Acervos de arquitetura são uma potência de transformação social

Ensaio

Acervos de arquitetura são uma potência de transformação social
Foto: Arquivo Público do Distrito Federal/Fundo Novacap

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Eduardo Augusto Costa


10 de dezembro de 2021

A saída do acervo do arquiteto Lucio Costa do Brasil nos coloca debates importantes e nos ajuda a pensar no papel da arquitetura em nossa sociedade

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O acervo do arquiteto Lucio Costa foi anunciado como a mais nova aquisição da instituição portuguesa Casa da Arquitectura em outubro deste ano de 2021. Nesta transação, foram transferidos milhares de desenhos, croquis, documentos, cartas, livros, blocos de notas e fotografias. Tal evento impõe à sociedade brasileira um cenário desafiador. São muitas as questões que precisamos enfrentar, bem como pactuar. Neste sentido, parece-me importante algumas ponderações e contribuições.

Primeiro, é preciso reconhecer a natureza de uma documentação de arquitetura. Por um lado, ela pode ser fundamental à preservação de uma edificação, uma vez que contém informações técnicas construtivas importantes para se compreender os resultados materiais. São informações inerentes à integridade física dos conjuntos e, por si só, importantes para a preservação de bens por instituições responsáveis, como o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), órgão máximo da preservação cultural no país. Mas esta leitura é ainda insuficiente para o contexto em que vivemos. Os documentos de arquitetura precisam ser reconhecidos como potências para a elaboração de novas propostas e projetos, já que ativos de transformação social. Eles não são, portanto, documentos de interesse restrito aos historiadores, mas de toda a comunidade dos arquitetos, como também de toda a sociedade. Este entendimento nos leva a um segundo ponto.

O desenho de arquitetura não pode ser encarado apenas como um desenho técnico ou como uma simples representação de uma obra construída. Ele passou, recentemente, por um processo de mercantilização, que o alçou ao estatuto de obra de arte. A autonomia do desenho de arquitetura em relação à obra construída garante a ele uma distinção de valor. Por certo, podemos questionar essa autonomia, mas não a negar enquanto condição. Esta natureza demanda, portanto, proteção e legislações apropriadas com fiscalização do Conarq (Conselho Nacional de Arquivos), Iphan e da Polícia Federal , o que não existe atualmente no Brasil. Basta pensarmos no potencial valor simbólico, mas também econômico, do desenho do risco original traçado por Lucio Costa para Brasília, para percebermos o escândalo nacional de tal operação. Negar esta condição é lesar o patrimônio brasileiro.

Outra reflexão importante que precisa ser enfrentada diz respeito à natureza de um arquivo ou acervo. Guardando-se particularidades, em ambos os casos, deve-se reconhecer que se trata de um conhecimento sedimentado, um poder, mas também um ativo em potencial para a proposição de novas agendas e a organização de políticas. Ou seja: tratam-se de estruturas que nos permitem acessar o pensamento que rege tais estruturas, tenham sido elas elaboradas por uma instituição ou ente privado. Afinal, não estamos falando de um conjunto de documentos do passado, com uma história inerte à espera de um leitor. Não se trata de uma estrutura dedicada apenas a desvelar um passado pretensamente cristalizado. Ao contrário, trata-se de uma potência, uma força capaz de produzir sentidos e projetar novas agendas para o futuro. Não é por acaso que movimentos contemporâneos como movimentos negros ou feministas – estruturaram arquivos como forma de enfrentamento, resistência e existência às realidades sociais excludentes. Necessitamos, por certo, de estratégias de mobilização e agenciamento em torno destas estruturas. Mas, para isso, dependemos dessa mudança de entendimento social em relação a elas. Uma mudança que passa também pelos arquitetos brasileiros.

Reconhecer que um arquivo é um conhecimento sedimentado, como também um ativo de transformação, evidencia que as ideias estão em disputa. Isto permite que problematizemos o famigerado debate da digitalização. É certo que o acesso à informação e a consequente digitalização, num mundo conectado, são questões prementes, ponto pacífico. Mas é também importante reconhecermos que o valor em potencial de um acervo ou arquivo é quase impossível de ser acessado num processo de digitalização, a não ser que a instituição responsável tenha este intuito em sua missão e se dedique a esta empreitada. Isto nos ajuda a compreender que é também um equívoco achar que a digitalização de um documento substitua as necessidades de acesso aos originais. Foi essa a promessa dada aos brasileiros pela Casa da Arquitectura, quando o acervo do arquiteto Paulo Mendes da Rocha por lá aportou, o que continua a valer para o caso do acervo do Lucio Costa.

Nesse ponto, vale lembrar da plataforma “Google Arts & Culture”, que estabelece parcerias com museus de projeção global, como MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York), National Gallery, Rijks Museum, Smithsonian, Tate e Masp (Museu de Arte de São Paulo), em prol do acesso virtual de suas coleções pela internet. Tais museus não estão interessados em doar gratuitamente seus acervos ao visitante virtual. Ao contrário, é o acesso irrestrito do usuário comum ao especialista aos documentos digitais que permite a valorização da materialidade inerente às obras de arte que lhes pertencem. Afinal, o documento existe em sua materialidade e uma digitalização não o substitui, mas, ao contrário, o valoriza. Possuir o documento físico é ter poder, já que é ele a matriz a partir da qual se pode gerar valor, cultural ou mesmo financeiro.

