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Giovana Xavier

Precisamos parar de desejar força para mulheres negras

29 de abril de 2019

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Desejar ‘força’ para quem está no olho do furacão é parte da história brasileira de naturalização das desigualdades e de não divisão das responsabilidades de violências estruturais

A coluna desta semana é inspirada em uma mistura de sentimentos evocados pelo veto do presidente da República, Jair Bolsonaro, à campanha publicitária do Banco do Brasil , pela prisão de Rennan da Penha , acusado de “associação ao tráfico”, assim como pela repercussão da utilização das imagens de Marielle Franco em um desfile de moda . Entra na minha lista também o anúncio de autoexílio de Camila Mantovani da Silva. Ativista da Frente Evangélica pela legalização do aborto, a jovem de 26 anos anunciou a decisão de sair do país por medida de segurança diante das ameaças e perseguições a si e sua família. Aparentemente díspares, se pararmos para pensar, os assuntos possuem o mesmo “radical”, “raiz do problema”, se quisermos usar o conceito feminista de Angela Davis: o silenciamento e a desapropriação dos direitos de pessoas negras — em especial mulheres — à propriedade intelectual e material.

Nesse debate, a enunciação do lugar de fala da autora deste texto — uma acadêmica confinada no 0,4% da comunidade científica brasileira — é importante. Por meio dessa enunciação, relembro as formas pelas quais o racismo e o machismo se impõem nas nossas vidas. Por exemplo, dificilmente vocês verão intelectuais negras sendo perguntadas sobre suas referências de leitura. Tanto a imprensa quanto os comitês científicos estão mais preocupados em nos fazer narrar experiências de racismo e ouvir sobre nossas soluções mirabolantes para perversidades que não criamos.

Daí que para fazer este texto, decidi eu mesma me perguntar sobre referências e inspirações. Para responder, revistei as memórias da infância e adolescência, no bairro do Méier, subúrbio carioca, onde passei mais da metade da vida. Na esquina do meu prédio, tinha um jornaleiro. Aos domingos, costumava ir até a banca para ler jornais e revistas. Seu Manoel, um português de 70 anos, estimulava minhas visitas. Menos por perceber meu amor pelo mundo das letras do que para esbarrar nas coxas e braços de uma menina em corpo de mulher. Uma criança preta que chegava sozinha ao seu estabelecimento comercial para sentar e ler. Sabendo que havia algo de “errado” naquela situação, preferia ficar quieta quando retornava à casa. Assim como a maior parte das famílias negras, a minha, que buscava dignidade e respeito em um bairro de classe média baixa, era avessa à qualquer discussão sobre racismo. Diante de gerações aprimorando o silêncio como ferramenta de linguagem e resistência, tinha eu: uma menina que não queria perder o direito, a duras penas conquistado, de sair de casa para ler.

Foi assim, conjugando violência sexual com a liberdade embutida na leitura, que se iniciou o processo de autoconstrução do que bell hooks chama “ intelectual negra insurgente ”. Em um país governado pela extrema-direita, que defende a ideia de que “ a universidade deve ficar reservada para elite intelectual ” e no qual homens brancos ganham 63% a mais que mulheres negras , precisamos nos perguntar: como os processos de formação de leitores e intelectuais são determinados por experiências de raça, classe, gênero, sexualidade?

Ainda puxando os fios da memória, relembro que, já na universidade, tomei contato com o trabalho de colunistas como Lya Luft e Martha Medeiros. Rapidamente, a menina que sempre amou a escrita poética e literária tornou-se fã das duas. Ainda que a palavra “feminismo” fosse nova, sentia-me atraída pelo fato de ver mulheres escrevendo em impressos tudo que lhes desse na telha. Amores, dores, viagens, relacionamentos, literatura. Sonhos, projetos de mundo. “Que foda! Quero fazer isso um dia”, pensava.

Giovana Xavieré professora da Faculdade de Educação da UFRJ. Formada em história, tem mestrado, doutorado e pós-doutorado, por UFRJ, UFF, Unicamp e New York University. É idealizadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras. Em 2017, organizou o catálogo “Intelectuais Negras Visíveis”, que elenca 181 profissionais mulheres negras de diversas áreas em todo o Brasil.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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