Acadêmico

Como alunos negros lutam para acessar a pós-graduação

Renata Nascimento da Silva

04 de julho de 2024(atualizado 05/07/2024 às 15h23)
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Por uma ética coletiva negra: os cursos preparatórios para Pós-Graducação e o tensionamento do dispositivo meritocrático na Universidade

Autoria

Renata Nascimento da Silva

Lattes

Área e sub-área

Ciências Sociais Aplicadas / Comunicação Social

Publicado em

28/02/2023

Segundo o Obaap (Observatório de Ações Afirmativas na Pós-graduação), 1531 programas de pós-graduação adotavam algum tipo de ação afirmativa em 2021, ano dos últimos dados recolhidos pelo grupo. Os números representavam 54,3% de todos os programas da amostra, e evidenciavam que 794 programas haviam adotado a medida nos quatros anos antecedentes. 

 

Dados como esses indicam que as ações para promover o acesso de estudantes negros à pós-graduação estão crescendo, mas não alcançam a extensão das iniciativas que já existem hoje na graduação, conseguidas através da Lei de Cotas. Esta pesquisa investiga que estratégias, diante desse cenário, cursinhos preparatórios utilizam para ajudar alunos negros a entrar no mestrado ou doutorado.

1Qual a pergunta a pesquisa responde?

Como as dinâmicas presentes em cursos preparatórios podem evidenciar a relação entre mérito e racismo nos processos seletivos de programas de pós-graduação?

2Por que isso é relevante?

A sociedade moderna valoriza o mérito como forma de justiça social, uma avaliação que preza pela igualdade de condições, que substituiu privilégios hereditários e influência financeira, o que remonta à própria constituição do Estado de Direito e atua inclusive na manutenção da democracia. 

 

FOTO: Rovena Rosa/Agência BrasilAlunos sentam em carteiras em roda enquanto um porfessor está falando com todos, nas frente de uma apresentação no slideshow

Aula em cursinho popular em São Paulo

 

Por outro lado, a sociedade atual já reconhece as falhas nas estruturas sociais que impedem as pessoas de partirem de posições iguais em uma disputa. É importante, portanto, discutir em quais lugares e como essas dinâmicas de perpetuação de desigualdades podem afetar o desenvolvimento econômico e social de grupos minoritários.

3Resumo da pesquisa

A tese investiga a estrutura do sistema meritocrático, fundamentado em valores universais como igualdade, justiça social e excelência intelectual. Sua influência na educação e em outros aspectos organizacionais da sociedade remonta às raízes do pensamento ocidental moderno e seus ideais civilizatórios. 

 

Reconhecendo o viés eurocêntrico e colonial da modernidade e de seus mecanismos, o estudo se concentra no contexto da entrada de indivíduos negros na universidade, especialmente em PPGs (Programas de Pós-Graduação). A lógica meritocrática potencialmente excludente presente nesses processos seletivos provocou a criação de cursos preparatórios para sanar a ausência histórica de corpos negros nesse seguimento, mesmo após a implementação de ações afirmativas na graduação. 

 

O objetivo da pesquisa é entender em que medida os cursos são capazes de demonstrar que a racialidade é um elemento constituinte do sistema meritocrático e que ela dificulta o acesso ao mestrado e ao doutorado de estudantes negros e indígenas. Isso porque essas iniciativas gratuitas, formadas por coletivos estudantis negros de PPGs, visam garantir o preenchimento das vagas destinadas a ações afirmativas na pós-graduação. Por isso, embora motivadas pela questão racial, os cursos são abertos também para candidatos optantes de cotas para quilombolas e pessoas trans. 

