ESPECIAL
Como enfrentamos as doenças tropicais negligenciadas
12 de setembro de 2024
Por Gabriel Zanlorenssi
Com Giovanna Hemerly
Pessoas vivendo na pobreza estão
mais vulneráveis a essas patologias.
Entenda a importância dos esforços
de combate e como isso se relaciona
com a redução das desigualdades
Nos últimos séculos, a humanidade desenvolveu vacinas e remédios contra doenças que há milênios nos atingiam. Ainda assim, ao redor do mundo, milhões de pessoas perdem suas vidas para condições para as quais já temos tratamento, prevenção ou cura.
É um sofrimento desnecessário, vivido principalmente por pessoas de países tropicais de baixa renda, com pouco acesso ao sistema de saúde.
Um conjunto dessas doenças recebe o nome de tropicais negligenciadas. A Organização Mundial da Saúde possui uma lista com 20 delas, para as quais deve haver um esforço global de combate.
O mundo já fez muito progresso nas décadas recentes, mas há ainda muito a ser feito. Este especial do Nexo explica o que são as doenças tropicais negligenciadas, com detalhes de cada uma delas, e por que o combate dessas doenças é importante para a redução da pobreza e das desigualdades.
1,6 bilhão de pessoas precisam
anualmente de alguma intervenção,
preventiva ou curativa, contra
doenças tropicais negligenciadas.
Isso equivale a uma a cada cinco
pessoas no mundo
Fonte: Organização Mundial da Saúde
O que são as doenças tropicais
negligenciadas?
O termo foi popularizado pelo microbiologista americano Peter Hotez no início dos anos 2000. Na época, havia discussões crescentes sobre a necessidade de intervenção e cooperação global para enfrentar essas patologias.
A lista mantida pela OMS inclui em torno de 20 condições, causadas por diferentes agentes patológicos, como fungos, vírus e bactérias. Essas doenças são normalmente transmitidas por vetores, como mosquitos e outros animais.
A lista não é muito extensa, mas inclui doenças muito conhecidas dos brasileiros, como a dengue, a chikungunya, a doença de Chagas e a leishmaniose. A única condição que não é infecciosa na listagem da OMS são as picadas de cobra.
Doenças tropicais negligenciadas
com mais impacto
Considerando os anos de vida perdidos, em 2021
CISTICERCOSE
ONCOCERCOSE
LEISHMANIOSE
ESQUISTOSSOMOSE
EQUINOCOCOSE
DENGUE
RAIVA
HANSENÍASE
TRACOMA
FILARIOSE LINFÁTICA
DOENÇA DE CHAGAS
GEO-HELMENTÍASES
DOENÇA DO SONO
TREMATODÍASES
DRACUNCULÍASE
Nesta visualização, o tamanho é proporcional ao impacto,
medido pelos anos de vida perdidos. A categoria “outras
doenças tropicais negligenciadas” não é exibida, mas teria
o dobro do tamanho da dengue. Para permitir a melhor
visualização, as categorias têm um tamanho mínimo.
Fonte: Global Burden of Disease. Dados mais recentes.
Distribuição das doenças tropicais
negligenciadas
Pessoas que precisaram de tratamento
em 2021, a cada 100 habitantes
0
+ de
70
1
10
20
30
40
50
60
70
Trópico de Câncer
Brasil
4,6
Trópico de Capricórnio
Fonte: Our World in Data, com dados da Organização
Mundial da Saúde e da ONU. Dados mais recentes.
A saúde nos trópicos foi uma prioridade das grandes potências europeias durante a colonização da África e da Ásia. O desenvolvimento de tratamentos e vacinas era crucial para o sucesso do empreendimento colonial. Essa atenção às condições sanitárias, no entanto, estava frequentemente voltada mais para garantir a exploração econômica do que para o bem-estar das populações locais.
As doenças tropicais também são um fator que dificulta o crescimento dos países que foram colonizados. A Organização Mundial da Saúde entende o combate a essas condições como prioritária para diminuir as desigualdades entre as nações.
Qual a importância da lista?
A OMS estabelece objetivos e um conjunto de metas de combate às doenças tropicais negligenciadas. Uma doença estar na lista representa uma prioridade global. “Aumenta a conscientização sobre ela e pode atrair mais interesse da mídia e financiamento para pesquisas”, aponta José Moreira, diretor médico do Instituto Butantan.
