sim, Netflix.

3 livros que inspiraram Sidarta Ribeiro

O Nexo pediu para o cientista indicar três livros que marcaram a sua trajetória pessoal e profissional.

Grande Sertão: Veredas

João Guimarães Rosa

Publicado em 1956, “Grande sertão: veredas” conta a história de Riobaldo, um jagunço do sertão brasileiro que relembra a própria vida, em especial a relação com Diadorim, seu companheiro de batalhas. É considerado um dos livros mais importantes da literatura brasileira.

O GUARDADOR DE REBANHOS

Fernando Pessoa

Publicado em 1925, o livro é uma coleção de poemas escritos por Fernando Pessoa sob o pseudônimo de Alberto Caeiro. Segundo Pessoa, todos os poemas surgiram numa noite de insônia de Caeiro.

A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS

Sigmund Freud

Um dos livros base da psicanálise, “A interpretação dos sonhos”, publicado em 1899, oferece caminhos possíveis para recordar, relatar e interpretar as imagens mentais presentes no processo onírico.

Produzido por Cesar Gaglioni

Arte por Guilherme Falcão e Sariana Fernández

Desenvolvimento por Thiago Quadros

Edição por Letícia Arcoverde

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A série ‘Cientistas do Brasil que você precisa conhecer’ contou com o apoio do programa de divulgação científica do Instituto Serrapilheira, uma instituição privada sem fins lucrativos, criada em março de 2017, com o objetivo de financiar pesquisas de excelência com foco em produção de conhecimento e iniciativas de divulgação científica.