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A semana que passou vai ficar na nossa história como aquela que “não passou” ou que “custou a passar”. Foi no começo dela que o site The Intercept Brasil publicou uma série de mensagens que teriam sido trocadas por Telegram entre o atual ministro da Justiça, Sergio Moro, e o procurador Deltan Dallagnol, nos anos que vão de 2015 a 2018. Elas revelaram, entre outros coisas, a interferência indevida do então juiz nas investigações da Lava Jato.
O vazamento, que tem fonte ainda anônima, revela como Moro teria feito de tudo um pouco: sugeriu testemunhas, opinou sobre o andamento das apurações, antecipou decisão aos acusadores, indicou juízes do Supremo que compactuavam com suas causas, e articulou movimentos, os quais, se forem comprovados, ferem a imparcialidade necessária do juiz, e ainda machucam, e muito, a imagem da Lava Jato.
Um Estado democrático de direito é aquele que pode contar com um mecanismo institucional, o “governo da lei”, que rege de maneira equidistante as condutas de governantes e governados, os obriga a respeitar as regras, as mesmas que os protegem. O governo da lei impõe, ainda, limites aos interesses e paixões privados, determinando e distinguindo de forma pública o que é justo daquilo que é injusto; o correto do errado. Aliás, esse foi o tipo de procedimento que contribuiu para o sucesso e consolidação da operação Lava Jato no combate às práticas de corrupção que andavam encravadas no coração do Estado.
No entanto, se forem corretas as transcrições divulgadas pelo Intercept, será preciso entender, também, por que o então juiz e hoje ministro da Justiça, Sergio Moro, lançou mão de expedientes condenáveis, valendo-se da enganosa equação de que “os fins justificam os meios”. Não justificam, e o juiz terá que explicar porque violou os Códigos de Ética da Magistratura e, com toda a probabilidade, o Código do Processo Penal. São muitas as hipóteses que procuram dar conta do impasse. Para alguns, seria o combate à corrupção do Estado que teria feito Moro tomar expedientes ilegais. Para outros, um antipetismo de base explicaria suas atitudes, bem como sua filosofia de missionário da nação. De toda maneira, nada justifica que um juiz tenha se vestido de justiceiro, e, em vez de usar do governo da lei, tenha pautado sua conduta pelo espírito de vingança.
O Brasil é um país muito desigual – passamos de 10º para 9º lugar em 2019 – e injusto também. Talvez por isso mesmo tenhamos a tendência de apostar e transformar em heróis pessoas que praticam expedientes pouco legítimos; sempre em nome de romper com os obstáculos do Judiciário e sua tradicional morosidade. Também estamos habituados a fechar um olho (ou os dois) quando a causa nos parece “justa”, naturalizando e dando guarida a claros atravessamentos entre esferas públicas e privadas. Ao apostar naqueles que prometem saídas fáceis, passamos, com facilidade, por cima das estruturas legais, assim como dos demais poderes constituídos. Por sinal, nesses momentos, desequilibram-se os três poderes da República, com o Judiciário achando por bem atuar por sobre o Legislativo e o Executivo, sob alegação de mal funcionamento dos mesmos.
Lilia Schwarczé professora da USP e global scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia”, "Lima Barreto, triste visionário”, “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flavio Gomes, e “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil”, “Histórias Mestiças”, “Histórias da sexualidade” e “Histórias afro-atlânticas". Atualmente é curadora adjunta do Masp para histórias.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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