Mas, em um sentido mais amplo, qualquer doença que tem determinante social pode ser negligenciada. Além do determinante de pobreza, essas doenças têm em comum o fato de que são um problema de saúde pública em países de renda baixa. Doenças como mayaro e oropuche, com casos recentes no Brasil, não fazem parte da lista, mas podem ser adicionadas em algum momento pela OMS. A última inclusão foi uma doença chamada noma, uma infecção grave dos tecidos faciais, em dezembro de 2023.
Por que são tropicais?
O clima quente e úmido é favorável para a sobrevivência e reprodução tanto dos agentes como dos vetores que transmitem essas doenças. Nessas regiões, há também mais biodiversidade, com um número maior de seres vivos em contato com os humanos.
Nem todas as doenças tropicais são transmitidas por vetores, mas os mosquitos, em especial, costumam ser um ponto de atenção de autoridades de saúde.
Trópico de Câncer
Trópico de Capricórnio
Mais de 40% da população
mundial vive entre os trópicos
O clima quente e úmido é favorável para a sobrevivência e reprodução tanto dos agentes como dos vetores que transmitem essas doenças. Nessas regiões, há também mais biodiversidade, com um número maior de seres vivos em contato com os humanos.
Agentes são os microrganismos que causam a doença, como o vírus da dengue. Já os vetores são os responsáveis pela transmissão, como o mosquito-da-dengue.
A maioria das doenças tropicais negligenciadas são causadas por microrganismos. A transmissão pode ocorrer de diversas formas, com ou sem os vetores. Mas as diversas espécies de mosquitos são um ponto especial de atenção.
Diferenças entre agentes e vetores
a partir do ciclo da dengue
Fêmea do Aedes
Aegypti é o vetor
O vírus da dengue
é o agente
Ao picar uma pessoa que já está
com dengue, ela ingere o vírus
junto com o sangue.
O vírus sobrevive dentro
do mosquito, que pica
uma outra pessoa
A pessoa picada adquire a dengue
Os países que estão na faixa tropical são os mais atingidos, especialmente os mais pobres. Existem poucas exceções, de nações em cenário de escassez extrema, como Coreia do Norte e Síria, que são bastante atingidos e estão fora dos trópicos.
A população de países ricos na faixa tropical, como da Austrália, não é tão afetada. Isso se explica para além da renda mais elevada da população.
Há maior infraestrutura, políticas públicas e programas de vigilância e controle.
Doenças tropicais
negligenciadas e renda
paÍSES COM MAIS DE UMA INTERVENÇÃO A
CADA 100 HABITANTES, EM 2021
PIB per capita maior
que 10 mil dólares
PIB per capita menor
que 10 mil dólares
Trópico de Câncer
Trópico de Capricórnio
Nenhum país com renda per
capita abaixo de 10 mil dólares
por ano está fora da lista
Fonte: Our World in Data, com dados de Organização
Mundial da Saúde, ONU e Banco Mundial. Com dados de
fontes complementares para o PIB de Coreia do Norte,
Venezuela, Síria e Sudão do Sul.
O efeito das
mudanças climáticas
Com o aquecimento do planeta, as áreas tropicais e subtropicais podem avançar em direção a regiões que hoje têm clima frio. A dengue, por exemplo, já é uma preocupação nos Estados Unidos e em diversos países europeus.
O impacto maior, no entanto, continua sendo em países tropicais de renda baixa. Isso porque suas populações são mais vulneráveis a fenômenos climáticos extremos, que facilitam a propagação dessas doenças e dificultam os esforços de combate.
Por que são negligenciadas?
São consideradas negligenciadas porque constituem um problema de saúde pública, mas recebem menos atenção e menos recursos de financiamento em comparação com outras condições. Atingem países e populações que têm menos recursos para combatê-las.
Apesar do peso grande sobre a vida humana, há pouco incentivo para o desenvolvimento de tratamentos, curas ou vacinas. Menos de 5% do financiamento global de medicamentos se destina às doenças tropicais negligenciadas, segundo a Fiocruz.
Poucos recursos para pesquisas
Valor investido globalmente em
pesquisa e desenvolvimento em 2022
MALÁRIA
603 milhões
COVID-19
42 bilhões de dólares
DOENÇAS TROPICAIS
NEGLIGENCIADAS
322 milhões
Mais de um terço vai para
a dengue e doença de Chagas
Fonte: Our World in Data, com dados de Policy
Cures Research. Dados mais recentes.
Pobreza e estigma
A falta de saneamento básico, de água potável, de nutrição adequada e de acesso a serviços de saúde são fatores que facilitam a transmissão e o agravamento dessas doenças. A carência desses recursos é mais comum em comunidades que enfrentam a pobreza extrema. O impacto físico e social que as doenças tropicais negligenciadas têm sobre as pessoas atingidas limita a geração de renda e o desenvolvimento infantil, com potencial de perpetuar a pobreza.
