Coluna

Luciana Brito

A graciosidade dos nossos cabelos e a desgraça do racismo

17 de fevereiro de 2020

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É importante pensar em corpo, liberdade e direitos antes, durante e depois do carnaval

Nesses dias de carnaval, não faltarão fantasias de “nega-maluca”, perucas de cabelos black power, nádegas excessivamente grandes e falsas, reproduções jocosas do corpo de uma mulher negra. Não faltarão também cantoras, atrizes e celebridades exibindo seu “bronze-mulata”, que assim como as turistas, podem até trançar os cabelos para que nestes dias de folia rompam com a normalidade e experimentem a suposta parte divertida da negritude.

Como afirma o professor Kabengele Munanga, é difícil convencer as pessoas de que neste país existe racismo já que, ainda que ocasionalmente, o corpo negro tem esse suposto momento de celebração, ou uma aparente valorização. Lembro-me de certa feita, quando eu ainda era estudante de graduação na Universidade Federal da Bahia, quando uma colega do curso de história, uma moça branca da classe média de Salvador, disparou: “Ah, eu bem queria ser mulata. Não é bom ser símbolo sexual?”

Querer ter o cabelo, a cor, o corpo do negro (e da negra), além do tal “samba no pé” e outros atributos tidos como “naturais” às pessoas negras, é sinal que vivemos numa sociedade em que o corpo negro é algo celebrado? Podem as pessoas negras celebrarem e vivenciarem sua corporeidade de forma livre e segura? Ao longo da nossa formação, pessoas negras receberam mensagens que confirmassem a beleza e naturalidade dos seus atributos físicos, inclusive como características humanas?

Quando visitou o Brasil entre os anos de 1850 e 1851, o zoólogo alemão Hermann Burmeister tinha a intenção de se alinhar ao debate muito em voga nos Estados Unidos e na Europa sobre a superioridade dos povos brancos e a animalização dos povos africanos e indígenas. O resultado das suas observações no Rio de Janeiro foram publicados na obra “The black man: comparative anatomy and psychology of the African Negro” (“O homem negro: anatomia e psicologia comparadas do Negro Africano”), lançada nos EUA escravista, em 1853. Burmeister discorreu longamente sobre o corpo das mulheres africanas e afro-brasileiras. Reclamou que as mulheres brancas estavam o tempo todo recolhidas nas suas casas e, quando nos espaços públicos, estavam sempre cobertas. Foi observando as mulheres negras trabalhando que o cientista escreveu suas impressões sobre os braços, pernas, cabelos, tamanho dos pés e até mesmo o comportamento daquelas mulheres. Um das seus registros me chama muito atenção, porque revela uma impressão num dado momento histórico que caiu no imaginário popular e persiste até hoje, que é o mito da masculinidade do corpo da mulher negra. Assim ele escreveu: “o braço da fêmea do negro é relativamente mais longo que o da europeia, e que sua perna também ultrapassa a daquela em comprimento, isso indica um certo nível do tipo masculino”.

Para a ciência daquela época, o corpo revelava traços não somente físicos, mas da personalidade. Assim, as características supostamente masculinas do corpo das mulheres negras, observadas por Burmeinster enquanto trabalhavam descalças vendendo alimentos, ou agachadas lavando roupa com as saias dobradas até os joelhos, com braços e dorsos à mostra, permitiram ao observador criar evidências que seriam muito bem quistas aos defensores da escravidão. Tais afirmações fortaleciam a ideia de que as mulheres africanas podiam trabalhar tanto quanto os homens, e, no caso daquelas que ele chamava de mulatas, os apetites sexuais eram masculinos também.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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