 

Analisou-se as interações entre voluntários e participantes dos cursos preparatórios e as estratégias desenvolvidas para promover o ingresso nesses PPGs da região sudeste. Os métodos incluíram observação participante, questionários e entrevistas em profundidade, além de levantamento quantitativo de cursos no país por meio de redes sociais e análise documental. Foram encontrados mais de 131 cursos preparatórios em diversas áreas do conhecimento, que se espalham por todo o território brasileiro. Esses cursos englobam áreas desde saúde coletiva até ciências humanas, abrangendo as regiões norte, nordeste, sudeste, sul e centro-oeste. Já na fase qualitativa, durante três anos, foram acompanhadas as reuniões, encontros e mentorias no formato presencial e, após a pandemia, totalmente on-line ou híbrido de dois coletivos da área de comunicação da região sudeste. 

 

Os resultados apontam que os cursos constituem comunidades de aprendizado e de afeto, atuando como mediadores entre os candidatos e a universidade pública e produzindo coletivamente, por meio de uma tecnologia quilombola, resistência à lógica do mérito que opera na pós-graduação.

 

No contexto da tese, a tecnologia quilombola é um modo de agir baseado na visão de mundo afro, que tem como princípio fundamental o compromisso com o próximo, sem reduzi-lo a categorias coloniais. A visão de mundo afro pressupõe uma política comunitária, centrada na importância da herança ancestral negra, no futuro dos descendentes e no reconhecimento da importância da razão e do afeto na criação de estratégias de resistência. Dessa forma, enxergamos os cursos preparatórios como espaços que originam uma tecnologia quilombola, devido às relações ali estabelecidas alinhadas com estratégias de resistência de perspectiva afro-comunitária.

4Quais foram as conclusões?

A pesquisa explorou como a racialidade, juntamente com o patriarcado, são pilares fundamentais da sociedade contemporânea, e a meritocracia, embora seja um ideal moderno criado para equilibrar as relações de poder e cidadania, não escapa da produção sistemática de desigualdades. 

 

Buscando enfrentar as disparidades sociais que afetam a educação, foi observado que os estudantes negros desenvolvem estratégias com base em processos históricos de resistência afrodiaspórica para progredir na pós-graduação. Esses movimentos refletem uma ética coletiva negra em oposição ao individualismo, valor central da meritocracia. 

 

Essas estratégias combinam habilidades técnicas, como compartilhamento de materiais e dicas para exames, apoio emocional e criação de redes de suporte e representatividade. Um exemplo disso é o aconselhamento dado pelos voluntários aos candidatos que passarão por entrevistas com a banca de avaliação. 

 

Algumas dicas incluem ser conciso, demonstrar domínio do projeto sem parecer arrogante e estar ciente de que o projeto pode ser modificado posteriormente. Além disso,  se comprometer a concluir o curso, mesmo sem bolsa e evitar posturas vistas como “extremistas” ou como “militantes”. Embora essas orientações não sejam universais, é importante que as minorias, especialmente os negros, recebam essas dicas para as entrevistas, pois muitos não têm nenhuma experiência pregressa com a pesquisa na graduação ou vieram de instituições de ensino superior particulares, que também não costumam investir nesse setor.

 

O que foi observado nos cursos destaca que a cooperação racial é essencial para essas minorias políticas no campo educacional, pois a troca entre indivíduos em condições semelhantes promove confiança na capacidade intelectual dos negros para recriar e analisar criticamente as estruturas modernas e coloniais que perpetuam o racismo.

5Quem deveria conhecer seus resultados?

Gestores públicos, sociedade civil, professores universitários, jornalistas, membros de movimentos sociais e estudantes de graduação e pós-graduação.

Renata Nascimento da Silva é pesquisadora de pós-doutorado no Departamento de Economia Rural da Universidade Federal de Viçosa. É doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E é mestre em comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Mídia e Cotidiano da Universidade Federal Fluminense.

Referências

  • CARNEIRO, Aparecida Sueli; A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
  • BENTO, Maria Aparecida. Silva (2002). Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • SODRÉ, Muniz. Pensar nagô. Petrópolis, RJ: Vozes; 2017
  • hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017
  • VENTURINI, Anna Carolina. Ação afirmativa na pós-graduação: os desafios da expansão de uma política de inclusão / Ana Carolina Venturini. – 2019. 318f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos Sociais e Políticos

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