A pobreza acaba sendo um determinante do porquê as pessoas ainda sofrem com essas condições. Para a maioria dessas doenças, já temos estratégias de combate e intervenção eficazes. “O estigma leva ao isolamento das pessoas e dos pacientes e muitas vezes os leva à autodepreciação. Essas doenças têm cura, mas precisam de atenção precoce para evitar sequelas que possam prejudicar a vida”, aponta João Victor Kersul, presidente do MNDN (Movimento Nacional das Doenças Negligenciadas).
Um exemplo é o noma, condição conhecida desde a antiguidade e que desapareceu da Europa desde as grandes guerras. É uma infecção que começa na boca e se espalha pelos tecidos faciais. Atua de forma oportunista, se aproveitando da desnutrição infantil e falta de condições de higiene.
Esta doença pode ser tratada quando identificada rapidamente, mas em casos avançados pode levar a amputações que comprometem a capacidade de falar e de ingerir alimentos. Os sobreviventes sofrem com o estigma, que reduz oportunidades de educação e emprego, além dos custos permanentes com saúde.
Outras doenças tropicais negligenciadas, com diferentes consequências, também afetam a produtividade. Ao nível nacional, isso empobrece as comunidades e tem o potencial de reduzir o PIB.
As doenças tropicais negligenciadas perpetuam um ciclo de pobreza e exclusão. “A exclusão se dá pelas condições de vida e trabalho que adoecer de uma doença estigmatizada provoca ou aumenta”, aponta Paula Brandão, professora da UERJ e voluntária do Morhan.
Pobreza aumenta as chances
de adquirir doenças tropicais
negligenciadas
São facilitadas por:
Acesso à saúde precário
Falta de infraestrutura
Insegurança alimentar
Baixa escolaridade
Desnutrição
Essas doenças causam
sofrimentos desnecessários,
podendo incapacitar ou até matar
Elas causam:
Prejuízos ao desenvolvimento
Deficiências permanentes
Sequelas físicas
Fraqueza
Dor
E isso perpetua um ciclo de
pobreza que precisa ser rompido
São consequências:
Custos com saúde
Menos oportunidades
Estigma e preconceito
Baixa escolaridade
Isolamento social
O impacto sobre as crianças
As crianças carregam o maior peso das doenças tropicais negligenciadas. Metade dos casos dessas doenças, incluindo a malária, são de crianças de até nove anos.
Além do sofrimento com a vida encerrada precocemente, as doenças tropicais negligenciadas também afetam o desenvolvimento infantil. As verminoses, por exemplo, causam deficiências de nutrientes, que comprometem a vida escolar.
A proteção das crianças é um dever da humanidade, mas as doenças tropicais negligenciadas são uma violação deste direito das crianças. O combate a essas doenças tem também um efeito de longo prazo de melhoria da qualidade da população.
Incidência global de doenças
tropicais negligenciadas por idade
Menos de 5 anos
32,3%
5 a 9 anos
15,1%
12,5%
10 a 14 anos
9,3%
15 a 19 anos
Mais de 20 anos
30,8%
Fonte: Global Burden of Disease. Inclui a malária.
Dados mais recentes.
O papel do Brasil
no combate a essas doenças
Pioneiros como Carlos Chagas, Vital Brazil, Oswaldo Cruz e Fonseca Pedroso deram contribuições essenciais para o entendimento científico das doenças tropicais.
Desenvolveram também um pensamento a partir dos trópicos e para os trópicos, que deu um papel de destaque para o Brasil na saúde global.
Dentre os países afetados, o Brasil é um dos que mais possuem recursos científicos e de saúde pública. Há grandes produtores públicos de vacinas e medicamentos, como o Instituto Butantan e a Fiocruz. Os laboratórios privados também dispõem de muita estrutura, alguns deles colaboram com a OMS para o fornecimento de medicamentos a outros países.
“O Brasil tem condições de ser um líder global no combate a essas doenças tropicais”, avalia Carlos Costa, professor da UFPI e pesquisador do Ciaten. “Precisamos entender a importância da ciência e que o retorno não é imeadiato”, completa.
Apesar dos avanços, as doenças tropicais negligenciadas ainda persistem em nosso país, em especial em áreas vulneráveis, como o território Yanomami.
