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A histórica visita de um presidente americano — Oba-Oba Obi-Wan- Obama — à ilha de Cuba, jogando talvez a última pá de cal na Guerra Fria, rendeu milhões de milhas horárias na mídia mundial, entre as quais algumas dedicadas ao puro fait-divers, como, por exemplo, os cardápios locais degustados pelo gringo e sua família. Logo no primeiro dia, antes do banquete oficial, Obama sentou-se num “paladar,” como são conhecidos os restaurantes não-estatais instalados, em geral, na casa da família do proprietário. Ali o principal passageiro do Air Force One traçou um filé mignon com legumes grelhados. Nada de particularmente cubano, na verdade. Nem ele devia estar morrendo de fome, depois das meras 2 hs e 20 ms que durou a viagem de Washington DC até a capital cubana, com direito a todas as mordomias que um potentado do seu quilate tem a bordo de uma aeronave oficial.
O prato simples que Obama bateu no “paladar” habanero me fez lembrar do almoço típico servido no vagão-restaurante do trem da Sorocabana que me levava de São Paulo a Itatinga, terra da minha mãe, no oeste paulista, pelo menos duas vezes por ano, durante as férias escolares. Era um suposto filé com panache de legumes grelhados. Minha mãe dizia, em voz baixa, que aquilo no prato era no máximo um bife de alcatra, e olhe lá. E que os legumes vinham muito engordurados. Mas pra mim, só o fato de almoçar em movimento vendo a paisagem rural desfilar pela janela era um privilégio dos deuses. O bife em si podia, de fato, ter uma consistência mais próxima de um solado de Vulcabrás do que de um filé mignon, mas, como diria mr. Obama, who cares? Pra mim era digno de um repasto presidencial.
Saudade doida e doída do trem de passageiros, veículo seguro, divertido e confortável que foi compulsoriamente aposentado diante das pressões da indústria automotiva, desde os tais “anos dourados” de JK, o presidente brasileiro que lhe abriu as portas do mercado nacional de par em par. Os gringos só admitiam vir aqui montar suas carroças caríssimas e tecnologicamente defasadas em relação às produzidas em seus países de origem, além de bem mais inseguras (43 mil mortes por ano em acidentes atualmente) e poluidoras, se lhes garantissem o monopólio absoluto dos transportes no país. Abaixo as ferrovias, viva o asfalto vagabundo e superfaturado das estradas brasileiras. Mazelas do subdesenvolvimento.
Voltando a Cuba, a primeira-dama americana, a elegantérrima Michelle Obama, também foi de filé, mas ao molho de vinho tinto levemente apimentado, enquanto as princesinhas presidenciais pediram filé simples (Sasha, a caçula) e um espeto de carne de porco (Malia, a filha mais velha). Como se vê, a família Obama optou por ítens conservadores do cardápio, passando ao largo das opções mais capitosas do restaurante cubano, como berinjela recheada, tortilla espanhola, ceviche de peixe, salada de frutos do mar e alguns pratos ecléticos que misturam frango, carnes vermelhas, peixe, frutos do mar, feijão preto e cogumelos. Decerto acharam de bom alvitre sair da mesa só com boas lembranças, dispensando prováveis azias e cólicas intestinais. No banquete oficial oferecido por Castro, no entanto, tiveram que meter o garfo nas iguarias oferecidas: musse de camarão temperada com mojito (rum, limão e hortelã), sopa cremosa batizada com rum e a tradicional carne de porco cercada de chips de banana frita. Nhaminhame!
Ao ler sobre as aventuras gastronômicas da família Obama em Cuba, minha mente ociosa logo se pôs a conjecturar sobre o que lhe teriam oferecido, por exemplo, na Santa Ceia, lá na Galiléia, no ano 0 da era cristã. Um site de história que me parece assaz respeitável me informa que o cardápio degustado por Jesus e sua turma devia incluir pão de cevada, talvez com alguma farinha de trigo misturada à massa, sem fermento, frutas (romã, figo, uvas passas, tâmaras), azeitonas e talvez alguma carne de peixe. Não é impossível que houvesse à mesa também carne de cordeiro ou mesmo de boi, e também de ganso e pato, mas sempre dessangrada, à maneira judaica. Porém, carnes em geral — “mistura,” como diz o povão no Brasil — não apareciam com muita frequência na mesa do pobre, como supõe-se devia ser a da Santa Ceia. Ah, e sem dúvida não faltou ao menu cristão uma especialidade bíblica: os gafanhotos salteados.
Reinaldo Moraesestreou na literatura em 1981 com o romance Tanto Faz (ed. Brasiliense) Em 1985 publicou o romance Abacaxi (ed. L&PM). Depois de 17 anos sem publicar nada, voltou em 2003 com o romance de aventuras Órbita dos caracóis (Companhia das Letras). Seguiram-se: Estrangeiros em casa (narrativa de viagem pela cidade de São Paulo, National Geographic Abril, 2004, com fotos de Roberto Linsker); Umidade (contos , Companhia das Letras, 2005), Barata! (novela infantil , Companhia das Letras, 2007) , Pornopopéia (romance , Objetiva, 2009) e O Cheirinho do amor (crônicas, Alfaguara, 2014). É também tradutor e roteirista de cinema e TV.
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