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Sábado fui à praia. Estava lá, na pedra do Leme, folheando a última edição da Revista Empodere . Em menos de seis meses, foi a segunda vez que eu e minha história protagonizamos as páginas de uma revista de destaque. Enquanto me olhava na capa, sentindo o conforto de estar no lugar certo, do meu lado uma conversa. A mulher, enfática, comentava: “eu quero um Brasil só. No meu tempo não tinha nada disso de negro, viado. Essas coisas”. Minutos antes havíamos percebido uma à outra. Sorriso de canto de boca. Olhar de cumplicidade de quem nunca se viu, mas tem certeza de que se conhece. Com pensamentos opostos, não confrontados, éramos mulheres negras.
Em meio a um processo eleitoral frenético, que divide o Brasil em dois grupos — convencidos e aqueles que precisam ser convencidos — sigo puxando os fios de minha memória. Lembro que na campanha eleitoral anterior foi bastante difícil conquistar a eleição de Dilma Rousseff. Recordo também que, naquele momento, as postagens em redes sociais apresentando trajetórias bem-sucedidas na educação, tais quais a minha própria, foram bastante significativas para sua vitória. Em 2018, essa estratégia mantém-se, mas se mostra insuficiente frente à força de mentiras como “ideologia de gênero”, o discurso anticorrupção e o “ kit gay ”, este último argumento, inclusive, desmentido pelo próprio Ministério da Educação.
O movimento passado-presente é marcado por “histórias que a história não conta”. No Rio de Janeiro, o samba de 2019 da Estação Primeira de Mangueira traz uma linda homenagem à vereadora Marielle Franco. Acompanhando um cenário nacional, esse estado elegeu quatro mulheres negras como deputadas. No Nordeste, o muro da Universidade Regional do Cariri continua pintado com “Pátria Educadora”. Nos dias em que estive em Juazeiro do Norte, vi tantas enxadas, carroças e paredes de casas de pau a pique com a estrela vermelha. Fiquei impactada: água, comida e educação, “apenas”. Pausa para recordar a moça do Leme: “eu quero um Brasil só”. Já meu namorado defende a ideia de que o país se torne vários Brasis. Eu não sei ( como é bom falar do que não sei ). Independentemente da condição jurídica, não somos um único território. Menos ainda um só povo. Verdade aprendida na marra, na pior escola da vida. Os grupos de WhatsApp de amigos e familiares, um lugar de debates relevantes, mas também de adoecimento para toda a população.
Ainda sobre os tais fios da memória, seis anos depois, retornei à Unicamp. Voltei à universidade que me deu (o certo é: onde conquistei) o título de doutora. Minoria na historiografia, rotineiramente obrigada a comprovar que sou acadêmica, retornei pela porta da frente. O convite para participar da banca de defesa de mestrado de Juliana Videira veio de Luana Saturnino. Professora da minha geração, a doutora também personifica os versos de Cristiane Sobral. “ Os tempos agora são outros ”. Com o trabalho “Elza Soares: gênero e relações étnico-raciais na música popular brasileira e no ensino de história”, Juliana entra para a história da historiografia como pioneira. Eu “desalfabetizo”: uma instituição tem muitas portas da frente.
O papo com o taxista, eleitor convicto da extrema direita, gerou atraso para chegada à banca da futura mestra. Um atraso importante. Ao entrar na sala, por sinal a mesma em que defendi minha tese de doutorado em 2012, gravidíssima, meu coração acelerou. O auditório, imponentemente nomeado “Sala de Defesas” (toda defesa pressupõe um ataque?) estava lotado de professoras e professores da educação básica pública. Parte desses profissionais que lecionam na Escola EMEF Maestro Marcelino Pietrobom, em Paulínia (município vizinho) também trabalham no Triu, um cursinho pré-vestibular de educação popular. Juliana, que foi vestida com a camisa da organização para defender sua dissertação, é ex-aluna e docente desse lindo projeto. Existe um ritual em bancas. A pessoa que vem de mais longe inicia a arguição da candidata. Enquanto elaborava o sentimento de ser a estrangeira de dentro, fazia meu raio-x do cenário do qual era parte. Agora como professora.
Giovana Xavieré professora da Faculdade de Educação da UFRJ. Formada em história, tem mestrado, doutorado e pós-doutorado, por UFRJ, UFF, Unicamp e New York University. É idealizadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras. Em 2017, organizou o catálogo “Intelectuais Negras Visíveis”, que elenca 181 profissionais mulheres negras de diversas áreas em todo o Brasil.
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