As discussões suscitadas com a doação do acervo de Lucio Costa também ressuscitaram os debates sobre a necessidade de que se estabeleça uma política brasileira para os arquivos de arquitetura

Tanto é o documento físico que importa nesta dinâmica cultural que crescem exponencialmente os movimentos por reparação e restituição de acervos saqueados entre nações. Não bastaria àqueles que foram violentados por práticas coloniais receber um registro digital daquilo que lhes foi cerceado, saqueado. A materialidade dos documentos e artefatos pode ter valor simbólico, político e, muitas vezes, espiritual para um determinado grupo. Ao terem sido expropriados de seus contextos sociais, estes documentos e artefatos são mobilizados de forma reduzida numa perspectiva de espetacularização global, fora de seus contextos. Esvaziam-se seus valores originais, desarticulando dinâmicas internas a etnias, grupos ou mesmo países. Trata-se de um problema essencialmente político.

As discussões suscitadas com a doação do acervo do arquiteto Lucio Costa também ressuscitaram os debates sobre a necessidade de que se estabeleça uma política ligada aos acervos de arquitetura no Brasil. Neste sentido, aventa-se a possibilidade de elaborar uma “Brasiliana da Arquitetura e Urbanismo”, como propõe o CAU/SP (Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo), ou mesmo uma estrutura como a “Rede Brasileira de Acervos de Arquitetura e Urbanismo”, como vem elaborando a sede do IAB-SP (Instituto dos Arquitetos do Brasil, na cidade de São Paulo), em fase de desenvolvimento desde 2018. Ambas as propostas são muito bem-vindas. No entanto, uma Brasiliana de Arquitetura na forma de uma plataforma virtual extensiva – parece ser uma proposta inviável, já que resvala em diferenças institucionais, como também na impossibilidade de se tratar um volume descomunal de documentos, ainda que o CAU tenha recursos consideráveis para ações de grande porte. A proposta de elaboração de uma rede parece mais factível e compatível com as possibilidades que se impõem. Mas também encontra resistências, já que implica em colocar em diálogo instituições com missões muito diversas como universidades, arquivos públicos e acervos privados além de outros desafios. Para tanto, será preciso um esforço na definição de dinâmicas harmônicas entre instituições tão diversas. De todo modo, esta é, até aqui, uma iniciativa plausível.

Um museu ou instituto de arquitetura poderia ser também uma política importante a ser implementada. Se formada aos moldes de uma estrutura viva, que fosse também um arquivo, uma biblioteca, uma editora, um polo cultural, um centro de pesquisa, poderia conectar entes de espectros diversos, sejam eles sociais, econômicos ou políticos. Vale lembrar que os arquitetos brasileiros já se aventuraram em alternativas deste gênero. O melhor exemplo aconteceu na cidade do Rio de Janeiro. O falecido professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Jorge Paul Czajkowski (1948-2010), criou o Centro de Arquitetura e Urbanismo, que ficou ativo entre 1997 e 2000 e chegou a receber uma edição dos encontros internacionais da ICAM (Confederação Internacional de Museus de Arquitetura, na sigla em inglês). Apesar de não ter constituído acervo, o CAU foi um bom exemplo de estrutura dedicada à arquitetura, onde ocorreram exposições e a publicação de catálogos, com forte presença na cidade.

Estas são apenas algumas das questões que nós brasileiros precisamos enfrentar. Todas elas, a seu modo, nos ajudam a reconhecer que a arquitetura não se limita à materialidade das construções. Ela é uma cultura de dimensão ativa para a sociedade e fundamental para se constituir diálogos e novos projetos urbanos. Trata-se de uma cultura que pressupõe mobilizar acervos. E Instituições como o CAU e o IAB, mas também as estruturas governamentais, têm uma posição estratégica no fomento e difusão de tais práticas, como também seria muito bem-vinda a participação de entidades privadas na construção coletiva desta cultura arquitetônica. É imprescindível que se mobilizem e se envolvam em torno desta agenda.

A saída do acervo do arquiteto Lucio Costa do Brasil nos coloca debates importantes e nos ajuda a pensar no papel da arquitetura em nossa sociedade. Se desejamos um ambiente democrático e comprometido com os desafios contemporâneos, debater publicamente os acervos de arquitetura é um caminho inevitável. Se ele demanda comprometimento e envolvimento da nossa parte, podemos dizer também que esse debate nos coloca diante de um momento de renovação.

Eduardo Augusto Costa é professor do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), é um dos coordenadores do grupo de pesquisa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), “Arquivos, fontes e narrativas: entre cidades, arquitetura e design”, e coordenador da pesquisa “Cultura Visual e História Intelectual: arquivos e coleções de arquitetura”, com financiamento da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).

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