Coluna

Reinaldo Moraes

Epifania

04 de agosto de 2016

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E o que acontece? Nada de muito significativo. O remédio a faz tirar o pé da cova, e é só. Ela vai levando, mal e porcamente, mas vai levando. Afinal, já está acostumada a viver dentro de uma nuvem cinzenta. O psiquiatra chama isso de distimia. Ela chama de ‘a-vida-como-ela-é’

Ela não tem muito mais que 30 anos. Um primeiro rótulo parece lhe caber muito bem: hiperativa. Ela fala ao celular, liga a tevê, acha uma música no iPod, ouve um pouco essa música, acha outra, pesca seus e-mails no computador, lê trechos de um livro, troca um vaso de lugar, discute com a pessoa com quem fala no celular, volta o vaso pro mesmo lugar em que estava antes, pede licença ao interlocutor telefônico pra responder mensagens de whatsapp, volta a falar no celular, que desliga depois de um minuto falando.

Tenta relaxar, mas a ansiedade que sente não lhe dá trégua. Cruza e descruza as pernas várias vezes. Sentada, não sabe o que fazer com aquelas pernas que Deus lhe deu. Estala os dedos, mesmo tendo lido em algum lugar que isso faz mal pras articulações. Daí, se levanta. Daí, senta de novo. E se levanta. Dá uns passos até a janela. Mal contempla a paisagem de prédios aglomerados que se descortina dali, e já volta a se sentar diante do notebook. Apanha o celular e manda uma mensagem de “zap-zap” pra alguém.

Recebe uma ligação. Se põe lasciva de repente. Com a mão livre, passa a mão num seio, alisa uma coxa, sentindo com prazer o próprio corpo.  Gargalha, espalhafatosa. Deixa alguma coisa combinada com a pessoa que ligou. Desliga. Olha pro computador. Dá uns cliques e puxa uma imagem pornô: um dos milhões de casais trepando na “pornosfera” digital. Num clique, cancela a imagem. Pornografia anda lhe tirando o tesão. Vai daí, despenca pra mais funda depressão, arando a cabeleira com os dedos da mão em garra. Melancolia, angústia, sensação de terra arrasada dentro do peito. Quem a visse agora diria que ela está tentando arrancar os próprio cabelos.

Horas depois, lá está ela deitada no divã do psicanalista. Não encontra o que dizer. O homem, atrás dela, afundado em sua poltrona, apenas testemunha o silêncio amargurado da paciente. Ela mira o teto, onde, lhe parece, a qualquer momento se abrirão as portas do inferno. Quer falar, mas não consegue. São tantos os assuntos, tantas as queixas, que não há canal expressivo que dê vazão ordenada àquela tropelia de sentimentos. Há uma barragem em sua mente que represa um mar de rejeitos emocionais. Ela sente que a barragem pode se romper a qualquer momento, inundando seu psiquismo com lama tóxica, do mesmo jeito que aconteceu lá em Mariana com aquela barragem criminosa da Samarco.

Então, ela começa a falar. E fala e fala e fala. Sobre a sua paradoxal vontade de morrer, que talvez seja, segundo ela desconfia, nada além de um agudo e palpável medo da morte que a espreita o tempo todo, como uma bruxa insidiosa e malévola, à espera do melhor momento pra sair das sombras e vir atacá-la, não com um alfange, mas com uma seringa cheia de veneno. O psicanalista nem tem tempo de analisar a simbologia fálica da seringa, pois ela já está falando sobre a culpa ardida que sente por não ter conseguido manter o casamento, a família.

Reinaldo Moraesestreou na literatura em 1981 com o romance Tanto Faz (ed. Brasiliense) Em 1985 publicou o romance Abacaxi (ed. L&PM). Depois de 17 anos sem publicar nada, voltou em 2003 com o romance de aventuras Órbita dos caracóis (Companhia das Letras). Seguiram-se: Estrangeiros em casa (narrativa de viagem pela cidade de São Paulo, National Geographic Abril, 2004, com fotos de Roberto Linsker); Umidade (contos , Companhia das Letras, 2005), Barata! (novela infantil , Companhia das Letras, 2007) , Pornopopéia (romance , Objetiva, 2009) e O Cheirinho do amor (crônicas, Alfaguara, 2014). É também tradutor e roteirista de cinema e TV.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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