Coluna

Reinaldo Moraes

Desembalos de domingo à noite

14 de abril de 2016

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Começo a torcer pra que aqueles dois passem essa noite vazia de domingo juntos, embora seja difícil imaginar como seria a dinâmica do sexo entre corpos governados por neurotransmissores em rebelião

A mulher sentada de costas pra mim, na mesa à minha frente, não para quieta. Ela se levanta, vai até a porta de entrada do bar, por nenhuma razão aparente, e volta pro seu lugar. De outras vezes, puxa o celular e se põe a caminhar pela calçada onde estão as mesas externas do boteco de esquina em que estamos, perto da minha casa, num domingo à noite. Ela vai e volta com o aparelho grudado na orelha, sem falar nada. Estará escutando alguma coisa? Eu diria que não. E quando o pretexto não é o celular, é o cigarro que a leva a se levantar e se postar do lado de fora da ridícula faixa amarela que delimita a área de interdição ao tabaco. Ela vai até a esquina fumando, retorna, dá uma funda tragada, joga o cigarro quase inteiro na sarjeta e volta a se sentar, de costas pra mim. Essa aí tá com o bicho carpinteiro no corpo, como diria a minha avó. (Resisto aqui à tentação de dar um Google nesse “bicho carpinteiro”. De onde terá saído isso? Já ouvi falar de um tipo de formiga carpinteira. Será ela o buliçoso bicho carpinteiro?)

Na primeira dessas idas e vindas, avalio que ela deva ter mais de 50 anos, com um corpo ainda razoavelmente esbelto, a exemplo de tantas outras cinquentonas de classe média que eu conheço. Pelo jeito, a antiga matrona de cinquenta anos está em franca extinção. E, se calhar, a de sessenta também anda com os dias contados — contados numa academia de ginástica e no consultório de um bom nutricionista. De saia, blusa, salto alto, algumas bijuterias e um batonzinho básico, minha companheira de boteco poderia ser funcionária de médio escalão de um escritório, banco ou repartição pública. Secretária executiva, talvez. Encarregada da seção de cadastro ou de contas a pagar.

Na mesa que ela ocupa descansam sua bolsa, uma sacola de plástico cheia de pacotinhos contendo sabe-se lá o quê, uma xícara de café e uma garrafa de água mineral. A moça cinquentona deve ser abstêmia. Ou se tornado abstêmia depois de anos de alcoolismo. Cada vez que ela se levanta e se afasta da mesa, a bolsa e a sacola ficam ali à mercê de algum gatuno oportunista na correria. Um candidato a ser esse gatuno logo aparece por ali, pedindo grana. É um beleléu jovem, imundo, de bermuda rôta e pé descalço, baforando algum provável solvente químico numa garrafa PET. O garçom, tipo enfezado, o enxota com energia. Ele atravessa a rua, caminha a esmo prum lado e pro outro pela calçada oposta, e torna a se aproximar do nosso boteco, onde, além de mim e da funcionária inquieta, há somente mais uma mesa ocupada por um quarteto de colegas de trabalho, todos usando a mesma camiseta polo de uma firma de telefonia digital. Devem estar comemorando ali o fim de um serão extra em pleno domingo. O dinheiro que ganharam com as horas extras vai virando cerveja rapidamente.

Ninguém dá muita atenção aos movimentos erráticos do beleléu, um nóia típico que, na falta de crack, se vira com o solvente, se é que aquele líquido amarelo-sujo no fundo da garrafa de plástico não é gasolina. A mulher possuída pelo bicho carpinteiro não se liga na forte possibilidade do beleléu aproveitar suas ausências da mesa pra dar um bote em seus pertences e abrir o pé na vula. Incrível como ela não consegue se segurar na cadeira por mais de 4 ou 5 minutos. Quando ela volta de suas breves caminhadas e ficamos frente a frente, antes que ela se sente de costas pra mim, trocamos um rápido olhar. Acho que estamos desenvolvendo algum tipo de intimidade silenciosa e discreta, do tipo que duas pessoas solitárias desenvolvem num boteco, domingo à noite.

Eu, de minha parte, não tô a fim de nada além de uma cervejinha e um pouco de sossego pra pensar em nada e coisa alguma. Acho que ela também não está grandemente interessada em mim. Algo a impele, porém, a repetir aquele levanta-anda-senta incessante, que começa a atrapalhar um pouco o livre fluxo das minhas vastas emoções e pensamentos imperfeitos, pra usar uma citação de Freud que o grande Rubem Fonseca botou como título de um de seus melhores romances. Que outro nome, aliás, um Freud moderno daria praquele bicho carpinteiro? Ansiedade clínica? TOC? DDA? Hipomania? Ciclotimia? Bipolaridade? Todos os anos os psiquiatras vêm com uma categoria nova de transtorno mental que afligem pessoas ditas normais. Eu, por exemplo, padeço agora de TDT — tédio dominical típico.

Reinaldo Moraesestreou na literatura em 1981 com o romance Tanto Faz (ed. Brasiliense) Em 1985 publicou o romance Abacaxi (ed. L&PM). Depois de 17 anos sem publicar nada, voltou em 2003 com o romance de aventuras Órbita dos caracóis (Companhia das Letras). Seguiram-se: Estrangeiros em casa (narrativa de viagem pela cidade de São Paulo, National Geographic Abril, 2004, com fotos de Roberto Linsker); Umidade (contos , Companhia das Letras, 2005), Barata! (novela infantil , Companhia das Letras, 2007) , Pornopopéia (romance , Objetiva, 2009) e O Cheirinho do amor (crônicas, Alfaguara, 2014). É também tradutor e roteirista de cinema e TV.

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