Em 2024, o governo federal lançou o programa “Brasil Saudável”, que é uma cooperação entre vários ministérios para enfrentar as doenças determinadas socialmente, como a tuberculose e as tropicais negligenciadas. “O problema das doenças negligenciadas vai além da unidade básica de saúde; envolve moradia digna, saneamento básico e água tratada”, aponta João Victor Kersul do MNDN, que avalia a iniciativa de forma positiva.
Para Alexandre Menezes, da NHR Brasil, o “programa é um exemplo de como políticas públicas podem ir além do setor saúde, integrando diferentes áreas para enfrentar as doenças negligenciadas”. “O combate requer mais do que diagnóstico, é uma luta contra desigualdades sociais”, completa.
Os progressos e os desafios
O mundo fez muito progresso nas últimas décadas no combate às doenças tropicais negligenciadas. É um exemplo de como a cooperação global é eficaz em resolver problemas coletivos.
Progressos estão sendo
feitos no mundo
NÚMERO DE MORTES ANUAIS
POR DOENÇAS TROPICAIS NEGLIGENCIADAS
200 mil
150
100
50
0
1980
1990
2000
2010
2020
100 mil pessoas ainda perdem
suas vidas todos os anos por
conta dessas doenças
Fonte: Global Burden of Disease.
Mas há ainda muitos desafios, exigindo que estes esforços sejam sempre contínuos. A Organização Mundial da Saúde mantém uma lista de objetivos para 2030, em relação às doenças tropicais negligenciadas.
Até hoje, a única doença erradicada pela humanidade foi a varíola. Esse é um cenário plausível para outras duas doenças na lista da OMS: bouba e dracunculíase. Para as demais condições, os objetivos passam por diferentes níveis de controle.
Objetivos para 2030
Considerando o maior número
de países atingindo esse patamar
Erradicação
Dracunculíase; bouba
Eliminação da transmissão
Tripanossomíase africana (gambiense); oncocercose; hanseníase
Eliminação como problema
de saúde pública
Doença de chagas; tripanossomíase africana
(rodiense); leishmaniose visceral; filaríose
linfática; esquistossome; geo-helmentíases;
raiva; tracoma
Controle
Úlcera de Buruli; dengue; equinococose; trematodíases; micetoma, cromoblastomicose e outras micoses profundas; sarna e outras ectoparasitoses; picadas de cobra; teníase e cisticercose
Fonte: Organização Mundial da Saúde.
Clique abaixo e saiba mais
sobre cada doença tropical
negligenciada da lista da OMS
As informações abaixo são da Organização Mundial da Saúde. Fontes complementares consultadas estão nos links dos textos. Nenhuma informação listada neste material serve como guia médico. Procure os serviços de saúde em caso de sintomas ou dúvidas.
Pessoas vivendo na pobreza estão mais vulneráveis a essas patologias. Entenda a importância
dos esforços de combate e como isso se relaciona com a redução das desigualdades
Nos últimos séculos, a humanidade desenvolveu vacinas e remédios contra doenças que há milênios nos atingiam. Ainda assim, ao redor do mundo, milhões de pessoas perdem suas vidas para condições para as quais já temos tratamento, prevenção ou cura.
É um sofrimento desnecessário, vivido principalmente por pessoas de países tropicais de baixa renda, com pouco acesso ao sistema de saúde.
Um conjunto dessas doenças recebe o nome de tropicais negligenciadas. A Organização Mundial da Saúde mantém uma lista com 20 delas, para as quais deve haver um esforço global de combate.
O mundo já fez muito progresso nas décadas recentes, mas há ainda muito a ser feito. Este especial do Nexo explica o que são as doenças tropicais negligenciadas, com detalhes de cada uma delas, e por que o combate dessas doenças é importante para a redução da pobreza e das desigualdades.
1,6 bilhão de pessoas precisam anualmente de
alguma intervenção, preventiva ou curativa,
contra doenças tropicais negligenciadas. Isso
equivale a uma a cada cinco pessoas no mundo
Fonte: Organização Mundial da Saúde
O que são as doenças tropicais negligenciadas?
O termo foi popularizado pelo microbiologista americano Peter Hotez no início dos anos 2000. Na época, havia discussões crescentes sobre a necessidade de intervenção e cooperação global para enfrentar essas patologias.
A lista mantida pela OMS inclui em torno de 20 condições, causadas por diferentes agentes patológicos, como fungos, vírus e bactérias. Essas doenças são normalmente transmitidas por vetores, como mosquitos e outros animais.
A lista não é muito extensa, mas inclui doenças muito conhecidas dos brasileiros, como a dengue, a chikungunya, a doença de Chagas e a leishmaniose. A única condição que não é infecciosa na listagem da OMS são as picadas de cobra.
