Coluna
Claudio Ferraz
Como proteger nossa democracia dos crescentes ataques à liberdade de expressão?
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Na véspera do natal, a produtora do programa Porta dos Fundos foi atacada com coquetéis-molotov no Rio de Janeiro. O ataque é, provavelmente, uma resposta terrorista ao especial de Natal do Porta dos Fundos que foi criticado pela igreja universal por estar “ atacando diretamente a fé de milhões de brasileiros ”. O atentado tem uma grande semelhança, em menor escala, ao ataque terrorista contra o jornal satírico francês Charlie Hebdo, em 2015, por retratar de forma satírica o profeta Maomé. Naquela ocasião, milhões de pessoas e diversos líderes mundiais homenagearam as vítimas. A frase “Je suis Charlie” transformou-se num símbolo de defesa da liberdade de expressão nas mídias sociais ao redor do mundo.
O que aconteceu na sede do Porta dos Fundos é um ataque à liberdade de expressão e à democracia brasileira. As pessoas podem achar a sátira engraçada, como muitos fãs de Monty Python devem ter achado, ou podem achar a sátira um absurdo e uma falta de respeito. Mas numa democracia que é signatária da Declaração Universal de Direitos Humanos, toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, tem direito à liberdade de manifestar essa crença, e tem direito à liberdade de opinião e expressão, incluindo a liberdade de transmitir informações e ideias por quaisquer meios. A liberdade de expressão que temos como cidadãos não pode depender de gostarmos ou não do que está sendo dito ou criticado.
Esse ataque não deve ser visto como um fato isolado, e sim como o resultado de três processos que começaram com a eleição de Jair Bolsonaro. Primeiro: a tentativa de controle da imprensa por parte do governo, apoiada por diversos seguidores que xingam jornais e jornalistas. Isso inclui cancelamentos de assinaturas de jornais, chamadas para o boicote a emissoras específicas e ataques a jornalistas via mídias sociais. Além disso, inclui um controle da cultura com nomeações para postos-chave e restrições de fundos para projetos que não sejam vistos pelo governo como adequados para a “família brasileira”.
Segundo: o crescente discurso de ódio do presidente e de muitos de seus seguidores. Novos trabalhos acadêmicos mostram que discursos de ódio de líderes em mídias sociais são responsáveis pelo aumento da violência contra minorias. Os economistas Karsten Muller e Carlo Schwarz acabam de terminar um trabalho chamado “ From Hashtag to Hate Crime: Twitter and Anti-Minority Sentiment ”, em que eles analisam estatisticamente os efeitos do discurso de ódio do presidente americano Donald Trump sobre crimes de ódio nos EUA. Os crimes de ódio contra muçulmanos nos EUA dobraram desde que começou a campanha de Donald Trump. Para estabelecer a causalidade dessa relação, os autores usam uma estratégia de diferenças-em-diferenças, comparando locais com maior e menor uso do Twitter. Dado que uso do Twitter não é aleatório, eles exploram variação dos locais de residência dos primeiros usuários no festival South by Southwest (SXSW), que é conhecido como o ponto de inflexão para a popularização da rede social. Usando essa fonte de variação, os autores encontram que um aumento de um desvio padrão na exposição ao Twitter está associada a um aumento de 38% em crimes de ódio entre 2010 e 2017. Os autores encontram uma forte correlação serial entre os tuítes islamofóbicos do Trump e o número de crimes violentos contra muçulmanos.
Um segundo estudo recente feito pelo economista Leonardo Burztyn e coautores para o caso da Rússia confirma esses resultados. No artigo “ Social Media and Xenophobia: Evidence from Russia ”, eles exploram a expansão da mídia social russa VKontakte (VK) — equivalente ao Facebook e que domina o mercado local — e mostram que sua expansão está associada a um aumento de crimes de ódio, principalmente em cidades onde o nível de sentimento nacionalista já era alto antes da entrada da mídia social. Eles mostram que o efeito está concentrado em crimes de ódio onde há vários agressores, consistente com a hipótese de a mídia social servir como fator de coordenação.
Claudio Ferrazé professor da Vancouver School of Economics, na University of British Columbia, Canadá, e do Departamento de Economia da PUC-Rio. Ele é diretor científico do JPAL (Poverty Action Lab) para a América Latina. É formado em economia pela Universidade da Costa Rica, tem mestrado pela Universidade de Boston, doutorado pela Universidade da Califórnia em Berkeley e foi professor visitante na Universidade de Stanford e no MIT.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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