Coluna
Denis R. Burgierman
Algumas reflexões sobre o ano que acaba, o que começa, a desinformação e a importância da bolinha de frescobol
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Talvez tenha sido algum mecanismo psicológico misterioso, mas me neguei a admitir que 2018 acabou. Estava tão enfiado num trabalho complicado que, no dia 31 de dezembro, para lá das nove da noite, eu seguia com a cara metida nesta telinha luminosa aqui, escrevendo, alheio aos rojões mais ansiosos, que já pipocavam lá fora. Parei por umas horas para abraçar os amigos e celebrar a vida, mas acordei razoavelmente cedo no dia seguinte e continuei trabalhando – nem li o jornal, nem liguei a TV, nem fiquei sabendo de posse de coisa alguma. Agora, enquanto escrevo estas mal-traçadas, o calendário do meu celular informa que já é 2 de janeiro, mas continuo enroscado em 2018.
Acordei bem cedo hoje, às seis da manhã, para escrever esta coluna para você, antes de finalmente desapegar do ano que para todo mundo já acabou. Aqui do meu lado, as malas já estão fechadas – assim que enviar este texto, desconecto do wifi, coloco as crianças no carro e vou passar uma semana ocupado com o trajeto do sol e o da bolinha de frescobol no céu, sem acompanhar a guerra de narrativas no Facebook nem receber notícias de Brasília. Agora minha filha acordou, ansiosa para pegar a estrada, e perguntou se podia sentar no meu colo enquanto escrevo. Perdoe aí algum eventual erro de digitação – minha atenção se dividiu, e um pouquinho dela já está deitada na areia.
O trabalho complicado que estou fazendo, que me ajudou a não ver 2019 chegar, é sobre desinformação no Brasil. Estou tentando entender que diabos aconteceu neste país (e no mundo) nos últimos anos, em que os fatos deixaram de importar. Acho que consegui um pouco, depois de entrevistar um monte de gente que está dedicada ao assunto, ler uma dezena de relatórios sobre o que aconteceu neste ciclo eleitoral, além de um livro bem interessante, recém-lançado, chamado “Network Propaganda”.
O que descobri foi que o problema não é que todo mundo de repente pegou um vírus e começou a mentir loucamente. O problema é que estamos tão furiosos uns com os outros que informação deixou de ser um instrumento para compreender o mundo e passou a ser uma arma para atacar os outros. Um dos especialistas que entrevistei, o professor da USP Pablo Ortellado, inclusive deu um apelido para isso: “informação de combate”. Monitorando as redes sociais, ele percebeu que uns 80% dos compartilhamentos de notícias no Facebook são informações de combate: conteúdos que se alinham com uma narrativa ou outra da polarização da sociedade que acabam compartilhados, mais que tudo, como uma afirmação de identidade. Segundo ele, o que importa nessa máquina de informação não é se o conteúdo é verdadeiro ou falso: importa que ele afirme uma narrativa e negue a outra.
Comecei a refletir sobre o que essa dinâmica significa para mim, que fiz essa escolha de dedicar a vida ao trabalho de produzir informação para ajudar as pessoas a entender as coisas. Não pretendia virar um produtor de armas de combate. Mas minha filha interrompeu meus devaneios existenciais. Quer saber se eu já acabei. Eu disse que não, ela argumentou que a tela já está cheia. Agora está aqui deitada ao meu lado, no sofá, toda sonada porque acordou cedo demais na ânsia de viajar logo.
Denis R. Burgiermané jornalista e escreveu livros como “O Fim da Guerra”, sobre políticas de drogas, e “Piratas no Fim do Mundo”, sobre a caça às baleias na Antártica. É roteirista do “Greg News”, foi diretor de redação de revistas como “Superinteressante” e “Vida Simples”, e comandou a curadoria do TEDxAmazônia, em 2010.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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