Doenças tropicaisnegligenciadas com mais impacto
Considerando os anos de vida perdidos, em 2021
CISTICERCOSE
ONCOCERCOSE
LEISHMANIOSE
ESQUISTOSSOMOSE
Nesta visualização, o tamanho é proporcional ao impacto,
medido pelos anos de vida perdidos. A categoria “outras
doenças tropicais negligenciadas” não é exibida, mas teria
o dobro do tamanho da dengue. Para permitir a melhor
visualização, as categorias têm um tamanho mínimo.
Fonte: Global Burden of Disease. Dados mais recentes.
EQUINOCOCOSE
DENGUE
RAIVA
HANSENÍASE
TRACOMA
FILARIOSE LINFÁTICA
DOENÇA DE CHAGAS
GEO-HELMENTÍASES
DOENÇA DO SONO
TREMATODÍASES
DRACUNCULÍASE
Distribuição das doenças tropicais negligenciadas
Pessoas que precisaram de tratamento em 2021, a cada 100 habitantes
0
1
10
20
30
40
50
60
70
+ de 70
Trópico de Câncer
Brasil
4,6
Trópico de Capricórnio
Fonte: Our World in Data, com dados da Organização Mundial da Saúde e da ONU. Dados mais recentes.
A saúde nos trópicos foi uma prioridade das grandes potências europeias durante a colonização da África e da Ásia. O desenvolvimento de tratamentos e vacinas era crucial para o sucesso do empreendimento colonial. Essa atenção às condições sanitárias, no entanto, estava frequentemente voltada mais para garantir a exploração econômica do que para o bem-estar das populações locais.
As doenças tropicais também são um fator que dificulta o crescimento dos países que foram colonizados. A Organização Mundial da Saúde entende o combate a essas condições como prioritária para diminuir as desigualdades entre as nações.
Qual a importância da lista?
A OMS estabelece objetivos e um conjunto de metas de combate às doenças tropicais negligenciadas. Uma doença estar na lista representa uma prioridade global. “Aumenta a conscientização sobre ela e pode atrair mais interesse da mídia e financiamento para pesquisas”, aponta José Moreira, diretor médico do Instituto Butantan.
Mas, em um sentido mais amplo, qualquer doença que tem determinante social pode ser negligenciada. Além do determinante de pobreza, essas doenças têm em comum o fato de que são um problema de saúde pública em países de renda baixa. Doenças como mayaro e oropuche, com casos recentes no Brasil, não fazem parte da lista, mas podem ser adicionadas em algum momento pela OMS. A última inclusão foi uma doença chamada noma, uma infecção grave dos tecidos faciais, em dezembro de 2023.
Por que são tropicais?
O clima quente e úmido é favorável para a sobrevivência e reprodução tanto dos agentes como dos vetores que transmitem essas doenças. Nessas regiões, há também mais biodiversidade, com um número maior de seres vivos em contato com os humanos.
Nem todas as doenças tropicais são transmitidas por vetores, mas os mosquitos, em especial, costumam ser um ponto de atenção de autoridades de saúde.
Trópico de Câncer
Trópico de Capricórnio
Mais de 40% da população mundial vive entre os trópicos
O clima quente e úmido é favorável para a sobrevivência e reprodução tanto dos agentes como dos vetores que transmitem essas doenças. Nessas regiões, há também mais biodiversidade, com um número maior de seres vivos em contato com os humanos.
Agentes são os microrganismos que causam a doença, como o vírus da dengue. Já os vetores são os responsáveis pela transmissão, como o mosquito-da-dengue.
A maioria das doenças tropicais negligenciadas são causadas por microrganismos. A transmissão pode ocorrer de diversas formas, com ou sem os vetores. Mas as diversas espécies de mosquitos são um ponto especial de atenção.
Diferenças entre agentes e vetores
a partir do ciclo da dengue
Fêmea do Aedes Aegypti é o vetor
O vírus da dengue
é o agente
Ao picar uma pessoa que já está com dengue, ela ingere o vírus junto com o sangue.
O vírus sobrevive dentro do mosquito, que pica uma outra pessoa
A pessoa picada adquire a dengue
Os países que estão na faixa tropical são os mais atingidos, especialmente os mais pobres. Existem poucas exceções, de nações em cenário de escassez extrema, como Coreia do Norte e Síria, que são bastante atingidos e estão fora dos trópicos.
