Coluna

Reinaldo Moraes

Artemísia na mira

01 de julho de 2016

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Clarisse Abujamra estreia novo espetáculo e conta a história da pintora italiana Artemísia Gentileschi que enfrentou de peito aberto e pincel ereto a machocracia da nobreza, clero e burguesia na Europa do século 17

Leio no jornal que Clarisse Abujamra, dançarina, coreógrafa, atriz e diretora de teatro, está com um espetáculo na agulha pra estrear no próximo dia 5 de julho, no Espaço Cia da Revista, na Alameda Nothmann, 1135 (Santa Cecília). Na verdade, trata-se de uma reestréia, já que “Cenas de uma Execução”, peça do dramaturgo inglês Howard Barker, já cumpriu curta temporada em outro teatro paulistano durante o gélido mês de junho último. Sob algumas das mais baixas temperaturas já registradas na cidade, um dos atores da peça, o Fernando Rocha, ficava peladão o tempo todo em cena, e a própria Clarice, que interpreta o papel principal, trajava apenas uma leve túnica. Um desafio térmico e tanto, sem dúvida, além de artístico, que deverá se repetir em breve.

Vou ver a peça assim que reestrear, pois, mesmo não sendo mais o voraz espectador de teatro que fui em outros tempos, fiquei fã da Clarice Abujamra como diretora depois que vi, no ano passado, sua montagem de “A fantástica casa de bonecas,” do Ibsen, com Helena Ranaldi no centro de um elenco masculino integrado por anões, sendo um deles, na verdade, uma mulher travestida, a Verônica Ned (filha do cantor Nelson Ned), fazendo um papel masculino. Mas a surpresa de ver anões no elenco era logo superada pela força da carpintaria dramatúrgica moderna do Ibsen, em versão abujamriana, pondo em causa o por vezes até delicado e infantilizante massacre da sociedade patriarcal sobre as mulheres, além da ótima atuação dos atores.

Howard Barker, autor da peça, se inspirou assumidamente na pintora Artemísia Gentileschi, que nasceu (1593) em Roma, mas viveu também em outros lugares, como Florença, Veneza e Nápoles, tendo adquirido a recente fama, via feminismo moderno, de enfrentar de peito aberto e pincel ereto a machocracia da nobreza, clero e burguesia na Europa do século 17. O início desse processo foi duro. A pintora sofreu um estupro aos 17 anos, cometido por Agostino Tassi, um pintor colega de ateliê seu pai, Orazio Gentileschi. Em seguida, teria sofrido dolorosas e humilhantes torturas diante da corte de magistrados a quem recorrera para denunciar o estuprador. O tom condicional que uso deve-se às poucas evidências factuais disponíveis sobre a Artemísia real. Há indícios de que ela teria até pretendido se casar com o estuprador, o que não se realizou, motivando a denúncia.

O certo é que sua pintura, inspiradíssima pelo carnal Caravaggio, influência que herdou do pai, muitas vezes se mostra de um realismo sangrento (“Judite degolando Holofernes”) ou da mais nua sensualidade (“Danae”), o que nem era grande novidade no período. Artemísia também morou e trabalhou em Veneza, como a Galactia da peça do Barker, mas com certeza não viveu as peripécias pictórico-políticas da sua contrafação fictícia.

A Galactia artemisianóide de “Cenas de uma execução” recebe uma encomenda do Doge de Veneza para celebrar num quadro gigantesco a vitória da Liga Cristã, liderada pelos venezianos, sobre os turcos otomanos, na batalha marítima de Lepanto, no Mediterrâneo, em 1571, pela hegemonia no Mediterrâneo, um fato histórico. Além do arrasador canhoaço das naves de guerra, com destaque para as venezianas, a refrega também se travou em grande parte no corpo a corpo entre os soldados embarcados que abordavam os inimigos, cheios de ódio pra dar, preovocando um furdunço de pólvora, fumaça e sangue aos esguichos. Foi esse horror todo que a Galactia teatral se propõe a pintar, em chave ultrarrealista, já antevendo a treta que vai rolar com seu poderoso mecenas e seus aliados, entre eles o papa, que esperam da pintora uma glorificação chapa-branca do poder incontrastável de Cristo e da liderança de Veneza no Mediterâneo.

Reinaldo Moraesestreou na literatura em 1981 com o romance Tanto Faz (ed. Brasiliense) Em 1985 publicou o romance Abacaxi (ed. L&PM). Depois de 17 anos sem publicar nada, voltou em 2003 com o romance de aventuras Órbita dos caracóis (Companhia das Letras). Seguiram-se: Estrangeiros em casa (narrativa de viagem pela cidade de São Paulo, National Geographic Abril, 2004, com fotos de Roberto Linsker); Umidade (contos , Companhia das Letras, 2005), Barata! (novela infantil , Companhia das Letras, 2007) , Pornopopéia (romance , Objetiva, 2009) e O Cheirinho do amor (crônicas, Alfaguara, 2014). É também tradutor e roteirista de cinema e TV.

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