A população de países ricos na faixa tropical, como da Austrália, não é tão afetada. Isso se explica para além da renda mais elevada da população. Há maior infraestrutura, políticas públicas e programas de vigilância e controle.
Doenças tropicais negligenciadas e renda
paÍSES COM MAIS DE UMA INTERVENÇÃO A CADA 100 HABITANTES, EM 2021
PIB per capita maior que 10 mil dólares
PIB per capita menor que 10 mil dólares
Trópico de Câncer
Trópico de Capricórnio
Nenhum país com renda per capita abaixo de 10 mil dólares por ano está fora da lista
Fonte: Our World in Data, com dados de Organização Mundial da Saúde, ONU e Banco Mundial. Com dados de fontes complementares para o PIB de Coreia do Norte, Venezuela, Síria e Sudão do Sul.
O efeito das mudanças climáticas
Com o aquecimento do planeta, as áreas tropicais e subtropicais podem avançar em direção a regiões que hoje têm clima frio. A dengue, por exemplo, já é uma preocupação nos Estados Unidos e em diversos países europeus.
O impacto maior, no entanto, continua sendo em países tropicais de renda baixa. Isso porque suas populações são mais vulneráveis a fenômenos climáticos extremos, que facilitam a propagação dessas doenças e dificultam os esforços de combate.
Por que são negligenciadas?
São consideradas negligenciadas porque constituem um problema de saúde pública, mas recebem menos atenção e menos recursos de financiamento em comparação com outras condições. Atingem países e populações que têm menos recursos para combatê-las.
Apesar do peso grande sobre a vida humana, há pouco incentivo para o desenvolvimento de tratamentos, curas ou vacinas. Menos de 5% do financiamento global de medicamentos se destina às doenças tropicais negligenciadas, segundo a Fiocruz.
Poucos recursos para pesquisas
Valor investido globalmente em pesquisa e desenvolvimento em 2022
MALÁRIA
DOENÇAS TROPICAIS
NEGLIGENCIADAS
COVID-19
42 bilhões de dólares
322 milhões
603 milhões
Mais de um terço vai para
a dengue e doença de Chagas
Fonte: Our World in Data, com dados de Policy Cures Research. Dados mais recentes.
Pobreza e estigma
A falta de saneamento básico, de água potável, de nutrição adequada e de acesso a serviços de saúde são fatores que facilitam a transmissão e o agravamento dessas doenças. A carência desses recursos é mais comum em comunidades que enfrentam a pobreza extrema. O impacto físico e social que as doenças tropicais negligenciadas têm sobre as pessoas atingidas limita a geração de renda e o desenvolvimento infantil, com potencial de perpetuar a pobreza.
A pobreza acaba sendo um determinante do porquê as pessoas ainda sofrem com essas condições. Para a maioria dessas doenças, já temos estratégias de combate e intervenção eficazes. “O estigma leva ao isolamento das pessoas e dos pacientes e muitas vezes os leva à autodepreciação. Essas doenças têm cura, mas precisam de atenção precoce para evitar sequelas que possam prejudicar a vida”, aponta João Victor Kersul, presidente do MNDN (Movimento Nacional das Doenças Negligenciadas).
Um exemplo é o noma, condição conhecida desde a antiguidade e que desapareceu da Europa desde as grandes guerras. É uma infecção que começa na boca e se espalha pelos tecidos faciais. Atua de forma oportunista, se aproveitando da desnutrição infantil e falta de condições de higiene.
Esta doença pode ser tratada quando identificada rapidamente, mas em casos avançados pode levar a amputações que comprometem a capacidade de falar e de ingerir alimentos. Os sobreviventes sofrem com o estigma, que reduz oportunidades de educação e emprego, além dos custos permanentes com saúde.
Outras doenças tropicais negligenciadas, com diferentes consequências, também afetam a produtividade. Ao nível nacional, isso empobrece as comunidades e tem o potencial de reduzir o PIB.
As doenças tropicais negligenciadas perpetuam um ciclo de pobreza e exclusão. “A exclusão se dá pelas condições de vida e trabalho que adoecer de uma doença estigmatizada provoca ou aumenta”, aponta Paula Brandão, professora da UERJ e voluntária do Morhan.
Pobreza aumenta as chances de adquirir
doenças tropicais negligenciadas
São facilitadas por:
Acesso à saúde precário
Falta de infraestrutura
Insegurança alimentar
Baixa escolaridade
Desnutrição
Essas doenças causam
sofrimentos desnecessários,
podendo incapacitar ou até matar
Elas causam:
Prejuízos ao desenvolvimento
Deficiências permanentes
Sequelas físicas
Fraqueza
Dor
E isso perpetua um ciclo de pobreza
que precisa ser rompido
São consequências:
Custos com saúde
Menos oportunidades
Estigma e preconceito
Baixa escolaridade
Isolamento social
Incidência global de doenças
tropicais negligenciadas por idade
O impacto sobre as crianças
As crianças carregam o maior peso das doenças tropicais negligenciadas. Metade dos casos dessas doenças, incluindo a malária, são de crianças de até nove anos.
Além do sofrimento com a vida encerrada precocemente, as doenças tropicais negligenciadas também afetam o desenvolvimento infantil. As verminoses, por exemplo, causam deficiências de nutrientes, que comprometem a vida escolar.
A proteção das crianças é um dever da humanidade, mas as doenças tropicais negligenciadas são uma violação deste direito das crianças. O combate a essas doenças tem também um efeito de longo prazo de melhoria da qualidade da população.
Menos de 5 anos
32,3%
5 a 9 anos
15,1%
12,5%
10 a 14 anos
9,3%
15 a 19 anos
Mais de 20 anos
30,8%
Fonte: Global Burden of Disease. Inclui a malária. Dados mais recentes.
O papel do Brasil no combate a essas doenças
Pioneiros como Carlos Chagas, Vital Brazil, Oswaldo Cruz e Fonseca Pedroso deram contribuições essenciais para o entendimento científico das doenças tropicais.
Desenvolveram também um pensamento a partir dos trópicos e para os trópicos, que deu um papel de destaque para o Brasil na saúde global.
Dentre os países afetados, o Brasil é um dos que mais possuem recursos científicos e de saúde pública. Há grandes produtores públicos de vacinas e medicamentos, como o Instituto Butantan e a Fiocruz. Os laboratórios privados também dispõem de muita estrutura, alguns deles colaboram com a OMS para o fornecimento de medicamentos a outros países.
“O Brasil tem condições de ser um líder global no combate a essas doenças tropicais”, avalia Carlos Costa, professor da UFPI e pesquisador do Ciaten. “Precisamos entender a importância da ciência e que o retorno não é imeadiato”, completa.
Apesar dos avanços, as doenças tropicais negligenciadas ainda persistem em nosso país, em especial em áreas vulneráveis, como o território Yanomami.
Em 2024, o governo federal lançou o programa “Brasil Saudável”, que é uma cooperação entre vários ministérios para enfrentar as doenças determinadas socialmente, como a tuberculose e as tropicais negligenciadas. “O problema das doenças negligenciadas vai além da unidade básica de saúde; envolve moradia digna, saneamento básico e água tratada”, João Victor Kersul do MNDN, que avalia a iniciativa de forma positiva.
Para Alexandre Menezes, da NHR Brasil, o “programa é um exemplo de como políticas públicas podem ir além do setor saúde, integrando diferentes áreas para enfrentar as doenças negligenciadas”. “O combate requer mais do que diagnóstico, é uma luta contra desigualdades sociais”, completa.
Progressos estão sendo feitos no mundo
Os progressos e os desafios
NÚMERO DE MORTES ANUAIS POR DOENÇAS
TROPICAIS NEGLIGENCIADAS
O mundo fez muito progresso nas últimas décadas no combate às doenças tropicais negligenciadas. É um exemplo de como a cooperação global é eficaz em resolver problemas coletivos.
Mas há ainda muitos desafios, exigindo que estes esforços sejam sempre contínuos. A Organização Mundial da Saúde possui uma lista de objetivos para 2030, em relação às doenças tropicais negligenciadas.
Até hoje, a única doença erradicada pela humanidade foi a varíola. Esse é um cenário plausível para outras duas doenças na lista da OMS: bouba e dracunculíase. Para as demais condições, os objetivos passam por diferentes níveis de controle.
200 mil
150
100
50
0
1980
1990
2000
2010
2020
100 mil pessoas ainda perdem suas vidas
todos os anos por conta dessas doenças
Fonte: Global Burden of Disease.
Objetivos para 2030
Considerando o maior número de países atingindo esse patamar
Erradicação
Dracunculíase; bouba
Eliminação da transmissão
Tripanossomíase africana (gambiense); oncocercose; hanseníase
Eliminação como problema de saúde pública
Doença de chagas; tripanossomíase africana
(rodiense); leishmaniose visceral; filaríose
linfática; esquistossome; geo-helmentíases;
raiva; tracoma
Controle
Úlcera de Buruli; dengue; equinococose; trematodíases; micetoma, cromoblastomicose e outras micoses profundas; sarna e outras ectoparasitoses; picadas de cobra; teníase e cisticercose
Fonte: Organização Mundial da Saúde.
Clique nos botões abaixo e saiba mais sobre
cada doença tropical negligenciada da lista da OMS
As informações abaixo são da Organização Mundial da Saúde. Fontes complementares consultadas estão nos links dos textos. Nenhuma informação listada neste material serve como guia médico. Procure os serviços de saúde em caso de sintomas ou dúvidas.
Malária é uma doença
tropical negligenciada?
A malária é uma doença causada por protozoários do gênero Plasmódio, em especial o Plasmodium falciparum, e transmitida por mosquitos. Em 2022, mais de 600 mil pessoas morreram por conta da doença, principalmente em países tropicais de baixa renda. A OMS mantém um programa específico para o combate da malária, separado da lista das doenças tropicais negligenciadas.
Entrevistas
As comunidades atingidas pelas doenças tropicais negligenciadas têm pouca voz nas decisões que as afetam. “Doenças negligenciadas são, na verdade, doenças de populações negligenciadas”, reflete Alexandre Menezes, diretor nacional da NHR Brasil, organização envolvida no tema.
Para produzir esse especial, o Nexo ouviu não só especialistas, mas representantes de movimentos das pessoas atingidas por doenças tropicais negligenciadas. Confira as entrevistas completas abaixo.
Entrevista com Paula
Brandão, professora de
enfermagem da UERJ e
voluntária do Morhan
Entrevista com João Victor
Kersul, presidente do
Movimento Nacional das
Doenças Negligenciadas
Entrevista com Alexandre
Menezes, Diretor nacional
da NHR Brasil
Entrevista com Carlos
Costa e Bruno Guedes,
Professores da UFPI e
coordenadores do Ciaten
Entrevista com José
Moreira, diretor médico
do Instituto Butantan e
infectologista especialista
em medicina tropical
Produção: Gabriel Zanlorenssi.
Texto e dados: Gabriel Zanlorenssi.
Design: Giovanna Hemerly e Gabriel Zanlorenssi.
Edição: Gabriel Zanlorenssi e Suzana Souza.
Agradecimentos: Juan Zuñiga (ICFJ), Taylor
Gibbert (ICFJ) e, em especial, Tom Meagher
(editor do Marshall Project), que foi mentor
deste projeto.
Esta publicação foi financiada pelo International Center
for Journalists, dentro do projeto “2024 News Corp Media
Fellowship for Digital Innovation”.
Malária é uma doença tropical negligenciada?
A malária é uma doença causada por protozoários do gênero Plasmódio, em especial o Plasmodium falciparum, e transmitida por mosquitos. Em 2022, mais de 600 mil pessoas morreram por conta da doença, principalmente em países tropicais de baixa renda. A OMS mantém um programa específico para o combate da malária, separado da lista das doenças tropicais negligenciadas.
Entrevistas
As comunidades atingidas pelas doenças tropicais negligenciadas têm pouca voz nas decisões que as afetam. “Doenças negligenciadas são, na verdade, doenças de populações negligenciadas”, reflete Alexandre Menezes, diretor nacional da NHR Brasil, organização envolvida no tema.
Para produzir esse especial, o Nexo ouviu não só especialistas, mas representantes de movimentos das pessoas atingidas por doenças tropicais negligenciadas. Confira as entrevistas completas abaixo.
Entrevista com João Victor
Kersul, presidente do
Movimento Nacional das
Doenças Negligenciadas
Entrevista com Paula
Brandão, professora de
enfermagem da UERJ e
voluntária do Morhan
Entrevista com Carlos
Costa e Bruno Guedes,
Professores da UFPI e
coordenadores do Ciaten
Entrevista com Alexandre
Menezes, Diretor nacional
da NHR Brasil
Entrevista com José
Moreira, diretor médico
do Instituto Butantan e
infectologista especialista
em medicina tropical
Produção: Gabriel Zanlorenssi.
Texto e dados: Gabriel Zanlorenssi.
Design: Giovanna Hemerly e Gabriel Zanlorenssi.
Edição: Gabriel Zanlorenssi e Suzana Souza.
Agradecimentos: Juan Zuñiga (ICFJ), Taylor Gibbert (ICFJ) e, em especial,
Tom Meagher (editor do Marshall Project), que foi mentor deste projeto.
Esta publicação foi financiada pelo International Center for Journalists,
dentro do projeto “2024 News Corp Media Fellowship for Digital Innovation”.
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